A escrita (auto) ficcional de Oswaldo de Camargo

em O carro do êxito

 

Érica Luciana de Souza Silva ¹

 

 

-E você acha que poemas resolvem?

O pessoal chega ali,

senta-se nos bancos,

com o Zumbi olhando,

leem, declamam,

perguntam ao Luandino

se podia dar uma olhada

no que escreveram.

O Luandino orienta,

é claro, o grupo.

Mas, é um grupinho

que escreve poemas...

Quer dizer, então, que

o pessoal dos poemas

viu o Josué

com a doença do frio

que só ataca crioulos...

 

Oswaldo de Camargo

A descoberta do frio

2011

 

O livro O carro do êxito, de Oswaldo de Camargo, teve sua primeira publicação em 1972, pela Editora Martins. Em 2016, houve nova publicação pela editora Córrego e, atualmente, o texto foi reeditado em 2021 pela Companhia das Letras, sendo a obra mais recente acrescida de alguns textos escolhidos pelo autor.

Oswaldo de Camargo é um dos mais representativos intelectuais negros contemporâneos. Sua escrita intimista, permeada pela dor, angústia, humilhação e marginalização originários do histórico escravocrata da sociedade brasileira, coloca o negro brasileiro em evidência e lhe permite ser ouvido pela elite cultural brasileira.

O título da obra, O carro do êxito, faz uma referência direta ao livro de Mário de Andrade, O carro da miséria, contrapondo-o. Em sua obra, Camargo, reúne contos que foram escritos durante a ditadura. Em alguns, os fatos narrados se misturam com as experiências do autor. O cenário que aparece nas narrativas é a cidade de São Paulo e é nesta metrópole que Camargo descreve as várias desigualdades sociais que assolam, especialmente, a população afrodescendente brasileira. Nos contos, um grande diferencial: a presença do negro enquanto sujeito literário, conhecedor dos problemas e lutas sociais que precisa travar para não ser aniquilado, mas consciente que há à sua frente um caminho de êxito que pode e precisa ser trilhado.

Em cada conto a presença de um narrador que transita por inúmeras paisagens. Reunidos, eles traçam o perfil de Camargo, indo do menino filho de catadores de café no interior paulista, passando por orfanatos e conventos, até chegar no ponto em que se encontra hoje: um intelectual e escritor negro reconhecido pela crítica. No meio da trajetória, há o Camargo que tocava órgão na Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos, o Camargo revisor do jornal O Estado de São Paulo e organizador da revista Niger, o Camargo que fez parte do Movimento Negro paulista e do grupo Quilombhoje e, por fim, o autor que escreveu nos Cadernos Negros.

Toda essa diversidade cultural e identitária é refletida nos contos como o “Menino do Oboé”, em que um garoto negro, para espanto de todos, toca um instrumento considerado difícil de se aprender. A narrativa de Paulinho expõe a sociedade que duvida do potencial intelectual de um menino negro e acredita que ele apenas terá sucesso se for apadrinhado por alguém importante. No conto “Negritude” temos o narrador que lança a verdade aos olhos do narrador: a negritude é o resultado de quatrocentos anos de escravidão. Em “Niger”, Camargo escreve uma auto ficção ao dizer que era um dos rapazes que escreviam para a revista que dá nome ao conto e explica o que é o periódico: um informativo do coletivo negro de São Paulo. A percepção de auto ficção também se encontra presente no conto “Maralinga”, quando, por meio da narrativa, episódios da infância do narrador são trazidos para o texto. As lembranças ali destacadas refletem a dor na alma do narrador-personagem. Por fim, o conto “Civilização” traz expressões que desnudam a alma do escritor negro brasileiro, entre elas, destacam-se aquelas que fazem referência ao fato de que a existência do narrador estava apodrecendo, ou que sua vida teria um voo breve, ou ainda quando descreve o seu grito como uma atitude solitária e quase inaudível, representando sua própria aparência física: feia, a qual reflete um negro com profundas fendas e cheio de complexos.

Ao pensar na atual sociedade brasileira, entrecortada pelo racismo profundamente enraizado no histórico escravocrata do país, vemos que a leitura de O carro do êxito é necessária e atual, pois somos levados a revisitar e reler dores antigas, mas tão vivas e doloridas quanto um profundo corte na carne. A obra torna-se um espaço de saber com indicações de possíveis caminhos na busca da cura dessas feridas. Uma das dicas aparece no livro O estranho, do mesmo autor, no formato de um convite feito pelo negro: “... O Estranho, sem a menor arrogância, com toda humildade, convida-nos a sentarmos à sua mesa e provarmos do seu pão.” (CAMARGO, 1984, p.11). É desta forma que concluímos: O carro do êxito é a obra que não pode faltar no repertório daqueles que travam a luta antirracista na sociedade brasileira.

Rio de Janeiro, novembro de 2021

 

Referências

CAMARGO, Oswaldo de. A descoberta do frio. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.

CAMARGO, Oswaldo de. O carro do êxito: contos. São Paulo: Martins, 1972.

CAMARGO, Oswaldo de. O carro do êxito. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2021.

CAMARGO, Oswaldo de. O estranho. São Paulo: Ed. RoswithaKempf, 1984.

SILVA, Érica Luciana de Souza. Os filhos do dia e da noite: interações e embates estéticos e ideológicos na obra poética de Oswaldo de Camargo. Dissertação (Mestrado em Letras, Estudos Literários) – UFJF, Juiz de Fora-MG, 2014.

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¹ Érica Luciana de Souza Silva é Doutora em Letras: Estudos Literários, pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professora do Instituto Federal Fluminense (IFF)

 

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