A COR DA TERNURA

            Vanessa Chaves Maciel¹

            Maria Anória J. Oliveira²

 

 

- Pai, o que mulher pode estudar?

 - Pode ser costureira, professora...  

– Deu um risinho forçado e quis encerrar o assunto. – Deixemos de sonho.

- É, pai. Eu vou ser professora.

Queria que ele se esquecesse das durezas da vida.

(GUIMARÃES, 1990, p.72)

 

                   

O livro A cor da ternura¹, da escritora Geni Guimarães (1989)² e ilustração de  Saritah Barbosa é um livro instigante, crítico e atual, em se tratando da trama e das questões suscitadas, sobretudo nesse contexto de alteração da nossa LDBEN 9.394/96 pela Lei Federal 10.639/03, ao tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as áreas na Educação Básica. Lei essa, sabemos, não implementada a contento e, pior, no cenário crítico e político atual do país, sob ameaça de mordaça, nesse retrocesso sem precedentes no país. É um livro extremamente importante e necessário para quem desejar abordar uma situação complexa e recorrente: o racismo, suas ciladas antigas e, principalmente, a capacidade de superação ao trazer à cena uma protagonista

 

 ____________________________________________________________________________________________________________________________________________¹Orientanda/graduanda em Letras (UNEB).

²Orientadora: Docente da UNEB (da Graduação em Letras e do Mestrado em Crítica Cultural/Pós-Crítica)

³Primeira publicação em 1989, Prêmio Jabuti/autor revelação em 1990, Menção Especial-UBE/RJ em 1991.

*Sobre dados biográficos da autora, indicamos consultar o site LITERAFRO: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/267-geni-guimaraes

 

 

Geni é assim, um pouco de nós: crianças, jovens, adultos em meio às afeições, aflições, amor, querências, carências e superação. Há, óbvio, dissertações, artigos, teses que analisam o livro, como o fizemos tempos atrás (OLIVEIRA, 2003), dentre outros/as. Aqui, contudo, interessa tecer alguns fios de destaque como uma espécie de convite à re/leitura desse livro que envolve e emociona... 

Em se tratando da estruturação da narrativa, o livro tem dez capítulos. São eles: “Primeiras lembranças”, “Solidão de vozes”, “Afinidades: olhos de dentro”, “Viagens”, “Tempos escolares, “Metamorfose”, “Alicerce”, “Mulher”, “Momentos cristalinos” e, por fim, “Força flutuante” perfazendo um total de 93 páginas.

Geni tece seu cotidiano em dois momentos básicos: a infância, principalmente, e a fase “Mulher, terminando o ginásio”, “cursando o normal, a caminho do professorado” (p. 81)¹. Além de sua família (oito irmãos mais os pais), há outros personagens negros secundários: “Nhá Rosária”, que “morava com uma família de fazendeiros”, uma velha contadora de estórias, de que não se sabia a idade (se 98 ou 112 anos), de que não se conheceu a família (p. 49).

Na escola, ela, Geni, “era a única pessoa da classe representando uma raça digna de compaixão, desprezo” (p. 65), desabafa a personagem, decepcionada por conhecer, na escola, a história dos seus antepassados pela história oficial, na qual eles são passivos, conforme ensinara a professora. Outro personagem negro aludido no texto é “Dirceu, um negrinho terrível”, promovido à terceira série, “com muito custo” (p. 54). E outras crianças que a personagem lembra, os “anjinhos”: Tilica, “que morreu de lombriga aguda”, Luiza, “que morreu de  bucho-virado” e o Jorge, “que morreu de cair no poço” (p. 63). Os personagens brancos são “a professora”, D. Odete (p. 55), o “administrador” de uma fazenda, Gisele, que estranha Geni, por ter medo da professora “preta” (p. 87).

A cor da ternura exprime o universo imerso em fantasia e ludicidade da protagonista Geni, um “Mundo” constituído de dúvidas, medos, ciúmes, esperteza, delicadeza e amor, em face dos impasses da “Vida” de uma criança que olha e sente o mundo com os “olhos de dentro”. Diante disso, pode-se inferir que a “cor” da “ternura” é “negra”.  Negros são seus pais e irmãos. Nestes, Geni encontra afeto e esclarecimentos. Naqueles – quer dizer, nos pais –, Geni encontra ainda amparo, acalento e “sabedoria” para se descobrir e, assim, lutar contra as adversidades da “Vida” (OLIVEIRA, 2003).

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¹Para evitar repetição, com a referência do texto é o livro em questão, não iremos mencionar os anos de publicação em todo o texto.

“administrador” de uma fazenda, Gisele, que estranha Geni, por ter medo da professora “preta” (p. 87).

A cor da ternura exprime o universo imerso em fantasia e ludicidade da protagonista Geni, um “Mundo” constituído de dúvidas, medos, ciúmes, esperteza, delicadeza e amor, em face dos impasses da “Vida” de uma criança que olha e sente o mundo com os “olhos de dentro”. Diante disso, pode-se inferir que a “cor” da “ternura” é “negra”.  Negros são seus pais e irmãos. Nestes, Geni encontra afeto e esclarecimentos. Naqueles – quer dizer, nos pais –, Geni encontra ainda amparo, acalento e “sabedoria” para se descobrir e, assim, lutar contra as adversidades da “Vida” (OLIVEIRA, 2003).

Em sua trajetória, a personagem vai  aprendendo a fortalecer o seu Ser e a desenvolver uma “força flutuante” que a impulsiona a seguir avante e a lutar pela sua realização pessoal e profissional. Eis, a seguir, os indícios de um “momento cristalino” que sintetiza com sutileza e poesia a inovação da estória:

 

Indiquei-lhes o lugar onde deveriam ficar e fui ocupar o meu, entre os formandos. De onde estava, vi-os todos, incomodados nos trajes de missa. Vez em quando, encorajava-os com um riso. Meu pai, ao lado de minha mãe, estava pleno, altivo, sereno. Com os olhos, acompanhava todos os meus movimentos, engolindo salivas de prazer.

 

Indiquei-lhes o lugar onde deveriam ficar e fui ocupar o meu, entre os formandos. De onde estava, vi-os todos, incomodados nos trajes de missa. Vez em quando, encorajava-os com um riso. Meu pai, ao lado de minha mãe, estava pleno, altivo, sereno. Com os olhos, acompanhava todos os meus movimentos, engolindo salivas de prazer.
[...]
As formalidades todas terminaram. Fui até eles [...]
Eu, princesa, entreguei meu certificado ao rei [...]
Em casa [...] Rimos das palmas fora de hora, das mãos do meu pai segurando as orelhas, da cara do diretor ao vê-los donos do ambiente (ACT, p. 84-85)

 

A passagem acima apresenta alguns aspectos inovadores na narrativa quando do “momento cristalino”. Isto e, a formatura da protagonista. Ela e sua família se sentem “donos do ambiente”. Essa singularidade emerge do universo interior deles sugere não a passividade, mas, sim, as consequências de uma “força pulsante” metaforizada pela tenra “cor” da ternura.

A cor da ternura, portanto, traz não só a problemática da discriminação racial em nosso país como, também, a solidariedade entre mulheres, através das quais vemos traçado à trajetória de uma menina inserida em uma sociedade cujos valores não representam a sua identidade. Essa obra deixa representada a importância da mulher negra na formação da família, seus problemas, sua cultura, sem se deixar abater diante das dificuldades enfrentadas, indicando que a mulher negra é capaz de ultrapassar as indiferenças que eram barreiras para a sua afirmação na sociedade.

É um livro que abre um leque de reflexões, problematizações e que, aqui, apenas enfocamos a relação entre a pequena Geni, a família e sua força “pulsante” diante das adversidades, pela capacidade de re/existir, se pensarmos esses termos sob o prisma da pesquisadora Ana Lúcia Souza (2011).

Em outras palavras, Geni reexiste apesar da pobreza, da discriminação racial e entraves sociais. Ela, a protagonista, não se reduz às visões inferiorizadas atribuídas ao segmento étnico-racial negro na trajetória da literatura brasileira destinada ao adulto (CUTI, 2010) e/ou às crianças e aos jovens (ROSEMBERG, 1985; PIZA, 1998; SILVA, 1995, ROSEMBERG e SILVA, 2008).

 

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REFERÊNCIAS:

BROOKSHAW, David.  Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

CUTI. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.

GUIMARÃES, Geni. A cor da ternura/; Ilustrações Saritah Barboza. – 2. Ed. – São Paulo: FTD, 1998 – (Coleção canto jovem).

OLIVEIRA, Maria Anória de J. Negros personagens nas narrativas literárias infanto juvenis brasileiras: 1979- 1989. 2001, Dissertação (Mestrado em Educação) Departamento da UNEB, Salvador, 2003.

PIZA, Edith. O caminho das águas: estereótipos de personagens negras por escritoras brancas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Com-arte, 1998.

ROSEMBERG, Fulvia e SILVA, Paulo Vinícius Baptista da. Brasil: lugares de negros e brancos na mídia. In. DIJK, T. A. Van (Org.). Racismo e discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 73-117.

ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura Infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1985.

SILVA, Ana Célia. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: CEAO/CED, 1995.

SOUSA, Andréia de. “Personagens negros na literatura infanto-juvenil: rompendo estereótipos”. In. CAVALEIRO, Eliane (Org.) Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Summus, 2001.

SOUZA, Ana Lucia Silva. Letramentos de reexistência: poesia, grafite, música, dança e hip-hop. São Paulo: Parábola Editorial, 2011.