Caixa Preta Literária
Marcos Fabrício Lopes da Silva
Em palestra proferida na Universidade de Belgrano, Argentina, em 24 de maio de 1978, o escritor Jorge Luis Borges (1899-1986) sublinhou sua admiração pelo universo dos livros:
Dediquei parte de minha vida às letras, e creio que uma forma de felicidade é a leitura. Outra forma de felicidade – menor – é a criação poética, ou que chamamos de criação, mistura de esquecimento e lembrança do que lemos. Emerson coincide com Montaigne quanto ao fato de que devemos ler unicamente o que nos agrada, que um livro tem que ser uma forma de felicidade (1996, p. 10).
A literatura de Cristiane Sobral proporciona felicidade grande. Os 16 contos, embalados sob o título Caixa preta (2023), carregam um portal de ancestralidade imprescindível enquanto leitura de mundo e casa da palavra. Míticos, fantásticos, simbólicos ou de efeitos mais realistas, cada personagem do livro compõe o eixo semântico das narrativas e também representa um grande potencial de desenvolvimento em contextos da vida prática. À maneira de Tzvetan Todorov (1939-2017), autor de A literatura em perigo (2009), Cristiane Sobral leva-nos a reconhecer o importante valor cognitivo da literatura: para que serviria, senão para conhecer melhor o mundo da vida e a nós mesmos.
Em Caixa preta, a dupla aventura de viver e escrever lança Cristiane Sobral nas águas do grande inventivo. Cada enredo se dirige à consciência afrodiaspórica de que as identidades não são fixas nem feitas; encontram-se em movimento transfigurador. Como sabemos, a identidade não é essência, mas processo, um devir onde as misturas e fusões, as semelhanças e diferenças são constitutivas do sentimento de pertença. Nessa dimensão tão plural e enriquecedora, acompanha-me a voz narrativa de Cristiane Sobral, quando em “Charme” mostra um caminho original sobre a questão da autoestima:
Filha, quando começar a namorar, lembra que é negra, tenha orgulho do seu cabelo, das formas do seu corpo, do seu nariz lindo. Você é uma princesa, não dos livros onde a princesa é um joguete de príncipes que aparecem para a salvação. Você é uma futura rainha, saiba guerrear nas turbulências da vida, não escolha qualquer um, se não surgirem boas opções, escolha a si mesma, nunca estará só. Você é mais do que vencedora, nossos ancestrais sempre estarão ao seu lado (p. 33).
A autora compreende o autoconhecimento como travessia existencial e percurso íntimo. Sobral convoca o propósito da individualidade para a qualidade particular do sujeito (singularidade especial). Tal atitude celebra o conceito de humano/humanização com razão e sensibilidade. No sentido freiriano, significa defender a prática de integração com o mundo, a partir da ética da libertação e da solidariedade, em processo sócio-histórico-cultural de “ser mais” (identidade com alteridade).
Não à toa, assistimos à explosão de protestos antirracistas e contra discriminação sociopolítica à base da cor da pele. Por que ainda há a exclusão às culturas negras da vida social, em sociedades que se autoproclamam democráticas? A desumanização, sabemos, apresenta-se como impossibilidade ou ausência da liberdade, da condição de “ser mais”, vista na situação de opressão, colonização, neocolonização. Lendo à contrapelo toda essa composição nefasta e sombria, a obra de Cristiane Sobral nos lembra de uma individualidade nada egóica e soberana. O indivíduo é um ser comunitário. Em consequência, consegue sua autopercepção na e pela comunidade. Não reconhecimento ou mau reconhecimento pode infligir danos, aprisionando alguém em um modo de ser falso, distorcido e reduzido. A discriminação cultural gera problemas inúmeros de reconhecimento moral e consequências graves na vida das pessoas e da sociedade.
Para os racistas, não adiantava apenas ter ódio e inveja dos negros, era preciso o tempo todo estabelecer relações sádicas nas quais os seus descendentes pretos deveriam ser sistematicamente punidos para talvez provar as teorias de conquista da tão almejada alma branca.
Na saída parecia ter ouvido o médico dizer:
Não posso mais torturar a sua carne, mas posso enlouquecer o seu cérebro.
(Leocádia) Entrou no carro e dirigiu pra casa pensando: loucura é assunto sério doutor, o senhor deveria ter estudado melhor. Ela sabia que era uma mulher negra, livre e que tomaria posse do seu cargo, consciente de suas capacidades e de toda a luta para chegar até ali. Eles que esperassem o inesperado (p. 42-43).
Neste conto chamado “Você tem todos os dentes?”, Cristiane Sobral contribui para a educação antirracista de forma exemplar, elevando o debate sobre a real emancipação do povo negro e a oportunidade de ruptura frontal com as discriminações de raça, gênero e classe. Elogiável também foi a atitude da escritora quando acolheu o tema do cuidado. O cuidado de si é o cuidado com quem se é, e que, por sua vez, leva ao cuidado com o outro. A cultura de si, apesar da intensificação e valorização das relações de si para consigo, não se refere apenas ao indivíduo, mas também ao coletivo.
A arte da existência demanda sabedoria na encruzilhada para o enfrentamento da vida: “Leocádia nasceu para ocupar espaços, segundo a profecia da avó mineira e benzedeira, a avó Ditinha, mas em sua caminhada as portas sempre foram estreitas” (p. 39). Questionador do capacitismo estrutural, Caixa preta fornece a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. “É melhor cair em si” (p. 89), como alerta Sobral, conectada, por sua vez, em outro achado repleto de amor-próprio e sentimento do mundo: “Estarei lá esperando por mim” (p. 77). É certo que a autoestima, no percorrer dos contos de Sobral, compreende a identidade de existência e resistência. Trata-se de um recurso fundamental para aplacar o racismo e é inerente ao autoconhecimento como um processo dialético: é libertador reconhecer estereótipos em uma estrutura dominante para não se prender a eles.
Brasília, 20 de agosto de 2024.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo (1940). In: _____. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. p. 67.
BORGES, Jorge Luis. O livro (24 mai. 1978). In: _____. Cinco visões pessoais. Tradução de Maria Rosinda Ramos da Silva. 3. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 5-11.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido (1968). 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
SOBRAL, Cristiane. Caixa preta: 16 contos. São Paulo: Editora da Autora, 2023.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
VELOSO, Caetano; NASCIMENTO, Milton. A terceira margem do rio (Circuladô, 1991). Letra só: Caetano Veloso. FERRAZ, Eucanaã (Org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 296-297.