História e ficção em
Aqualtune: um sonho chamado liberdade, de Sara Messias*
Mara Lívia Farias Cardoso**
Este romance nasce da necessidade de se manter viva a memória da escravidão no Brasil e no mundo.
Sara Messias
Aqualtune: um sonho chamado liberdade, publicado em 2019, pela Quarteto Editora, é o romance de estreia da saga afro-brasileira organizada pela escritora baiana Sara Messias. Nele é abordada a história de Aqualtune, princesa do Reino do Congo, que foi escravizada no Brasil (século XVII), mas se tornou uma figura muito importante na luta em prol da liberdade dos negros no país. Entretanto, pouco se sabe sobre essa princesa, que foi uma guerreira não só na África, como também em solo brasileiro; sabe-se apenas que era mãe de Ganga Zumba (1630-1678) e avó materna de Zumbi dos Palmares (1655-1695). Isto porque a História oficial privilegiou fatos e personagens de acordo com interesses e ideologias racistas e/ou sexistas, resultando na invisibilidade da participação social das mulheres e dos negros.
Para reconstruir a história de Aqualtune, a autora, que reside na Itália, realizou uma pesquisa intensa em vários documentos históricos, como os escritos pelos missionários capuchinhos italianos sobre os impérios africanos e o contato que estabeleciam com os portugueses, holandeses e brasileiros, revelando um retrato pouco conhecido da África. Sara Messias nos apresenta o continente africano não como um território selvagem, mas como um espaço de civilização e cultura, “a contrapelo” do discurso histórico colonial (BENJAMIN, 1993).
De acordo com as suas pesquisas, Aqualtune era filha de Álvaro III Nimi a Mpanzu, rei do Congo (Mwene Kongo) durante o período de 1615 a 1622. Ele era conhecido por possuir muitas mulheres, incluindo a rainha Maria Joana Muxima Nimi a Mpanzu, e também por defender seu povo até os últimos dias de sua vida em uma série de tensões entre Portugal e o Reino do Congo. Essas tensões estavam relacionadas principalmente ao comércio de africanos escravizados e à escolha do sucessor do trono congolês (THORNTON, 1983). Após a morte de Álvaro III, seu filho Ambrósio Nimi a Ancanga não pôde ocupar o trono por ser menor de idade, assim como Aqualtune por ser uma mulher. O trono acabou sendo transferido para o seu esposo, o Duque de Mbamba Pedro II Ancanga Anvica, fazendo fomentar ainda mais os conflitos já existentes.
O rei Pedro II era um forte opositor da política portuguesa, principalmente em relação à conduta do governador de Angola, João Correa de Sousa. Isso culminou na sangrenta Batalha de Bumbi (Mbumbi), na qual se conta que a rainha Aqualtune organizou um exército e lutou bravamente. No entanto, foi derrotada, escravizada e enviada para o Brasil. Ao chegar aqui, ela ficou sabendo da existência do Quilombo dos Palmares e, em seguida, fugiu para o local levando consigo vários escravizados. Neste lugar, Aqualtune reconstruiu a sua vida, tornou-se uma líder e deu à luz aos guerreiros Ganga Zumba, Ganga Zona e Sabina, mãe de Zumbi – um dos maiores símbolos de resistência e luta contra a escravidão no Brasil (GOMES, 2019).
A escritora Sara Messias utiliza os fatos históricos para dar visibilidade à trajetória da vida de Aqualtune, com objetivo de “transportar o leitor para uma época quase esquecida, cheia de emoções e dramas épicos para que conheça por meio da ficção uma parte da história da escravidão no Brasil” (p. 288). O romance contém 311 páginas e está organizado em 25 capítulos, além de uma carta da personagem para sua cunhada Carlota, datada de 1º de outubro de 1647, e encerra com uma nota da autora.
A história é narrada em primeira pessoa, ou seja, Sara Messias atribui voz a Aqualtune, que descreve os eventos mais significativos de sua vida a partir dos sete anos de idade. A maior parte da narrativa ocorre na África, em torno da cidade de São Salvador do Congo, antiga Mbanza Congo, onde a bela princesa vive em um amplo castelo, cercada de riquezas e servos. Essa descrição se aproxima do cotidiano tradicional das princesas europeias, uma vez que o intercâmbio comercial do Reino do Congo com Portugal trouxe não apenas mudanças políticas, mas também religiosas e culturais. A autora destaca essas práticas nos primeiros capítulos romance, como no trecho a seguir:
Por outro lado, eu estava me preparando para me unir a outras damas da nobreza, porque não sabia os rumos que seriam tomados com as últimas decisões da Corte. Assim, tínhamos lições de boas maneiras, leituras da Bíblia, escrita em latim, português e espanhol, para uma boa educação da nobreza da Corte [...] Eu descia as escadas do palácio quando vi meu pai passar com uma expressão preocupada, afinal, ele é um dos possíveis candidatos a ocupar o lugar do meu tio [...] Antes de entrar na sala, fui à cozinha e ouvi a conversa de uma das servas com Augusta sobre meu tio Bernardo [...] (p. 19).
A vida de Aqualtune muda radicalmente a partir do momento em que a sua mãe morre e ela se casa com o Duque Pedro II. Ao lado dele, ela toma conhecimento dos acordos e dos conflitos internos e externos entre os reinos africanos e os europeus, assim como do comércio ultramarino de africanos escravizados. É importante observar que essa descoberta não se dá somente pela personagem, o próprio leitor vai gradualmente percebendo como ocorreram as relações, as lutas, o enfraquecimento dos reinos africanos e a consolidação do controle português sobre algumas regiões da costa africana:
[Pedro II] - Meu reino é um reino independente, embora esteja há alguns anos envolvido com os estrangeiros, por meio do comércio de ouro, marfim, pedras preciosas e tecidos. Sou neto do rei Dom Henrique I; ele foi morto defendendo esta terra e precedeu teu avô Dom Álvaro I. Quando meu avô estava no poder, ele havia estabelecido relações com os estrangeiros, brancos, em sua maioria; aos poucos, ele foi percebendo que essa gente, devagar como uma serpente, estava começando a modificar a nossa cultura, nossa gente [...] (p. 73).
Dessa forma, Aqualtune é tomada pelo desejo de fazer algo em defesa de seu povo. Ela começa a participar das discussões políticas e dos treinos do exército Mbamba, tornando-se uma grande guerreira. Entretanto, na ausência de Pedro II, o palácio de Mbamba sofre um ataque surpresa, organizado pelo governador João Correa de Sousa. Mesmo grávida, Aqualtune tenta combater a invasão lutando junto com o seu exército, mas é vencida. Como escravas, ela e sua cunhada Carlota são vendidas e transportadas num navio para trabalhar no engenho de cana de açúcar no Brasil.
A diáspora negra é um marco na história brasileira, pois de, aproximadamente, 12,5 milhões de africanos trazidos para as Américas, 40% desembarcaram no Brasil (Gomes, 2019, p. 25). A característica peculiar dos navios negreiros era conter um grande número de africanos escravizados que viajavam em condições desumanas, documentadas em vários registros históricos do período escravista, inclusive na literatura. No romance, Sara Messias traz à tona a memória da travessia negra pelo Atlântico através da voz de Aqualtune, que descreve sua viagem de 27 dias feita no porão do navio, destacando a falta de espaço e de higiene, a fome, a morte e as tentativas de rebelião organizadas pelos negros, que eram contidas com extrema violência:
Já era noite quando Carlota e eu ouvimos os comentários dos soldados que nos vigiavam; falavam com muito entusiasmo sobre o que tinha ocorrido naquela tarde com os escravos; três deles tinham matado um marinheiro. ‘’ Aqueles filhos da puta dos negros tiveram o que mereciam” diziam satisfeitos. “A rapidez com a qual o gorila”, assim definiam o marinheiro grande das cicatrizes, “interferiu foi importante para evitar que a revolta iniciada pelos três escravos de merda se propagasse. Os três escravos foram detidos imediatamente e punidos violentamente na frente de todos os outros escravos”. E detalhavam a punição severa que receberam os três heroicos homens, e o trabalho para lavar o convés que ficou coalhado de sangue (p. 211).
Como sabemos, a escravidão existiu em todas as sociedades, desde o princípio da história da humanidade, inclusive nas sociedades africanas. No entanto, a escravidão nas sociedades antigas se distingue da que ocorreu nas Américas pelo fato de que nesta última se desenvolveu todo um sistema relacionado à cor da pele e à força de trabalho exaustivo. O negro escravizado era apenas uma propriedade, uma “coisa”, enquanto nas sociedades africanas, por exemplo, o escravizado poderia ascender e até ocupar altos cargos administrativos.
Quando Aqualtune desembarca no Porto do Recife (PE), um dos maiores locais de desembarque, compra e venda do tráfico de africanos escravizados nas Américas, em seguida é enviada para a fazenda e engenho Bom Sucesso, localizada na cidade Lazareto de Santo Amaro. Lá, ela se depara com a triste realidade do cotidiano dos escravizados no Brasil: muito trabalho, pouca comida, horas de descanso escassas e constantes violências físicas e psicológicas. No meio desse ambiente hostil, Aqualtune encontra forças ao lado do indígena Fabiano, por quem acaba se apaixonando. Com a sua ajuda, ela organiza na fazenda uma fuga em massa da fazenda para o Quilombo dos Palmares, o maior e o mais importante reduto de escravizados fugidos no Brasil colonial.
É importante observar que é no Quilombo dos Palmares que Aqualtune entra em contato com as crenças e práticas tradicionais africanas. Apesar das imposições religiosas no Brasil, os africanos continuaram rendendo culto às suas divindades (orixás), que serviram para manter viva a cultura africana como uma forma de resistência. Assim, a personagem principal acaba encontrando outra África em território brasileiro, na qual foi possível reconectar-se com a sua ancestralidade e consigo mesma, decidindo permanecer para lutar contra a escravidão no Brasil, conforme se nota a seguir:
A escravidão faz parte da minha vida porque foi vista e vivida. Aqui conheci meu povo, aqui me senti africana verdadeiramente pela primeira vez, e o mais estranho é que eu tive que sair da África, para me tornar africana. Cresci numa cidade mista com modos e costumes trazidos pelos portugueses e eles tinham mudado o nosso modo de vestir, de falar; mudaram a nossa música, a nossa dança e mesmo na comida a influência portuguesa se fazia sentir. Em tudo estavam presentes. Todavia, nesta terra chamada Brasil, conheci a dança africana e a sensualidade dos seus movimentos, a música do meu povo com os sons dos tambores e atabaques, onde cada batida toca a nossa alma e te faz sentir viva; aqui experimentei a comida de sabor rico e picante do meu povo; aqui aprendi a rezar com a particularidade de fazer orações aos Santos e aos Orixás quase ao mesmo tempo porque Acotirene me ensinou que Deus é todas as coisas e todas as coisas desta terra nos leva a Deus (p. 263).
Outro aspecto que merece atenção no romance é a presença da personagem histórica Acotirene. Ela foi uma das primeiras mulheres a habitar os povoados quilombolas da Serra da Barriga, em Alagoas (Rosa e Silva; Bonfim, 2007). Acotirene foi fundadora, matriarca: uma personalidade feminina importante na história da formação dos quilombos no Brasil. Com ela Aqualtune toma conselhos, aprende mais sobre a escravidão no Brasil, sobre liberdade e espiritualidade, mas também compartilha suas sabedorias e estratégias de batalha, tornando-se sucessora de Acotirene.
Assim, no quilombo, Aqualtune reconstrói a sua vida ao lado do indígena Fabiano, que ajuda a criar os gêmeos Pedro Zumba e Álvaro Lona. Com ele, Aqualtune tem mais duas filhas, Sabina e Muxima. No desfecho da narrativa, Muxima desaparece, criando um mistério que pretende ser desvendado em Sabina: prisioneira do passado, o segundo de um total de cinco livros do projeto da saga afro-brasileira da escritora Sara Messias, que também promete mesclar relato histórico e ficção. Convida-se, então, o leitor a conhecer um pouco mais sobre o povo negro no Brasil, sobre a história de resistência e, principalmente, sobre o protagonismo da mulher negra nessa trajetória de luta que ainda não acabou.
Pelotas, maio de 2024.
Nota
* Aqualtune: um sonho chamado liberdade é o primeiro de um total de cinco romances nos quais a autora pretende recriar a trajetória de outras personalidades negras femininas que foram ignoradas na História oficial, como Dandara e Sabina.
Referências
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. v.1.
GOMES. Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Vol. I. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
MESSIAS, Sara. Aqualtune: um sonho chamado liberdade. Bahia: Quarteto Editora, 2019.
ROSA E SILVA, Enaura Quixabeira; BOMFIM, Edilma Acioli (Org). Dicionário Mulheres de Alagoas: ontem e hoje. Maceió: EDUFAL, 2007.
THORNTON, John K. The Kingdom of Kongo: civil war and transition. 1641-1718. University of Wisconsin press, 1983.
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** Mara Lívia Farias Cardoso é Doutoranda em Letras na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.