Na potência das águas: contos de Mel Adún

Elisangela Aparecida Lopes Fialho

 

O livro de Mel Adún, Peixe fora da baía, publicado em 2021, pela Editora Ogum’s, da qual a escritora é uma das fundadoras, é composto por dezesseis contos que encerram as múltiplas formas do protagonismo de mulheres negras, na vida-ficção. Suas personagens travam batalhas diversas – íntimas e sociais – muitas vezes em busca de se (re)conhecerem, se (re)encontrarem.

Os textos que compõem a obra vão além da forma tradicional do conto. Em “Menininha”, a narrativa se irmana à maneira dramática, na qual o leitor acompanha uma trajetória circular, percorrida por Maria do Socorro, de saída e retorno às origens, familiares e religiosas, já que ela, como filha de Oxum, cumpre as palavras de sua bisa Bal: “a água sempre encontra um meio” (p. 29). Já em “Tempo”, é por meio do monólogo que Carol reflete sobre si, sob o peso das construções sociais, ao afirmar: “O corpo dos 40 é um corpo novo, com a memória indelével da vida balzaquiana” (p. 63), mas sabemos que na voz dela, há outras.

A voz poética e potente de Mel Adún também vem de longe… Em “Carta para Conceição”, uma cumplicidade se expressa entre remetente e destinatária, e entre ambas e nós leitoras, marcando o traço lírico dessa voz coletiva que se irmana pela maternidade: “ser mãe ou pai de uma criança preta exige mais do que estômago, exige corpo, mente, soul” (p. 81), exige registro capaz de se sustentar entre a poesia e a prosa.

A violência social, especialmente contra mulheres negras, é um tema que atravessa os contos e nos dilacera, ao longo da leitura de Peixe fora da baía. Ela se faz presente algumas vezes sob véus (quase impenetráveis) no discurso e no ato de posse do corpo feminino, por parte de um homem muito educado que cultuava a família, e também por outro, sob a justificativa dos ciúmes como sinônimo de amor.

A morte, seja ela física ou simbólica, revela-se no impedimento do desejo entre mulheres, no abandono, no extermínio: “Aqui, onde nem todos os santos juntos conseguem segurar o dedo de quem puxa o gatilho e mata os que poderiam ser seus próprios filhos” (p. 81), mas também como reflexão sobre a resistência, expressa na cotidiana ação de morrer e renascer, como ocorre em “Idílio”.

Em meio à complexidade de nascer, perder, sobreviver e renascer, é pelas raízes identitárias que Mel Adún constrói “Ela de vermelho”, conto no qual a sensação de “estar no lugar errado, como se alí não pertencesse” (p. 73), leva Luzia ao encontro de sua verdadeira identidade, pautada no aspecto físico e religioso, e assim resplandecer. Tristão, personagem do conto homônimo, também se reinventa e se reencontra em um detalhe escrito no seu documento civil. São ambos “peixes fora da baía”, mas, como as águas, sempre encontram um meio.

A autora imprime nessas histórias os saberes da religiosidade de matriz africana, tanto na presença dos orixás, mães de santo, e ritos, como na referência a mulheres-guias, aquelas que sabem do inefável: destinos?

Um humor inteligente marca, por exemplo, o primeiro conto do volume: “Destino”. Nele, Adún brinca com o senso-comum, ao promover o encontro de dois jovens, cujo modo de pensar, agir e sobretudo as visões de mundo são muito similares (destino?). Todavia, a aparente perfeição não dura uma noite sequer, ao final da qual a personagem feminina põe em jogo um novo sentido para o termo “pagar com a mesma moeda”.

É também no cotidiano (a princípio trágico) que nasce a simplicidade do amor para Zefinha, e da rememoração – em “Águas lembranças” – tal sentimento se faz presente mesmo na ausência, como as águas que teimam em achar um meio, como diz bisa Bal, até mesmo um meio de se encontrar com a baía.

Pouso Alegre, março de 2022

Referência

ADÚN, Mel. Peixe fora da baía. Salvador: Editora Ogum’s, 2021.

 

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* Elisangela Aparecida Lopes Fialho é Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas, Professora do IFSULDEMINAS - Campus Pouso Alegre e pesquisadora do Portal literafro. É coautora, entre outros, de Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed. 2019) e Literatura afro-brasileira: abordagens na sala de aula (2. ed. 2019).

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