O ausente: narrador artífice e seu mergulho na palavra

 

Adélcio de Sousa Cruz¹

 

 

 

A vida foi e voltou,

o céu escureceu e clareou.

Cruzei de ponta-cabeça

a Bocaina e o Cervo,

dormi ao relento em Ervália,

sarei e adoeci em Boa Morte,

revivi em Contendas,

tive paz no Rio Vermelho.

Fiz meu nome,

me fizeram uma rara pessoa:

Inocêncio,

o que dispensava o chapéu da família

para ser visto de longe.

 

Edimilson de Almeida Pereira,

O ausente

 

 

Escrever a carne, escrever e narrar o que vai noite adentro, consumindo e macerando cada minuto não dormido, dentre ranger de dentes e olhos semicerrados. O mundo nomeado, classificado em categorias diversas e etiquetado pela palavra se detém a partir de narrativas como aquela registrada no romance O ausente, de Edimilson de Almeida Pereira, mineiro nascido em Juiz de Fora, poeta, romancista, pesquisador e professor titular da UFJF.

Em uma das primeiras incursões do autor pela prosa de ficção, o livro obteve o segundo lugar dentre os dez finalistas do prestigioso Prêmio Oceanos, destinado à literatura dos países lusófonos, em sua versão 2021. O intelectual continua a percorrer o caminho literário já consolidado por sua sólida produção poética. E quem só o conhece a partir de agora terá ainda a grata surpresa ao entrar em contato com suas publicações na seara infantojuvenil que, somada às suas incursões voltadas para o público adulto, resulta em mais de cinquenta livros publicados, aí inclusas traduções e coautorias.

O trabalho como professor e pesquisador resulta em outra seleta lista de títulos dedicados aos seus estudos sobre a comunidade dos Arturos e Irmandades do Rosário em ainda em numerosa coleção de livros e artigos referentes às literaturas brasileira, portuguesa e de África. Confiram a página dedicada ao escritor no Portal literafro1 para acessar a lista sempre crescente, abarcando seus trabalhos ensaísticos nas áreas da crítica literária e dos estudos antropológicos, além do também premiado romance Front (2020), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura.

Retomamos aqui nossa leitura de O ausente. Inocêncio é a personagem também conhecia por Inoc e Esse de Agora, que desfia e recompõe a narrativa como quem cria um rosário de diferentes contas. Narrador personagem que nos captura enredo adentro, apresentando similaridade com o Riobaldo de Grande Sertão: Veredas (1956), com o eu lírico presente na poesia de Manoel de Barros, e tecendo a partir de recortes da poética própria de Edimilson de Almeida Pereira. Esta última caraterística pode ser mais perceptível ao público já familiarizado/iniciado com sua poesia. Se o verso drummondiano advertia que a luta contra as palavras é a mais vã, tanto o narrador personagem em O ausente quanto o eu poético de sua poesia não recusam o desafio de ora enfrentar a correnteza da linguagem, ora deixar-se levar, ora remar/escrever com técnico afinco, ora brincar nos deslizes não propositais a que somos lançados ao nos aventurarmos na ficção ou na poesia. O romance remete necessariamente ao ato de narrar histórias ficcionais, fruto da viagem pela linguagem ou, ainda, baseando-se em fatos “reais”, reescrever levado por um “e se”, imaginando desfechos outros que para nós não são conhecidos/acontecidos.

A trama está dividida em três partes – “ausente”, “rumores” e “sempre-viva” – sendo que a primeira e a última se apresentam mais concisas que o “miolo” ou “recheio”, na qual experimentamos nos aproximar daquilo que nos é apresentado pela perspectiva da voz-pensamento de Inocêncio. E nos vemos jogando dados numa mesa invisível ao tentar acompanhar qual dos três nomes do narrador vem derramando diante de nossos olhos os acontecimentos do Ausente, nome da localidade escolhida por Inocêncio e Djanira/Deja para se instalarem de forma mais definitiva no mundo. E nesse mundo habitado/desabitado da linguagem é o modo que nos apresenta a voz narrativa de Inocêncio e, ainda, de Deja: voz-pensamento dessa narração poética, do inconsciente e do mundo onírico.

Interessa sobremaneira observar a posição do corpo de Inocêncio/Inoc/Esse de Agora enquanto escutamos/lemos suas falas-escritas: ele está deitado e sua voz narra sem se valer da garganta – voz-pensamento – e intenta preencher os espaços do Ausente e das veredas de seu entorno. Essa narração se dá justamente quando o corpo da personagem permanece em repouso, tentando recuperar no inconsciente os “rastros-resíduos” de suas peripécias e desventuras pelos dias e noites vivenciados até ali, no tempo de narrar. É sempre mais adiante, buscando fugir do semimergulho bem próximo à superfície da linguagem e da palavra. A sina da personagem é curar as pessoas pelas palavras, gestuais apreendidos no vazio do tempo. Deja, por sua vez, é professora forjada na lida diária com a comunidade e a natureza.

Este detalhe, a natureza, é de importância fundamental e necessária ao casal de personagens. Tecer aprendizados ao modo de teia ou rizoma, pois não se encontram “desligados” de tudo que os cerca. Um miniensaio de utopia embutido no romance é palavra materializada no universo da linguagem: “No quintal, um galo estoura a escuridão” (p. 29); “Ao invés de mirar no bicho, testa a pontaria no dicionário” (p. 41); “Somos todos arrastados pelas águas em direção ao oco” (p. 64); “Todos os meus parentes escondidos põem a cara à mostra: um louva-a-deus, um besouro carapaça de guerra, as formigas e os mais seres com asas e sem asas” (p.109). Os excertos recolhidos ao longo da leitura servem aqui como alguns exemplos desse modo de (re)conexão com a natureza: gente-bicho-pedra-ar-raio-fogo-água, personagens transubstanciadas na fricção das palavras com seus significados diários. Não se esqueçam, nós nomeamos o mundo.

Para pensarmos o espaço ficcional nomeado Ausente e derredores apresentados no enredo retomo a epígrafe desse breve texto, recolhida no romance. Criar/começar o mundo pela palavra é ofício vocal, vocacionado? O escritor insufla vida às suas personagens à medida que são descritas, agem ou se acuam. Ao nomear lugares, vilas e cidades pode se escolher, mas nem sempre, algo mimetizado do espaço, da própria localidade. Lembro de uma prática de leitura na infância: buscar nos mapas os locais impressos por tantas estórias. Depois apreendemos com a poesia, especialmente, que a existência física daquelas cidades e vilas não precisava ser “real”, pois importava mais o sabor sonoro ao nomear cada uma delas e próprio jogo/gesto de registrar/grafar todas as letras das palavras.

(In: Estado de Minas, Caderno Pensar, 10/12/2021)

Notas

1 Disponível em http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/225-edimilson-de-almeida-pereira

Referência

PEREIRA, Edimilson de Almeida. O ausente. Belo Horizonte: Relicário, 2020.

2 Resenha de Front disponível em http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1470-edimilson-pereira-front

____________________

¹ Adécio de Sousa Cruz é Doutor em Letras, Estudos Literários pela UFMG e professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa – UFV. É autor, entre outros, de Narrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo Lins, Ferrez (2012).

Texto para download