Contos de Yõnu 

Prefácio

 Sarah Soanirina Ohmer*

 

Lembro de ler sobre escrevivência na teoria de Conceição Evaristo, e na reescrita de mulheres como definida por Miriam Alves, e de como Esmeralda Ribeiro recomendou combater o cânone da opressão com a auto publicação. Yõnu escolhe todas as três inequívocas inspirações de Raquel Almeida, e funde com a escrevivência por meio de uma escrita feminista publicada com o resistente Coletivo Elo da Corrente. Ao mesmo tempo, Almeida não se furta de uma duradoura genealogia de mulheres negras como a humildemente cortante prosa de Maria Firmina dos Reis, a prosa urbana cotidiana de Carolina Maria de Jesus e a crítica social prosaica de Cidinha da Silva. Yõnu entra num palco bem povoado pela prosa de mulheres negras brasileiras, honrando escritoras do passado e pavimentando um novo e bravo caminho com um profundo mergulho nos temas ainda clássicos no século XXI urbano que chamam atenção sobre como multifacetadas, graciosas, vulneráveis e toda poderosas são as mulheres negras do Brasil. Yõnu é mulher sem remorso, e sem remorso sobre o amor negro revolucionário.

Na literatura Brasileira, Dawn Duke, Jerome Branche e Niyi Afolabi mostraram como frequentemente objetificadas e marginalizadas são as mulheres de ascendência africana. Patricia Hill Collins em Pensamento feminista negro, bell hooks, em Da margem ao centro e Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, demonstraram as formas da resistência política e discursiva que mulheres negras desenvolveram ao longo de quinhentos anos nas Américas. Cada uma dessas críticas apresenta como indivíduos negros tiveram de reclamar suas subjetividades e escrever seus protagonismos na história (Butler). Raquel Almeida reúne essas críticas em seu primeiro livro de contos, que revela sempre protagonistas mulheres e personagens secundários, mulheres ou homens, em um vibrante cenário periférico urbano. Em cada estória, leitores são apresentados a diversas protagonistas que, enquanto personagens, reestruturam o imaginário branco heteronormativo patriarcal.

O que um dia foi uma mulher objetificada, uma empregada, uma Mãe Preta ou uma sapatão são aqui invertidas em direção ao desmantelamento do controle imagético de mulheres negras (Hill Collins). Ao invés de estereótipos de mulheres negras que serviriam à democracia racial ou ao hipercapitalismo global, as personagens de Almeida evidenciam perfis de mulheres que estão ordinária, ainda que tragicamente, andando de ônibus, sendo estupradas, se apaixonando, voltando para casa subindo a ladeira enlameada, dançando carnaval, tomando banho nas quentes águas do Rio de Janeiro, encontrando conforto consigo mesmas em seus lençóis, e rodopiando suas brancas saias para invocar ancestrais e exus. Almeida reescreve o assistencialismo com camadas de compaixão em “Amondi”, transforma uma mulher objetificada em uma esposa sensual, determinada a escrever suas próprias fantasias sexuais em “Ijaba” enquanto critica o falatório machista da comunidade em “Chimwala”, incitando comunidades urbanas a desenvolver mais compaixão e solidariedade em direção às mulheres negras “perdidas” em nossas vizinhanças. “Latasha” reescreve o matriarcado em uma eventualmente complacente e merecidamente frustrada em vez de castradora mulher de um lar em frangalhos.

Vemos as possibilidades da prosa negra feminina em Yõnu, onde “um sexo bom faz levitar”, aprendemos em “Ijaba” que o sexo bom faz levitar; e essa prosa é quase tão boa quanto sexo! Pode fazer você levitar! E definitivamente faz com que a prosa brasileira escape do controle opressivo e estereotipado de imagens. “Ijaba”, uma amostra prosaica do infame poema "Meu eu", de Sagrado Sopro, que agitou Saraus e levantou mulheres negras nas periferias de São Paulo, oferece uma nova abordagem sobre a propriedade da sexualidade. O Almeidismo veio de um longo caminho de neologismos e de tomada da poesia concreta e metapoesia por mulheres negras. O gênero Almeida vem se tornando orgulhosamente auto definidor, auto gratificante, como na prosa “Meu eu”, na qual mulheres inspiram e oferecem momentos induzidos de clímax para si mesmas e para as outras.

Os clímax algumas vezes são trágicos, como em “Chiwa”, onde meu coração se quebrou com o dela, senti como se o meu se tornasse mármore também. Outras vezes, os clímax são marcados por ágeis e rápidas metáforas, é em “Ebiere” que o profundo mergulho na metáfora corre através de um conto que nos envolve em um cobertor de afeto negro que leva os mais cínicos em direção à esperança e alegria. Em muitos momentos, o clímax é uma explosão de angústia e raiva, uma catarse escrita que muitas de nós imaginamos, vivemos, nos chocaremos e ficaremos aliviadas de ler sobre dos míticos trinta e três derrames de Minka, ou em “Sela”, onde Dona Maria usa seu único tiro sabiamente, toda vez. Através de “Zarina” e “Nochê”, o clímax ocorre simultaneamente no além-vida e na vida-mulheres andando em dimensões paralelas para fazerem o mundo “se curvar sobre o arco de seus pés”.

Yõnu é….

Liberdade

Liberdade sexual

Liberdade econômica

Liberdade do machismo sádico e masoquista

Yõnu é….

Amor negro

Revolucionário

Liberdade-duradoura-revolucionário-amor-negro

Futuro.

E com a entrada corajosa de Raquel Almeida na prosa, eu afirmaria que o futuro é Yõnu, assim como o futuro é mulher negra.

Almeida não foi gentil na sua poesia, nunca foi sua mãe preta, e nunca será. Se isso não ficou enegrecido quando você leu Sagrado Sopro, agora vai ficar com Yõnu. Ela corajosamente nos força a nos vermos em cada uma de suas protagonistas, diretamente nos olhos, e ela olha para cada uma de nós e nos incita a perguntarmos a nós mesmas, sem medo. É tempo de sermos honestas, e olhar para a mulher negra do futuro além das mães pretas, mulheres objetificadas, socialmente assistidas ou gostosas. Vamos olhar em direção ao futuro com Amondi, Chimwala, Ijaba, Zarina, Minkah, Latasha, Nochê, Mafunda, Sela, Chiwa, Ebiere, e Maria Padilha.

Coloquem suas vestes brancas, senhoras e senhores, e rodopiem com essa dúzia de mulheres e se perguntem:

O que Yõnu significará para você?

Qual será o seu passaporte para a liberdade?

Referências

ALMEIDA, Raquel. Sagrado sopro. São Paulo: Elo da Corrente Edições, 2014.

ALMEIDA, Raquel. Yõnu. São Paulo: Elo da Corrente Edições, 2019.

 

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