Prefácio a O Treze de Maio e outras estórias do pós-Abolição

Paulo Lins¹

 

A literatura de Astolfo Marques deve figurar como um clássico. Seus parágrafos curtos, com os tópicos frasais precisos, nos rementem a Machado de Assis, a Guimarães Rosa e a tantos outros baluartes da literatura brasileira e mundial. Os dois primeiros parágrafos do contoO socialista” exemplificam essa afirmação:

O Narciso, depois que saíra da Casa dos Educandos, flautista exímio e perfeito oficial de carpina, viajara pelo sul do país em companhia do seu padrinho comendador Manuel Bento, abastado capitalista português, demorando-se alguns anos em São Paulo. Seguindo o comendador para a Europa, onde veio a falecer, o Narciso tornou ao Maranhão, vindo residir numa casinha, que herdara do padrinho, lá pras bandas do Hospital Militar.

Com a instrução que recebera no estabelecimento sustentado pela então província, e o seu convívio com artistas e operários na formosa Paulicéia, o Narciso constituíra-se um devotado batalhador das ideias socialistas. Como sacerdote convicto de uma ideia, nova na sua terra, mas já recalcadamente pregada no velho mundo, punha-se ao serviço da propaganda dessa ideia, fazendo ressaltar altamente a excelência da causa a que consagrava todas as suas energias e toda a sua atividade. (p. 91).

No primeiro parágrafo o leitor já fica sabendo de toda a trajetória do personagem protagonista que vai se enquadrar de forma perfeita naquilo que o autor precisa para desenvolver a história. Nesse conto o personagem necessita de conhecimento, de experiência nas viagens que fizera. Não é preciso desenhar o seu temperamento, o seu jeito, a sua forma de falar e de sentir as coisas. O leitor só precisa saber da vivência do protagonista para entender o seu papel.

No segundo parágrafo, Astolfo mostra toda a trama que será desenvolvida, em que o personagem principal quer implantar o socialismo, a doutrina de Karl Marx, dentro de um Brasil arcaico, que acabava de sair da escravidão e da monarquia, indo parar nas mãos de republicanos latifundiários escravagistas. É tão cômico e irônico quanto “O Alienista” de Machado de Assis, em que o protagonista, Simão Bacamarte, estuda psiquiatria na Europa e quando retorna decide abrir um manicômio. Os dois personagens têm estadia fora, conhecimento técnico e tentam implantá-lo num país em que os dirigentes não têm o menor apreço pela intelectualidade e nem pela democracia. Um país que por toda sua trajetória preservará a desigualdade racial e social, o que torna esse livro essencial na luta contra o racismo estrutural que toma conta da nossa contemporaneidade. O tema continua atual, passados mais de cento e trinta anos. Esse conto poderia ter sido escrito hoje, no nosso Brasil em que as questões ideológicas nunca foram tão debatidas, desde o período que precedeu o Golpe de 1964. Nos parágrafos seguintes, Astolfo Marques apresenta mais dois personagens e a trama bem-humorada se desenvolve para um desfecho surpreendente.

No conto “O Batidinho”, já no primeiro parágrafo, o autor lança mão de um procedimento que Ezra Pound chama de “fanopeia”, isto é, o uso das palavras para evocar visualidades. Astolfo coloca a imagem como elemento fundamental do texto. O leitor tem a ideia exata do lugar, sente o conto como se estivesse na Província do Maranhão a caminho de um pagode:

O Sol, elevando-se no Oriente, brunia com os seus oblíquos raios a ondeada superfície das águas, que formava como que um fundo fantástico de luminosa prata ao quadro encantador que bordava a praia.

Perto os suspiros do gigante estremecido, a beijar ininterruptamente o formoso manto de areia que cobre a praia, a qual devolvia em ricas galas por entre centenas de barcos atopetados de laranjas e garrafões de tiquira, a fecundante carícia das ondas e a terna excitação de vívidos eflúvios. (p. 74).

São imagens encontradas nas literaturas de diversas épocas, sobretudo na poesia, que nosso escritor tem a habilidade de misturar à prosa com estrema delicadeza.

Esse conto é sobre uma festa, um encontro de boa vontade, reunião regida pela arte, que não ficou presa naquele tempo. Hoje qualquer ser humano, quando vai a um pagode, desenha nos olhos imagens coloridas semelhantes às desse poeta que nos leva para dançar dançar num Maranhão de um outro tempo.

O que faz a arte?

Entre outras coisas, ela revela esse mundo, cria outros e pode nos apontar o que vai acontecer nos dias, nas semanas, nos meses, anos seguintes ou cento e trinta anos depois. Esses contos, escritos no início do século 20, são erroneamente apontados como regionais por alguns estudiosos. A verdade é que o regionalismo não existe, nunca existiu. Essa classificação, que aqui no Brasil, quiseram dar a Graciliano Ramos, Jorge Amado e ao próprio Guimarães Rosa hoje está distante da maior parte das análises críticas. Não existe regionalismo.

O trabalho de Astolfo Marques antecipa o que vai acontecer com os afrodescendentes no mundo todo: a caça aos extratos negros da população se intensifica e dura até hoje. O ódio à constituição de uma maioria afrodescendente é o que determina o genocídio dos jovens negros e de periferia que assistimos. São cerca de 70 mil os mortos a bala no Brasil por ano. O trabalho infantil atingia, ao fim de 2019, 1,8 milhão de crianças e adolescentes com idades entre 5 e 17 anos, sendo que 70% são pretas ou pardas; 80% da população carcerária é negra.

A teima em negar à maioria da população qualquer possibilidade de ascensão social, ao domínio da ciência e de ofícios prestigiosos, ao ingresso em universidades, para que os mais privilegiados possam roubar o tempo de uma plebe que cuida dos seus filhos, lava o chão, cata o lixo, desentope esgoto, é a característica desse país obcecado em ser pobre desde a escravidão.

O racismo, segregação, violência policial e o contínuo permanecer na base da pirâmide social é algo que fica claro em “Aqueles aduladores”. Um homem negro se apronta para um baile oferecido ao presidente da província, Moreira Alves, que comemorava a assinatura da Lei Áurea, mas não pode ir, apesar de ter se preparado com toda pompa para festa. Da própria festa do fim da escravatura, onde se encontrava o representante maior a província, os negros foram excluídos, coisa que perdurará pelos tempos.

Alguns contos como “O suplício da Inácia”, uma mulher escravizada que morre enforcada, acusada de um crime que não cometeu, mostram o tempo da escravidão; outros nos revelam o pós-Abolição e alguns retratam a vida depois do golpe republicano, conduzido por militares e latifundiários escravocratas. O medo de que a escravidão volte é ilustrado em “A última sessão”; vale lembrar que Luiz Gama se recusou a ir à primeira convenção do Partido Republicano na cidade de Jundiai porque seus integrantes eram a favor do escravismo. André Rebouças, que lutou pelo fim da escravatura, também se opunha a esses republicanos que até os dias de hoje deixam o negro brasileiro à margem da sociedade.

Uma das questões mais importantes que esta coletânea nos revela, e que vem fortalecer o movimento negro, é o orgulho de não “ser treze”, isto é: de não ter ganhado a libertação com a Lei Áurea, mas tê-la conquistado antes desse ato que, para alguns negros e negras não teve o menor valor. O que importava era a liberdade alcançada pela união de pessoas negras, pelas associações e clubes negros, era isso o que lhes trazia brio, autoestima, a união entre eles, a força do povo negro em toda parte do Brasil também se fazia dessa forma.

Na província do Maranhão, nacionalmente conhecida pela crueldade de sua classe senhorial, lutou-se com afinco contra a escravidão. Ali havia vários clubes negros que, além de aulas, reuniões de confraternização, organização de revoltas e levantes, compravam a alforria dos escravizados que se associavam. Eram instituições voltadas para o desenvolvimento espiritual, social e, acima de tudo, para a liberdade. No conto “O Treze de Maio (Recordações)”, Astolfo Marques deixa isso claro: ou compravam a alforria ou fugiam para uma província em que o número de capitães do mato fosse sensivelmente menor. É oportuno ressaltar que quando a Lei Áurea foi assinada, somente em torno de dez por cento da população negra no Brasil era escravizada.

O movimento negro atual sempre aponta que o trabalho de resistência começa nos quilombos, desde Aqualtune, fundadora do primeiro quilombo no Brasil, mãe de Ganga Zumba e avó materna de Zumbi dos Palmares; que o povo preto resiste. E foram seus descendentes que deram continuidade à luta pela liberdade. É uma luta contínua por equidade racial, com milhões de pessoas mortas ao longo de quase quatrocentos anos, até a Abolição, e que segue hoje pelo mundo todo.

Astolfo Marques é filho de uma cafuza livre que trabalhava como lavadeira e engomadeira, sem pai, criado na pobreza. Teve que estudar por conta própria, sofreu racismo a vida toda, lutou de todas as formas para conseguir instrução e nos deixar essa obra tão contemporânea e tão maravilhosa. Seu trabalho ressurge num tempo em que outros descendentes de escravizados como eu, Ferréz, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Itamar Vieira Júnior, Paulo Scott, Jeferson Tenório e José Falero, saídos da fome, da pobreza e de um ensino precário, nos incluímos no debate sócioliterário para combater o racismo e lutar através da escrita. Os negros e n¹egras que escrevem no Brasil de hoje, tiveram e têm uma vida parecida com a de Astolfo Marques. Apesar da distância temporal, estamos juntos e misturados.

São Paulo, março de 2021

 

Referência

MARQUES, Astolfo. O Treze de Maio e outras estórias do pós-Abolição. Organização de Matheus Gato. Prefácio de Paulo Lins. São Paulo: Fósforo, 2021.

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¹Paulo Lins é graduado em Letras pela UFRJ e exerceu o magistério em áreas periféricas do Rio de Janeiro. Estreou na literatura com a publicação dos poemas de Sob o sol (1986) e alcançou renome nacional e internacional com o romance Cidade de Deus (1997). Na ficção, é também autor de Desde que o samba é samba (2012) e de Dois amores (2019). Como roteirista, participou de inúmeras produções de sucesso, tais como Quase dois irmãosCidade de DeusMaré, nossa história de amor, e Subúrbia, entre outras.

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