Xiré literário:
as narrativas orais se convertem em escrita e se eternizam

 

Alen das Neves Silva*

 

A antologia Contos de Axé, organizada por Marcelo Moutinho, reúne autores contemporâneos com ancestralidade literária negra. Estes materializam e eternizam a oralidade africana dos orixás e o resultado são narrativas que movimentam os leitores em Xirés, Olubajés, nos quais as palavras, as frases, enfim, cada ideia e emoção expressas são considerados como filhos dos Orixás.

A obra de Marcelo Moutinho é a materialização da essência do Candomblé, pois apresenta as dores, as belezas e as felicidades que o povo de santo vivencia em seu dia a dia. Por meio de uma linguagem simples e contundente, cada um dos autores e autoras escolhidos recontam, de forma contemporânea, o mito do Orixá que lhe foi destinado. Ou melhor, como ocorre em um terreiro, ao Orixá que cuida de sua cabeça.

Nesta coletânea, o leitor terá a oportunidade de entrar em contato com dezoito expoentes de nossa literatura e do pensamento socio-filosófico negro, como, entre outros, Nei Lopes, Miriam Alves, Edimilson de Almeida Pereira, Eliana Alves Cruz, Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior e Adil Araújo Lima. Autores e autoras que, com uma escrita cirúrgica, trazem à presença dos leitores as energias que cada um dos Orixás possui. Quando se inicia a leitura desta obra, deixa-se de ser um leitor comum, para tornar-se um iaô1 e aprender com os ensinamentos que os mais velhos possuem, e estão oferecendo.

A obra se inicia com um conto dedicado a Exu, que é o guardião das entradas das cidades e finaliza com um dedicado a Oxalá, o criador dos seres humanos e o Orixá mais velho do panteão afro-brasileiro. No trajeto do livro, é possível vivenciar situações como a traição, o abandono, o acolhimento, a guerra por poder e por amor, a sedução e muito aprendizado sobre a condição do negro na sociedade brasileira. A ambientação periférica que os autores concedem aos mitos de cada uma das divindades é o elo da oralidade com a escrita, pois atualizar é uma forma de manter as memórias, e este processo é mais eficaz quando coloca frente a frente, o passado e presente visando gerar um futuro perene.

As narrativas de Contos de Axé incitam reflexões sobre o que é ser negro, entender-se e se aceitar parte desta parcela da sociedade e, jamais, sentir vergonha em expor sua história, ou melhor histórias. Os textos descrevem a circularidade que é fundamental para as religiões de matriz africana. Desta forma, em cada conto o leitor será convidado a adentrar neste círculo e integrar-se aos sentimentos e às sensações que os praticantes destas religiões vivenciam em teus corpos.

No conto de abertura “Crisálida”, de Gustavo Pacheco, o arquétipo de Exu se materializa na mescla entre os garotos e as bicicletas, pois as cores vermelhas e pretas são o símbolo deste orixá que, assim como os garotos, é conhecedor dos caminhos que fazem a intermediação entre os do asfalto e os do morro. No conto lê-se:

Pouco depois, vimos dois garotos, cada um montado em uma bicicleta enferrujada, uma preta e outra vermelha. Pela cara dei que tivessem no máximo quinze ou dezesseis anos. Antes de eu puxar conversa, os dois já haviam notado a nossa presença e olhavam pra gente, mudos, imóveis mais com desconfiança do que com curiosidade. (p.16).

Já em relação à intermediação, o trecho a seguir demonstra claramente a atuação dos meninos-exu, pois o jovem que solicitou o contato com alguém responsável para conseguir a maconha boa, relata assim:

Graças a Deus o garoto da bicicleta preta voltou logo, com Jorginho na garupa. Era um cara de uns trinta e poucos anos, cabelo pixaim e braços musculosos. Opa, disse ele, oferecendo a mão. Apertei a mão dele mecanicamente e me surpreendi com a pressão dos dedos. Ele repetiu o gesto com ela e disse, Então, vocês estão querendo uma massinha, é? É, é sim, eu disse. Tá bom vem cá comigo, ele disse, indicando com a cabeça o caminho à esquerda. Valeu, hein, eu disse para os garotos. Os dois me olharam com a mesma expressão vazia e o da bicicleta preta murmurou, Beleza, té mais. (p.17).

Neste trecho, a relação com Exu fica nítida, pois os garotos são os que conduzem o pedido ao líder do morro. No final do diálogo, um deles deixa implícito que os jovens irão procurar outras vezes, ao utilizar o “té mais” e não o “Adeus”. A necessidade de sempre se contactarem e conectarem com o mensageiro ocorrerá de forma orgânica. A união entre a oralidade e a narrativa pode-se perceber pela escolha dos garotos para cumprirem esta função. O mito do senhor das encruzilhadas faz-se presente já na abertura da obra, pela fala do organizador: “Exu é o patrono da comunicação, da mobilidade e da transformação” (p.13). Esta afirmação será trabalhada e ampliada durante todo o conto, trazendo aos leitores outras características deste Orixá, como a expressa pela personagem feminina presente na cena: “Que pinto enorme este menino tem, ela disse baixinho, rindo”. (p.19).

Girando neste Xiré, o leitor irá se deparar com o tocante conto de Jeferson Tenório sobre Ogum. A relação de Tenório com Ogum já vem de sua pele, ou melhor do avesso da pele. Ele o sente por todo o corpo e o materializa no conto intitulado “Ogum à beira-mar”. No mito que precede o conto, irá ler algumas características atribuídas a este Orixá. Mas nas linhas a seguir tem-se o elo em que Tenório se apoia para construir seu Ogum literário, assim o mito diz que, “Ogum é impulsivo, mas também obstinado. Às vezes profundamente calmo, às vezes irascível. Solitário, mas também alegre e festeiro. A jura mais solene é aquela feita aos pés de Ogum” (p. 35). No conto, Tenório expõe o quão injusto pode ser o ser humano e que a compreensão da cultura e da fé do outro vai até a sua necessidade, mas o preconceito ainda prevalece quando é da essência do sujeito. Jeferson traz a dualidade humana e demonstra que os orixás são o reflexo dos homens. No conto, Otávio busca auxílio com uma mãe de santo que é mãe de um de seus funcionários. No trecho abaixo tem-se a representação do mito que precede o conto e o autor consegue transformar em palavras-memórias as falas-memórias sobre Ogum:

Ao descobrir isso, Ogum se envergonhou do que fez. Então, de frente para o mar, jurou sempre defender todos aqueles que sofrem com as injustiças e discriminações. Quando minha mãe terminou de contar, Otavio parecia mais incomodado e perguntou se ela achava aquela história bonita, se ela achava certo que um orixá saísse cortando a cabeça das pessoas, só porque não queriam falar com ele. Minha mãe parecia já esperar por um questionamento daqueles, então disse que os orixás nunca foram exemplos de virtudes divinas. Os orixás refletem o pior e o melhor de nós mesmos. Ao dizer isso, Otavio perdeu o interesse e voltou a olhar para a janela. (p. 43).

É nítida a discussão sobre a essência do humano – boa ou má – que propõe Jeferson e ter o intermédio de Ogum é trazer à baila a noção de justiça, pois ser justo é compreender que não somos inteiramente maus e nem inteiramente bons, mas que devemos sempre tentar dirimir a maldade e expandir a bondade.

Nos Contos de axé, o leitor irá se deparar com situações de rejeição e acolhimento. Paula Gicovate, atualiza a história de vida de Omolu, que é rejeitado pela mãe Nanã Buruku e encontra alento e amor nos braços e seios de Iemanjá. No mito, nos deparamos com esta passagem: “Dizem os mitos que nasceu da união de Nanã Buruku e de Oxalá, já acometido pelas chagas da varíola. Rejeitado pela mãe foi criado por Iemanjá” (p. 57). Paula Gicovate retrata a oralidade mitológica sobre Omolu no conto “O menino que insistiu”, já no título tem-se a referência à história deste orixá, pois este insiste para viver desde o nascimento, insiste para ter uma mãe.

Na narrativa da autora conseguimos perceber a referencialidade a Iemanjá tanto pela escolha da profissão da mulher que irá dar o apoio a este jovem rejeitado, quanto as cores das vestimentas desta profissional da saúde. Gicovate nos coloca em contato com o mito de Omolu ao dizer que

Ela pegou meu braço quente e viu o as bolhas que tinham nascido junto com o dia. Subiu comigo no colo entoando o samba, mas já não estava mais rindo. “Janaína Agô, agoiá, samba corima com a força de Iemanjá”, esfregava a mão no olho sem mostrar que estava chorando.

Sentamos os dois no meio da lama onde ficava nosso barraco, agora destruído prela chuva. Minha mãe me abraçou forte, mas não conseguia olhar para mim. Disse no meu ouvido que ia ficar tudo bem, que eu ia ficar bom logo e um dia ela ia me dar uma casa de verdade, boa como eu merecia.

Quando abri o olho no hospital, uma moça de azul e chapéu branco perguntou se eu não sabia mesmo onde estava minha mãe.

Eu morri?” (p. 62).

As páginas do livro estão repletas da cultura afro, a cada narrativa nos deparamos com as histórias dos orixás. Dois contos são bastantes potentes, “Cara ou coroa” de Carlos Eduardo Pereira e “Nas asas de borboletas de papel” de Eliana Alves Cruz, este traz a orixá Iansã e aquele os Ibejis. A narrativa de Pereira é a que mais se aproxima da oralidade, pois não há marcas de parágrafos, o que também exprime a dinamicidade infantil que materializa estas divindades. E o ponto final aparece apenas na última frase do conto, ou seja, estamos diante de uma fala contínua, o que é bastante significativo frente ao espaço da narrativa – a escola e o desfile de carnaval. Toda esta agilidade da fala nos aproxima destas divindades infantis que não conhecem os limites, apenas as perguntas. O autor utiliza da cadência do desfile das escolas de samba para relatar as atrocidades que o povo de santo vivencia nos espaços de culto. Para exemplificar, lê-se:

(...) o chefe chefe mesmo ainda era o Coroa, irmão do Cara, só que pouco tempo depois o Coroa morreu, mataram ele, daí que o Cara foi direto para o topo, hoje por aqui tudinho ele comanda, comanda o varejo do pó, comanda o ataque a terreiro de umbanda, de candomblé, comanda o Bonde de Jesus, diz a imprensa que segundo a polícia, essa vertente ameaça pra lá de duzentos terreiros (...) professamos atos de fé, nada a ver com terrorismo islâmico, é outra parada, uma lógica que é muito diferente, (...) a gente libera ou não libera esses terreiros de funcionamento, os horários lá das cerimonias, o uso ou não uso de fogos de artificio, as fogueiras, por aqui é proibido andar com roupa branca, com roupa de santo, a gente invade cada dia mais e mais terreiro, a gente destrói tudo que é oferenda, detona com imagem sagrada, ou melhor, não tem nada de imagem sagrada, sifudê,(...) a gente acabou com as oferendas, botamos mãe de santo para correr e o caralho. (p.62).

Este conto nos apresenta a intolerância religiosa sem máscaras, pois o Cara define seu “bonde” como “de Jesus”, e à medida que se avança na narrativa percebe-se que, mesmo tendo um contato com a religiosidade africana e afro-brasileira, o Cara não conseguia respeita-la, apenas por ser diferente da que ele cultuava e, como detinha o poder, impunha por meio da violência o dogmatismo cristão. A proximidade da oralidade com escrita presente neste conto se deve ao princípio da dualidade em tudo que existe, que os Ibeji são para os de candomblé. Outra representatividade desta dualidade está na escolha dos nomes, Cara e Coroa, que são os dois lados da mesma moeda, ou melhor, da mesma mãe, da mesma agremiação; enfim, da mesma família.

Já Eliana Alves Cruz com teu impactante “Nas asas de borboletas de papel” promove no leitor a experiência da possessão pelo orixá. Já no primeiro parágrafo, a autora nos entrega algumas características, ou melhor, a essência desta divindade. Além da descrição das características, Cruz lança mão do sincretismo religioso que os de candomblé necessitaram fazer, pois nomeia a personagem principal de Bárbara, alusão clara à Santa Bárbara do Cristianismo:

Foi debaixo daquelas nuvens densas como pedra; foi respirando o ar opresso do chumbo e tropeçando nas lanças de raios riscando o céu; foi ventando pelos becos, vielas, pardieiros, barracos, lajes, alvenarias, escadarias, ladeiras, pirambeiras, biroscas; foi olhando para o fundo da imensa pedreira do costão que descia do alto do morro... Foi ali, naquele lugar-tempestade, que Bárbara o conduziu para o mundo dos mortos. (p. 62).

Na escrita de Cruz fica nítida a incorporação do mito que a precede, pois este orixá “representa as mulheres de temperamento aguerrido e independente. Sempre destemida, é Iansã quem conduz os espíritos dos mortos ao Orum”. (p. 137). A protagonista demonstra toda sua força e suavidade para cuidar daqueles que ela ama, ou seja, é uma mulher – Bárbara – capaz de barbaridades para que os seus não sofram. Eliana condensa toda força deste orixá na seguinte passagem:

Quando tudo terminou, o povo se admirou de sua força. No entanto – Bárbara sabia –, não era força: era certeza de que ninguém termina, apenas retorna. E isso se daria com ou sem a sua presença, porém, se ela estivesse nesta passagem, a viagem se daria como o voo das borboletas, os insetos que a simbolizam. (p.143).

A caminhada nesta festa não seria completa sem que o leitor rodopie com Orumilá, que Nei Lopes invoca em seu conto “Era um pássaro muito grande”, para demonstrar toda a questão da adivinhação da cultura afro-brasileira, que prevê uma narrativa escondida nas folhas sagradas de Ossaim. Para falar deste orixá, as hábeis mãos de Miriam Alves cultivam toda a ancestralidade em “Encontro de Ossan e Asroni”, no qual ela propõe um encontro da divindade com o Saci Pererê, o que explicita a sensibilidade de Miriam para mesclar o folclore brasileiro com a religiosidade afro que germina no Brasil.

O xiré não se compõe apenas da experiência, ele necessita do frescor literário que Geovani Martins e Marcelino Freire agregam à festa. O primeiro nos concede uma experiência que trata ser e se demonstrar verdadeira, pois em seu conto “A verdadeira face de Elena”, que aborda a temática de se incluir em um grupo e atingir a pessoa, que é como você era. Ou melhor, coloca em discussão o que é preciso fazer e renegar para ser incluída em grupos. Por sua vez, Giovani promove reflexões que correm para um ponto – a essência, a única e verdadeira beleza que o ser humano deve cultivar.

Já Marcelino Freire, em “Caçar, pescar”, retoma as atividades básicas para qualquer sociedade se manter viva. A narrativa é baseada na construção identitária que parte do comum “teu tio”, tem o ápice identitário quando se percebe “José Expedito da Silva Santos” e apresenta suas facetas “Zé da Silva”, que exprime a intimidade com os que o rodeiam, e “Clara Odara”, que permite o retorno ao comum, “tio”. Estes substantivos próprios demonstram graficamente a multiplicidade que o ser humano pode apresentar, assim como a origem de Logum-Edé é múltipla, Freire a expõe aos leitores por meio da identidade de gênero, da proximidade e da generalidade que são estruturantes do sujeito.

A escolha do título “Caçar, pescar” além de unir o conto com o mito reforça a ideia de estrutura dos seres humanos pois, independentemente de qual fase histórica que a sociedade está, é preciso caçar as oportunidades e possibilidades e, para tal, é fundamental que as pesque com as mais precisas iscas, seja fazendo-se semelhante, diferente ou indetectável, mas sempre necessário como a lembrança.

Na religiosidade do Orixás não se pode emudecer tuas raízes, é com este propósito que Itamar Vieira Júnior, no conto “A devoção sagrada de uma semente”, nos apresenta a divindade que une o Brasil à África por meio de Iroko, que condensa em si o humano e a natureza, e fecunda as terras sedentas de sabedoria, pois, “ser velho é ter sabedoria, a dádiva, por isto estava conformada”. (p.185).

Após todo este girar, é preciso ter paciência e ser obstinado. E Edmilson de Almeida Pereira escolhe uma figura precisa, o professor, para ser tomado em possessão por Oxalá, o orixá que cria o ser humano e o mundo. “Minha intenção é escapar desse vórtice para olhar à volta, acima e abaixo sem me comprimir como um nódulo. Chamei tudo isso de pedagogia do infinito. Para vivê-la, me fiz um professor sob as árvores, alguém que alugou o próprio amor à reflexão” (p. 205). Neste xiré, que é a vida, precisa-se dividir, ou seja, ser Oxalufã com toda a tua paciência adquirida com a idade e a experiência, e ora ser Oxaguiã, guerreiro, jovem e com a disposição para criar e modificar o mundo.

Contos de Axé traz os arquétipos dos Orixás para a nossa contemporaneidade. Assim, falar de Ogum, Oxum, Oxalá, Iansã, etc. é, também, dizer de Jefersons, Rodrigos, Edimilsons e Elianas entre outras escritas-vozes, que transformam toda a mitologia dos orixás em literatura que perdurará nas sociedades e nas pessoas que se permitirem incorporar a essência destas divindades. Em suas dezoito histórias, a antologia organizada por Marcelo Moutinho representa o xiré – reunião de todos os orixás – e materializa a festa-dança na qual todos se dão as mãos para manter a história da comunidade afro-brasileira viva e sempre girando, religando, reunindo...

...Sendo religião.

Belo Horizonte, dezembro de 2021

Nota

1. iaô: iniciante na religião de Candomblé.

Referência

MOUTINHO, Marcelo (Org.). Contos de axé: 18 histórias inspiradas nos arquétipos dos orixás. Rio de Janeiro: Malê, 2021.

 

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*Alen das Neves Silva é professor, graduado e Mestre em Letras Estudos Literários, pela UFMG e pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade – desta Instituição.

 

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