“Ser mulher nesse mundo de ‘machos’”:

Lílian Paula Serra e Deus indaga Os caras da casa de vidro

 

 


Wellington Marçal de Carvalho*

 

 

 


caneta para cicatrizar

aquela dor.

escrevi nas asas

a palavra liberdade

e o pássaro de fogo voou.

Lílian e Deus

 

Lílian Paula Serra e Deus é mineira de Belo Horizonte, nascida em 1980, graduada, mestre e doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas, tendo sido orientada pela Professora Maria Nazareth Soares Fonseca. Foi professora do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, integra o corpo de pesquisadores do Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED/CNPq), além da equipe de apoio responsável pelo literÁfricas (www.letras.ufmg.br/literafro/literafricas).

Atualmente reside em Salvador-BA e leciona no campus Malês, como professora adjunta, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).

Como pode ser visto na parte específica sobre ela na aba ‘autoras’ do Portal literafro (http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/1496-lilian-paula-serra-e-deus), Lílian e Deus é autora, no campo da ficção, da obra de poesia A palavra em preto e branco (2017), do volume de contos Não é preciso ter útero para ser mulher (2020) e integra importantes antologias: em Cadernos Negros v. 42 (2017) com o conto “Necropolítica”, em Cadernos Negros v. 43 (2020) com o poema “Nem desse lado, nem do lado de lá”, bem como, no volume Pela janela do quarto: visões da quarentena (2020) com o conto “Até que a morte os separe”.

Pode-se constatar, no projeto literário de Lílian e Deus, o labor estético com questões estruturantes da sociedade brasileira e do lugar da mulher na tessitura social. Desde seus textos primeiros já se alinhava uma voz enunciativa corajosa e insurgente desenhando uma palavra que resiste à hipocrisia, que se recusa a seguir os ditames do patriarcado, que encena a insubmissão de vozes-mulheres que não aceitam amarras de nenhuma ordem. O conjunto da obra figura, de forma tenaz, uma estética da resistência.

Há um aspecto reiterado em muitos momentos pela própria escritora que é o fato de a escrita literária funcionar para ela como um móbile de cura. Em trecho da entrevista concedida pela poeta, escritora, mãe, intelectual, pesquisadora e professora universitária afro-brasileira, publicada no volume 14, número 2, de 2021, da Igarapé: Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade, é possível apreender o sentido atribuído por Lílian e Deus ao gesto escritural:

Eu sou na escrita, [...]. Eu existo a partir desse lugar que para mim é cura, mas também é um lugar político, um lugar de existência, ressignificações e resistência. Nunca acreditei em uma literatura dissociada da política. Mesmo quando não há uma motivação política explícita em um texto literário, ele é político por partir de uma intenção ingênua de não o ser (DEUS, 2021, p. 270-271).

Naquela mesma entrevista Lílian e Deus compartilhou informações sobre seus projetos literários em andamento, notadamente sobre o que viria a ser o primeiro romance de sua autoria:

Sim, estou escrevendo meu primeiro romance. Nele, os grandes protagonistas serão uma mulher negra de pele clara, lida como parda pelo IBGE, e a história do país, que tento (re)contar a partir da ótica dessa mulher. As experiências sociais dessa mulher são diretamente atravessadas pelas políticas dos vários governos desse país, o que parece óbvio, mas, muitas vezes, numa sociedade adoecida como a nossa, não fazemos essas conexões. Muitas vezes não se enxerga que o homossexual assassinado na esquina teve sua morte avalizada pelo presidente; que o fato do Brasil ser um dos países com o maior número de feminicídios do mundo estabelece uma relação direta com o golpe de 2016 ou com fala do presidente atual sobre o nascimento de sua única filha, segundo ele, resultado de uma fraquejada; que a bala que sai da arma do policial e encontra o corpo de um menino preto atende a um projeto genocida de Estado; que a pessoa que se contamina em um metrô ou ônibus lotado, em meio a pandemia, e morre por Covid tem cor, raça e classe social definidos dentro dessa estrutura perversa que se inicia lá em 1500. Essa é a “história” que quero contar (DEUS, 2021, p. 275-276).

Eis que, em meados de julho de 2022, pela Editora Patuá, Lílian e Deus coloca na rua Os caras da casa de vidro, romance desafiador em vários sentidos, estrategicamente escrito, como afirma a autora na folha do colofão

[...] para sobreviver ao caos

que é o Brasil

esse Brasil que odeia mulheres

que odeia pretos

pra sobreviver às pandemias desse país que não se trata

pra elaborar o meu caos, eu escrevo

eu sou na escrita

existo a partir desse lugar que para mim é cura

mas também é um lugar político

escrevi para sobreviver ao Brasil

mas não sei se sobrevivi (DEUS, 2022, p. [148]).

Imbricam-se, pelo menos, duas histórias na narrativa com forte recurso à memória dessa personagem principal, mulher de quarenta e poucos anos. As visitas aos fragmentos de recordações de sua própria vida de menina sem mãe são entremeadas à história, igualmente residual, da tal casa de vidro e seus vários ocupantes/residentes. A habitação oficial do chefe do poder executivo federal, a casa presidencial, é esquadrinhada por uma narradora presa em um apartamento em tempos de isolamento social por conta das medidas de segurança sanitária decorrentes da pandemia da Covid 19.

Que impactos podem ter os discursos e decisões emanados dos que habitam a casa de vidro, nos distintos tempos, na vida ordinária de uma mulher negra de pele clara e trancafiada em sua morada? Quais recursos essa mulher utilizaria para resistir aos processos de apagamento, de coisificação, de anulação, de negação ao direito de existir, impostos a sua pessoa?

São muitas e lancinantes as questões propostas e enfrentadas pela letra-navalha de Lílian e Deus em Os caras da casa de vidro. Quem tiver coragem para entrar nesse universo, o faça já! Todos nós, de alguma maneira, somos parte dele, ainda que não tenhamos, ou dissimulemos, ter nos dado conta.

Belo Horizonte, dezembro de 2022

 

Referências

DEUS, Lílian Paula Serra e. Os caras da casa de vidro. São Paulo: Patuá, 2022. 143 p.

DEUS, Lílian Paula Serra e.  Escrita enquanto móbile de cura: entrevista com Lílian Paula Serra e Deus, mineira, mãe, escritora, poeta, intelectual, pesquisadora, professora universitária afro-brasileira, concedida a Wellington Marçal de Carvalho. Igarapé: Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade. Porto Velho, RO. v. 14, n. 2. jun. 2022. p. 267-277. Disponível em: http://www periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/view/6450. Acesso em: 09 dez. 2022.

DEUS, Lílian Paula Serra e. [Aba ‘autoras’]. Literafro: o portal da literatura afro-brasileira. 2022. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/1496-lilian-paula-serra-e-deus. Acesso em: 09 dez. 2022.

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*Wellington Marçal de Carvalho é Pós-Doutor em Estudos Literários pela FALE/UFMG. Doutor e Mestre em Letras pela PUC Minas. Graduado em Letras pela Newton Paiva. Bibliotecário coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária UFMG. Integrante do Grupo de Estudo Estéticas Diaspóricas (GEED/CNPq) e do Grupo de Estudo NERSI/ECI/UFMG. Autor de: Aquele canto sem razão: espaço e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso (2014) e A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2018). Coorganizador de Deslocamentos estéticos (2020). Integrante da Comissão editorial do literÁfricas. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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