Via Ápia: a Rocinha é o mundo!

 

Mikaella Pereira da Silva*

 

Via Ápia, é o primeiro romance escrito por Geovani Martins. Seu  livro anterior, O sol na cabeça, lançado em 2018, reúne treze contos que tomam como cenário a cidade do Rio de Janeiro e abordam temas polêmicos como o uso de drogas, a vida de crianças e adolescentes na favela e a discriminação racial. Lançado por uma grande editora, O sol na cabeça deu visibilidade nacional ao autor, hoje uma das revelações da ficção brasileira contemporânea.

Em Via Ápia, nome de uma das ruas mais movimentadas da comunidade, o romance, aprofunda ainda mais  essas temáticas, e toma como eixo central a visão de cinco jovens sobre a instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) e suas implicações na vida dos moradores da Rocinha.

O livro é dividido em três partes datadas: a primeira parte traz a expectativa da chegada da UPP; a segunda, as implicações que a instalação trouxe para a vida dos moradores; e a terceira aborda a saída da polícia e a volta dos bailes funk. Cada parte apresenta em comum as mudanças ocorridas não apenas no espaço em que vivem, mas também na vida dos personagens e em suas perspectivas de vida e sonhos.

Além disso, com uma linguagem recheada de gírias presentes na oralidade carioca, o autor cria uma aproximação entre leitores e os personagens Wesley e Washington que são irmãos –, além dos amigos Murilo, Douglas e Biel, e os transporta para uma verdadeira roda de conversa narrada pelos garotos.

A abordagem, às vezes cômica, possui temáticas sérias sobre a vida de jovens pretos e favelados e como eles são vistos pela sociedade, a dificuldade de estarem em locais frequentados majoritariamente por pessoas brancas e ricas, as desigualdades sociais e a violência sofrida nos embates com a polícia.

Na favela da Rocinha, esses personagens enfrentam as preocupações que os cercam, como a de manterem as despesas da casa junto com suas mães ou se virarem sozinhos. Mas a obra não se detém somente nos problemas enfrentados e se volta também para os sonhos e a vontade de crescer profissionalmente e de criar perspectivas de vida melhores.

Em meio aos conflitos da vida cotidiana, eles se divertem e encenam durante o texto o uso da maconha que perpassa toda a história, descrito inicialmente de maneira mais constante, associada à liberdade, e depois, com a chegada da UPP, à atenção e ao medo cotidiano de serem “pegos com flagrante”; em seguida, à escassez e à dificuldade da entrada da droga numa das comunidades mais visadas do Rio de Janeiro. Por outro lado, a repressão provoca a rarefação da oferta e, consequentemente, a perda de qualidade do produto, o comércio diminui, mas não os impede de continuarem utilizando.

Dentre os cincos personagens principais, é importante destacar o papel da mãe de Wesley e Washington para a criação dos dois irmãos. Mãe solo, Dona Marli, é empregada doméstica, criou os dois filhos sozinha e, assim como muitas mães pretas moradoras da favela, aconselha para que eles tomem cuidado ao usar drogas, com medo de que fossem presos ou “virassem bandidos”, pois, sabia como eram as abordagens policiais dos jovens pretos. Criou os dois para que trabalhassem e buscassem empregos de maior estabilidade, com carteira de trabalho assinada.

Entretanto, Dona Marli também é o retrato da mãe afetada pela desigualdade social e que demonstra o cansaço de ter passado uma vida inteira trabalhando para os outros e não ter conquistado algo só seu, como a casa própria:

Eu não vou pagar aluguel a vida toda não, meu filho, não mesmo. Daqui a pouco fico velha, não posso mais trabalhar, vou fazer o quê? Preciso garantir logo um canto pra mim.

O fato de a mãe ter começado a trabalhar antes dos dez anos de idade e mesmo assim não ter uma casa própria sempre deixava Washington cheio de ódio desse mundo. (MARTINS, 2022, p. 44-45).

A indignação dos filhos em relação à vida que a mãe leva evidencia as desigualdades sociais sofridas desde cedo e serve de motivação para os dois trabalharem buscando realizar a vontade dela.

Por apresentar sempre a perspectiva de um dos personagens, o texto nos permite notar a diversidade dos moradores que vivem na Rocinha, além de nos aproximar de suas vivências, seus dramas e alegrias. É através deles que se pode conhecer os espaços, a vida corriqueira dos trabalhadores e a existência de uma hierarquia de comando dentro da comunidade que possibilita uma sensação de proteção, bem diferente da sensação presente com a invasão da polícia, provocando tensão pelo constante estado de alerta ao caminharem entre as ruas e becos daquele espaço.

Geovani escreve o livro sobre a favela, para a favela e para todos que se interessam em entender um pouco mais sobre esse ambiente. Ao inscrever, através dos seus personagens, a perspectiva de dentro da comunidade ele mostra os preconceitos que cercam os moradores desse espaço. A distribuição dos exemplares dentro das comunidades, como tem feito, dá a chance de as pessoas se conectarem às obras literárias e seus personagens, reconhecendo as lutas em comum. Por mais que a história se passe entre os anos 2011 e 2012, é possível perceber que grandes questões sociais ainda permanecem. A tragédia que assola a vida de Dona Marli e Wesley ao perderem Washington por uma bala perdida a caminho do  trabalho, por exemplo, continua assombrando milhares de famílias em todas as partes do país, mas sabemos quem essas balas perdidas sempre acertam com mais frequência e em quais regiões e, o pior, que essas vítimas acabam por serem apenas uma estatística.

E é a partir de seu romance que as pessoas de fora daquela realidade, podem questionar como e se foi realmente necessária a intervenção policial dentro da comunidade. Ao longo da história, nós percebemos que as balas atravessam toda a Segunda Parte e afastam as pessoas da rua, de seus espaços, gerando um silêncio incômodo no morro. Não se vê mais moto táxis e comércios foram fechados pelo medo da ação policial. Diferentemente da Primeira Parte em que se encontram apenas jovens tentando viver de seu trabalho e se reunindo para assistirem um futebol e fumar um “beck” tranquilos após um dia cansativo, livres para circularem e curtirem uma praia com os amigos.

É através de Via Ápia que descobrimos que “A Rocinha é o mundo”!

Belo Horizonte, junho de 2023. 

Referência

MARTINS, Geovani. Via Ápia. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 

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* Mikaella Pereira da Silva é graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e mestranda em Letras, Literatura de Língua Portuguesa, pela mesma Instituição.

 

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