A oferenda exuzíaca de Miriam Alves

Assunção de Maria Sousa e Silva*

Os contos de Miriam Alves nos perpassam com verbos-gatilhos estrondosos e certeiros na consciência embranquecida que fixa os condicionamentos femininos em paradigmas segregados.* A oferenda poética de Miriam é exuzíaca como a nudez da mulher notívaga cruzada por palavras-ventos-tempestades.

O mais novo livro da escritora paulista vem com o intento de abduzir leitorxs para um universo primordialmente feminino, lésbico, que se funda em mosaico chão-triturado, onde nos é escancarada a experiência da dor, do desafeto, da objetalização feminina, da orquestrada fonte misógina que fortifica a violência sobre o corpo e a alma da mulher negra.

Quem conhece um pouco da obra da autora pode perceber que o jorro de sangue e feridas abertas de Juntar pedaços talvez venha da fonte matriz dos contos de outrora, semeada por sua presença nos Cadernos Negros e em outras coletâneas. A pulsação poética de “Rainha do lar” (2010), desdobrável na poética em prosa de “Xeque-mate” e “Os olhos verdes de Esmeralda”, em Mulher mat(r)iz (2011), reverbera nas cenas narrativas do livro, espraiadas em matizes espaçotemporais cujos momentos focalizados agem sempre como pedaços de espelhos trincados ou, por mais vezes, quebrados com agudas pontas que nos picam até jorrar sangue de nossos olhos.

Os contos curtos, isentos de complexa estrutura formal – porque rompem com quaisquer medidas de assujeitamento teórico e evocam, por dentro, a fala negra silenciada –, privilegiam a vivência e a experiência de mulheres negras violentadas física e psiquicamente. Todavia, o que Miriam Alves traz de diferencial é a perspectiva não apenas de registrar, denunciar, mas também de romper, estraçalhar as amarras do sistema opressivo, racista, misógino, lesbofóbico para efetuar o refazimento das subjetividades, a partir de inaceitáveis relações binárias malogradas às mulheres e das estruturas falocêntricas que permeiam o imaginário social brasileiro.

No caminho vivencial das mulheres negras que tomam lugar como sujeitas – voz-ação –, não há espaço apenas para palavra solta, em descrição ou representação do narrado. Ela (a palavra) sempre vem como intervenção, com compromisso, guardiã de um corpo negro à deriva, fazendo-se inteira, arredia, destemida, insolente e mordaz. É dessa forma desobediente que a palavra personaliza o Ser que “junta pedaços” para transformar-se, uma vez que “Viver é uma aventura de esquiva”, como diz Jéssica ao se assemelhar com Carla, em “Mosaico”.

Xs leitorxs podem perceber a potência da palavra nas vozes de Jéssica, Ester, Cecília – tecendo seu viver com Flora e destravando visões –, Raquel, Arminda – “enlaçada com carinho pela cintura” da amada perante o ex-companheiro; no ato de vingança de Sandra, ao soltar seus cachorros contra o verme-chefe. São personagens modelares, fios de nova cepa – tronco em floração na literatura negra brasileira, a narrar o cotidiano urbano comumente velado pelo padrão patriarcal, classista, racista e sexista. Elas desvelam os dentes dos algozes e fiam outras formas de construir feminilidades, requerendo direito à “idosidade”, urdindo pontes de solidariedade em contraponto ao premeditado individualismo e arrogância forjados na seara empalidecida da branquitude.

Miriam Alves nos convoca a pensar sobre os dias atuais, época de confinamento, pandemia e alto índice de feminicídio, como a fazer perene a indagação: em que medida nós, mulheres negras, não mais envolvidas pelo manto da tolerância e/ou encarceradas na caixa de ferramentas envelopada por “imagens de controle”, podemos repensar e agir para sermos mais donas de nós mesmas, mais determinadas a construir caminhos até então não vislumbrados na construção de novas formas de viver individual e coletivamente?

Enfim, ler Juntar pedaços, da veterana autora negra brasileira, consiste em saber lidar, em “um só gole”, com inquietações, com a calosidade de nossos pés de passivas caminhadas, com as travas que se impõem em nosso viver e, ao mesmo tempo, buscar aprender prenhes maneiras de Ser atravessadas pelo sopro de Nanã e os ventos de Iansã.

Teresina, novembro de 2020.

Referência

ALVES, Miriam. Juntar pedaços. Rio de Janeiro: Malê, 2020.

__________________________________ 

* Assunção de Maria Souza e Silva é Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e professora do curso da Letras da Universidade Estadual do Piauí – UESPI.

Texto para download