Fúria cinematográfica
Eduardo de Assis Duarte*
Não havia nada em que pudesse
se segurar, tudo apresentava perigo:
os fios de alta tensão sobre sua cabeça,
o apoio vacilante sob os pés,
os obstáculos que cruzavam velozmente
o seu caminho.
No entanto, estar ali, sobre aquele trem
de balançar contínuo
e ranger de velhas latarias,
de cócoras,
feito surfista numa prancha em pleno mar,
dava-lhe uma sensação só sentida por ele
a cada estação alcançada, a cada curva vencida,
a cada fio de alta tensão de que
conseguia se desvencilhar.
Ser surfista de trem da Central do Brasil
era o seu barato da hora, sua tomada de decisão.
Que importava os que não conseguiam
completar o ciclo da grande aventura
e morriam eletrocutados,
presos aos grossos cabos elétricos,
completamente tostados?
Ah, ele não!
Ele era o esperto, era o foda.
Caniço:
assim os amigos o chamavam
Retirada dos primeiros parágrafos de Toda fúria, novo romance de Tom Farias, a descrição-inscrição acima funciona ao mesmo tempo como metáfora da personalidade e sumário da trajetória do protagonista. Ao longo da narrativa, o menino de 16 anos – órfão de pai e mãe e cria das ruas da metrópole contemporânea dominada pelo crime organizado – se equilibra como pode entre os malfeitos, perigos e prazeres da marginalidade. Por sua vez, o velho trem suburbano em cujo teto o garoto “surfa” é também ele a imagem de uma sociedade carcomida por velhos vícios e carente não apenas de portas e janelas mais seguras, mas, sobretudo, de novos trilhos e rumos por onde conduzir seus habitantes.
Batizado “Eduardo Meireles – nome bonito, de gente grande, como dizia sua avó, Dona Maria Fernandes” (p. 8), mas atuando como verdadeiro “caniço”, o surfista ferroviário de Tom Farias passa distante dos idealizados “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, futuros combatentes por um mundo mais justo. No entanto, como Pedro Bala ou o bem-intencionado “professor”, que só roubava livros a fim de lê-los à noite para os companheiros de infortúnio, é filho da fome e do abandono, a buscar abrigo entre comparsas mais velhos e experientes. Em sua configuração semântica, “caniço” abriga o sentido de vegetal fino e longo, usado até mesmo como vara de pescar, o que não fica muito distante da atividade que ele realiza com maestria em bolsas e carteiras dos “otários”. Mas vincula-se igualmente à fragilidade e à magreza dos que cresceram marcados pela desnutrição, a exemplo de seu parceiro, sintomaticamente cognominado “Ossada”.
A princípio, o pivete transita entre o deprimente barraco suburbano da avó, num morro cercado de lixo e bocas de fumo, e as praias e calçadas da Zona Sul carioca, igualmente vista pelo avesso, com seus abrigos diurnos e noturnos lotados de “sem teto”, além de ruas e calçadas marcadas pela presença do tráfico e seus clientes de todos os tipos, servidos pelos “aviões”. Isto sem falar do Copacabana Pálace, cenário de um dos capítulos iniciais, em que, levado por um gringo, o futuro soldado do tráfico descobre não só o contraste delineado pelo luxo dos aposentos e a fartura do frigobar, como a carteira recheada de euros que o levará a novo furto, à delegacia e ao retorno ao “reformatório” da Ilha do Governador. Já de início desenha-se, pois, a cidade cindida não apenas entre o sul burguês e o norte proletário, mas nos muitos espaços – sempre mediados pela delinquência – em que riqueza, pobreza e miséria compõem os ambientes corroídos pela fragmentação da cidade outrora maravilhosa.
A passagem pela prisão de menores infratores, que ostenta sarcasticamente a denominação de “Instituto Padre Severino”, escancara o projeto estético condutor da narrativa, no qual não há espaço para condescendentes meios termos. Em lugar da propalada ressocialização, Caniço e Ossada encaram a rotina de fome e pancadaria no infecto subsolo destinado aos reincidentes, espaço muito próximo das conhecidas “solitárias”, até o primeiro se submeter às ordens do diretor... Também este nada mais é que um meliante (!), acobertado pela “proteção que recebia da milícia e do apoio de parlamentares corruptos, que tinham imposto ao governo estadual a sua nomeação” (p. 78). E que, postado em sua chefia, fatura na calada da noite bem mais que o salário de funcionário público, colocando o adolescente para vender drogas nas cercanias do baixo meretrício carioca... tudo isto com o apoio operacional de agentes da lei e a vigilância de milicianos.
No duro aprendizado entre delinquir ou morrer, o menino se equilibra fazendo o romance caminhar entre a surpresa e o sobressalto. Nas saídas noturnas a serviço do canhestro diretor, Caniço consegue esconder alguns reais subtraídos aos poucos do movimento diário, que irão mais tarde comprar sua fuga e do “parça” junto a um velho funcionário, igualmente corrupto. É também no papel de avião enrustido que se aproxima da futura namorada, Robertinha, companheira de infortúnio residente com a progenitora num barraco nas margens dos trilhos da Central do Brasil. Mãe solo aos 17, o relato de seu parto propicia ao texto a inscrição racial até então subtendida:
– Rodei igual perua bêbada para parir esse moleque. Neguinho olha pra gente e diz logo que não tem vaga. Moleque, nem te digo: o racismo é fogo. Basta a gente ter uma corzinha um pouquinho mais queimada e pronto, estamos fora da parada. Rapá, quase que esse molequinho nascia no ônibus a caminho da maternidade. [...].
– Caraca, fiquei cinco horas a fio numa fila de espera cheia de dor. Tava vendo a hora do moleque nascer no corredor do hospital, comigo sentada numa cadeira (p. 98).
Num país em que a pobreza e a marginalidade têm cor predominante, comprovada pelas estatísticas das prisões e reformatórios, o relato da garota pode até soar redundante. Mesmo ciente do risco, o autor não renuncia à perspectiva crítica que alarga o horizonte da narrativa ao fazer a interseção entre classe, gênero e raça. Com isto, amplia o problema e abre o leque da desigualdade a toda uma juventude desvalida e carente de direitos mínimos de cidadania, a surfar na incerteza da precariedade a que estão condenados.
Consumada a “evasão” dos dois infratores, será justamente a jovem mãe solo a ponte entre os fugitivos e o chefe do tráfico no Morro da Providência, onde concluem sua “formação” e ganham moradia definitiva. Sob a proteção do líder, o garoto mostra seus talentos e, às pressas, cresce, tornando-se verdadeiro “caniço pensante” (Pascal), para ganhar novo codinome – “Capitão” – sujeito de confiança sempre ouvido nos preparativos das ações e referência explícita aos personagens de Jorge Amado.
Construídos por uma poderosa voz extra diegética, os personagens têm seu existir moldado pelas urgências da ação, não se detendo o texto em mergulhos na consciência, memória ou impasses existenciais. A fúria presente no título dá o tom e o ritmo da guerra sem tréguas ou heróis em que estão mergulhados. Como num filme policial, cada instante pode ser decisivo e, mesmo nos momentos em que se divertem, é preciso atenção e coragem para namoro ou paquera. O clima de permanente confronto conduz o texto e até o “Funk da Provi” ou a festa de aniversário do chefe ou “parça chegado” são vigiados todo o tempo por portadores de fuzis AK 47 estrategicamente postados no entorno ou mesmo no salão em que dançam as meninas da quebrada.
Primeira favela do Rio de Janeiro e local pacato em tempos idos, o Morro da Providência se torna campo de batalha e figura como metonímia de tantos espaços periféricos das metrópoles brasileiras contemporâneas, em que a polícia, quando não se corrompe, é recebida a bala e tem que entrar protegida pelo “caveirão”. Nos últimos capítulos, “a chapa esquenta”, impera a violência que, no caso, tende mais para o clima de Cidade de Deus, de Paulo Lins, do que para o sadismo presente em muitas páginas de Rubem Fonseca ou Patrícia Melo. Mas há momentos em que é impossível não lembrar de Tropa de elite, quando o combate cresce e até helicópteros entram na ação. O final – digno de Tarantino – fica resguardado para a leitura do romance, já que resenha não comporta spoiler.
Enfim, Toda fúria se propõe a retrato nu e cru do que nos compromete enquanto projeto de sociedade. O realismo extremo de muitas passagens deixa exposto o propósito de denúncia que embasa o texto. Nas precisas palavras de Paulo Scott apensas ao livro, o romance contém um “poderoso balanço sobre o permanente processo de fragmentação do projeto ético delineado para a maioria da população, sobretudo para a parcela negra e indígena, estabelecido como um enigma intransponível (cuja linguagem é justamente a não linguagem, a brutalidade diuturna e inesgotável, a violência).” Ou seja: leitura obrigatória nesses tempos de crime organizado a se infiltrar no mundo político e figurar como verdadeira subversão das instituições.
Belo Horizonte, maio de 2024.
Nota
1. Uma versão reduzida desta resenha está publicada em O Globo, de 11/05/2024, Segundo Caderno, p. 5.
Referência
FARIAS, Tom. Toda fúria. São Paulo: Gutemberg, 2023.
_________________________
* Eduardo de Assis Duarte é Professor Colaborador do Pós-Lit FALE-UFMG. Autor de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (2. ed.,1996) e de Literatura, política, identidades (2005). Organizou, entre outros, Machado de Assis afrodescendente (3. ed. rev. ampl., 2020), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2. Reimpr., 2021, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019) e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2. ed., 2019).