A natureza numinosa de Planta oração de Calila das Mercês

 

Julieta Kabalin Campos*

 

 

 

A palavra detém o poder de fazer acontecer aquilo que libera em sua vibração. Na palavra são as divindades, os ancestres, os inquices, as rezas que curam, que performam o tempo oracular dos enigmas, o passado e o devir, o som que emite, transmite, esconde, desvela, escurece ou ilumina. Na palavra e nos cantos, os ancestres são e assim como na palavra e nos cantos o tempo é. Daí a natureza numinosa e o poder aurático da palavra proferida.

 

Leda Maria Martins

 

A palavra “terra” repete-se incessantemente na primeira intervenção da poeta e narradora Calila das Mercês em sua Planta oração (Editora Nós, 2022), transformando a folha em branco em um espaço fértil, traço que devolve pulso à matéria alva que um dia foi madeira viva enraizada no solo. A palavra “semente” — ou a semente-palavra — é plantada duas vezes nesse fluxo vital de voz, corpo e letra, inaugurando o ciclo de oração e oralitura guiado pela autora nas cento e trinta e seis páginas do seu livro-floresta.

Este pode ser lido, antes de mais nada, como uma alabança à vida, com seus ciclos e suas múltiplas manifestações nas tramas do tempo espiralar (Martins, 2022). Nesta linha, confirmada pela dedicatória que fecha o livro, trata-se de um movimento de continuidade que honra e se inspira em ancestrais “ensinamentos das terras e das águas” (p. 139). Para além da humanidade de personagens atravessados por histórias tão particulares como universais, o livro está povoado de outros seres e formas de vida, muitas das quais perpassam o tempo dos indivíduos, tornando-se testemunhas e companheiras de diferentes gerações no passo por este mundo.

Planta oração tem sido definido pela crítica como o primeiro livro de contos da poeta, jornalista, pesquisadora e doutora baiana Calila das Mercês. No entanto, essa categorização parece redutora frente à expansiva potência de uma proposta estética que não se conforma com os limites despóticos dos gêneros e as convenções literárias. Essa espécie de livro-louvor é lavrada numa intrincada relação entre poesia e narrativa, escrita e oralidade, planos de uma voz que não pode ser desmembrada sem perder sua riqueza e complexidade.

Por isso, num limitado esforço leitor, pode-se arriscar a ideia de uma estrutura: um poema dividido em dezesseis momentos, quinze contos breves e um sumário. O primeiro se configura como uma corrente de vida que — como uma árvore de palavras — cresce e se ramifica ao longo do livro, ao mesmo tempo que prepara e aduba o terreno dos textos que antecipa — breves histórias de outras árvores, de outros corpos e vozes enraizadas e propagadas na terra fértil da linguagem. Assim, somos interceptados permanentemente pela força irrefreável da vida (torrente de água-seiva-sangue). Poder nomeá-la é, numinosamente, fazer o milagre do tempo acontecer mais uma vez.

Agora bem, se, por um lado, acompanhamos esse desenvolvimento vital fragmentariamente, talvez como lembrança de nossa própria insignificância e a impossibilidade de qualquer pretensão de totalidade; por outro lado, cada fração poética nos oferece o privilégio de nos aproximarmos sensorialmente ao ritmo da natureza, seus elementos, conexões, percursos e fascinantes metamorfoses: terra, semente, água, raiz, vento, raio, trovão, chuva, cauleseiva, chuvento, nuvem, folhinha, folha, flor, galha, ninho, afetaguadubo. Tais repetições sonoras fazem do poema um mantra, distribuições gráficas que tornam a escrita uma composição sagrada, parêntesis que oferecem breves respiros para o (auto)conhecimento: conceber-se parte de um todo, saber-se integrante de uma roda de afetos e efeitos, constatar que qualquer fim (incluso o próprio) é um início.

Intitulados com o nome de uma árvore ou planta, cada um dos quinze contos de Planta oração convoca e explora sutilmente o vínculo entre esses seres e diversas tramas de ações e sentimentos que compõem momentos e trajetórias de vida de personagens atravessados pelas arbitrariedades de uma sociedade desigual. Histórias de amor e desamor, de encontros e desencontros, de aprendizados e descobertas, de violências e afetos na voz de seus protagonistas. Breves narrações que nos remetem a presenças não-humanas que, mesmo no silêncio, convivem e se comunicam conosco: “não dá para colher tudo de uma vez, tampouco bagunçar os espaços achando que não terá volta, achando que o mundo não dá voltas, achando que os encantados e a natureza não conversam com você” (p. 75).

Por isso, de alguma maneira, cada narrativa está dedicada a homenagear aquelas existências que são (foram e serão) testemunhas, cúmplices, companheiras, guias, refúgios, confidentes, amuletos, referentes, espaços proibidos, cenários de amor, esconderijos e reservatório de nossas memórias. Com elas, crianças (infâncias negras e não heteronormativas encontram lugares de protagonismo) crescem (e sofrem prematuramente) no mundo racista, homofóbico e machista que as recebe. Ao seu redor, famílias resistem e lutam tecendo no cotidiano fortes elos de legados ancestrais. Em sua companhia, desenvolvem-se múltiplas maneiras de amar e cuidar. Apesar de seus presentes e ensinamentos, muitos outros as desonram.

Por fim, quem lê é presenteado com um “sumário-floresta”, em que são coletados cada um dos seres vegetais que habitaram e protagonizaram as histórias do livro. Seus nomes, junto com uma breve memória alusiva, funcionam como oferenda e declaração de amor para cada um desses seres. Aqui é estabelecido um significativo gesto contrabotânico — e por tanto contramoderno — a partir da apropriação e reformulação de um gênero que remete às práticas cientificistas que se satisfaziam com as ações de nomear, classificar, catalogar, descrever e explicar sistematicamente e com pretensão objetiva o universo vegetal. No entanto, na proposta literária da autora é, sem obliterar outros saberes — movimento sinalizado pela convivência dos nomes populares e científicos das espécies referidas — reposto e exaltado o valor do conhecimento subjetivo, ligado a saberes ancestrais e a relação vital com a natureza para além da lógica extrativista e produtivista do mundo moderno-capitalista.

Desse modo, Calila nos lembra, em cada uma das nervuras do seu texto-rezadeira, da nossa pertença ao mundo da natureza, aproximando-nos de tradições que, apesar de entender com maestria essa matriz fundamental do ser, foram historicamente negligenciadas e hostilizadas. Nesse gesto, o livro evidencia a intrínseca relação entre humanos e não-humanos, existências que, sem serem equiparáveis, não dependem de lógicas muito diferentes. Por isso, seguindo os conselhos dirigidos à menina negra destinatária da carta-conto “Caramboleira” (eu-criança da própria narradora), as pessoas devem aspirar a “ser regadas, ver a luz e crescer” (p. 83), ter o objetivo de “proteger, podar e fertilizar” suas cabeças como imperativo de autocuidado (ato que, não por acaso, se traduz na ação de regar-se) e entender que a possibilidade de expandir-se implica “disseminar sementes” e “conhecer mais os caminhos das [nossas] raízes” (p. 85). Nesse sentido, reconhecer e repor com a palavra esse vínculo orgânico com a terra e seus ciclos torna-nos conscientes de nossa capacidade de “chover igual ao céu. Ou secar igual no sertão e ainda amanhecer gente” (p. 87). Por isso, ler o livro de Calila das Mercês é uma oportunidade para colher saberes profundos e antigos; aterrar, adubar e aguar nossa existência e, quem sabe, também semear ideias para colher f(r)uturos mais saudáveis.

 

Belo Horizonte, agosto de 2024

 

Referências

 

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

MERCÊS, Calila das. Planta oração. São Paulo: Editora Nós, 2022.

 

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* Bacharel e licenciada em Letras Modernas pela Universidad Nacional de Córdoba. Foi bolsista do Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y Técnicas (Conicet) entre 2016-2022. Atualmente, cursa a última etapa do Doutorado em Letras pela UNC, é integrante do projeto "Territorialidades latinoamericanas en mundos por-venir: poéticas de re-paisamiento y re-comienzos en los ensamblajes heterogéneos de la literatura y el arte contemporáneos" (CIFFYH-UNC) e atúa como professora da Cátedra Libre de Cultura Brasileña da UNC. 

 

 

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