As várias faces da formação de um povo

Ana Carolina Bicalho Ribeiro*

 

Nei Lopes poderia muito bem ser um dos personagens de seu novo romance Agora serve o coração. Intelectual negro que trocou a advocacia pela criação e a pesquisa, o autor mergulhou no universo da cultura afro-brasileira em todos os seus aspectos. É autor de romances, contos, poesias, crônicas, ensaios historiográficos e da rica Enciclopédia brasileira da diáspora africana, além, é claro, de seu conhecido Dicionário banto, num total já próximo de nada menos que quarenta títulos, sem falar de sua vasta produção como músico e compositor.

Agora serve o coração, seu novo romance, se inicia com a advertência autoral de que se forem encontradas “eventuais semelhanças entre personagens e pessoas reais serão devidas a simples coincidências”. A insinuação realista prossegue com o intento de narrar a constituição da comunidade de Marangatu, espaço ficcional em se entrelaçam passado e presente, riqueza e pobreza, alegria e violência.

O enredo é construído a partir de perspectivas diversas, o narrador expõe sua opinião sobre certo evento, outro personagem integrante daquele capítulo expõe a versão dele e, com isso o episódio em questão é narrado a partir de uma multiplicidade de olhares e pontos de vista.

A ausência de consenso representada no texto remete ao memoricídio histórico que a população negra e indígena sofreu e sofre, não há registro escrito para afirmar ou negar as colocações dos personagens, não há conhecimento estabelecido como verdade absoluta sobre os eventos tecidos na obra e mais: os capítulos são construídos à luz da contação de histórias do povo interiorano, passadas de geração em geração. Nos momentos em que a construção é diferente dessa, o enredo se desloca para algum personagem específico que, durante sua vida, denuncia implícita ou explicitamente mazelas que se tornam problema coletivo e extrapolam as particularidades individuais.

Na constituição de Marangatu enquanto espaço nuclear da ação e palco das narrativas dos povos locais e seus costumes, Nei Lopes presenteia o leitor com uma linha do tempo muito bem construída e articulada, que abarca indivíduos e comunidade. O início se dá no presente, para, adiante, trazer os tempos da escravidão, em que é narrado o surgimento do quilombo de Mafuta, fundado por Catarina Mafuta, origem dos aglomerados de Marangatu. Essa linha do tempo, além de fornecer lastro histórico ao enredo, aponta para o processo que conduz ao racismo estrutural tão negado no Brasil.

Nesse contexto, surgem questões que marcam a vida da população carente das periferias: corrupção policial, genocídio da população negra e jovem, crescimento das igrejas pentecostais, entre outros. Um tópico relevante diz respeito à relação que a população estabelece no convívio com os preconceitos. Marangatu se torna uma região mal vista pela violência que, em alguns momentos, chega a ser “justificada” como fruto do respeito aos direitos humanos... Nessa linha, pessoas com suposta “falha de caráter” são associadas a Exu, o que reitera o racismo que vitima a população negra, sobretudo a de baixa renda e/ou adepta das religiões de matriz africana.

Deste modo, o romance se entrelaça à história do país em suas transformações sociais e políticas: a escravização e resistência quilombola, as migrações chinesas e europeias, a modernização excludente, o regime varguista, a ditadura militar, a contemporaneidade. Há passagens com ocorrências absurdas que são alvos de ironia de inspiração machadiana, a atingir a elite formada por senhores de escravos, grandes proprietários, políticos, entre outros. Um deles é Barra-mansa, típico “coronel” detentor de “votos de cabresto”, que prega moralidade e atos cidadãos, mas que possui e mantém três famílias... E a ironia se torna implacável perante um detalhe fundamental: Barra-mansa é negro.

No presente marcado pelas sombras do passado, desponta Soraia, personagem cuja vida se estende por alguns capítulos, primeiro a infância, depois a adolescência e juventude, vida adulta e também a idade madura. Ela é um exemplo de influência do meio e direcionamento através dele: cresceu à margem, submetida ao racismo e ao machismo, alcançou alguns objetivos, teve perdas, e termina em uma vida vazia de afeto genuíno, longe da filha e netos, recebendo dinheiro desconhecido gasto com festas para desconhecidos. Rodeada de boatos a seu respeito, comparada a Xica da Silva, Soraia é alvo de especulações sobre ligações com milicianos, violência e homicídios. Figura ambígua, paira ao longo do romance envolta na dúvida sobre seu real papel na comunidade e na trama como um todo.

A linha do tempo se estende da personagem aos descendentes e ancestrais, como a bisavó. Luciana, filha de Soraia, passa dificuldades e tem uma vida completamente oposta ao luxo da mãe. Já Dri, enteada de Luciana, cega pelo dinheiro, status e bens materiais, trilha um caminho perigoso de poder, relativamente, “fácil”, que acaba terminando em morte.

Surge então o mundo do tráfico, os terreiros, desenvolvimento e glamourização das escolas de samba, a intolerância religiosa, além dos crimes policiais recorrentes, que ficam impunes. É importante destacar que Lopes deixa clara a relação fictícia entre caráter e religião, a corrupção é colocada de maneira nua e crua e os homens são corrompidos pelo poder, dentro e fora da igreja.

Agora serve o coração descarta a linearidade estrita, apesar de existir uma linha do tempo, é uma obra cíclica, cujo primeiro capítulo é também tema do último. Romance de coletividade, requer atenção do leitor para relacionar os relatos aos personagens, entender os parentescos e afetividades presentes em cada sequência. Narrativa fluida, seu enredo é tecido ao passar pelo cruzamento de épocas e personagens distintos. Alguns, aparentemente desimportantes, tornam-se cruciais para o desenvolvimento da ação. Trama não linear, mas perfeitamente interligada, não deixa pontas soltas entre os capítulos.

O cenário é de fácil identificação, remete a certos ângulos do Brasil profundo e, ao longo da leitura, não sofre alterações significativas, da mesma forma os personagens; conforme a leitura flui, por mais que o leitor seja avisado que longos anos se passaram, quase tudo continua o mesmo, os amigos, as rodas, o café bar.

Mergulho na memória e na contemporaneidade, Agora serve o coração é uma obra de leitura fluida, que não dispensa o humor, além de feliz entrelaçamento entre ficção e reconstrução do passado de diferentes épocas. Fundamental para nos lembrar de que nem toda conversa de bar se resume a ócio e banalidade. Muitas discutem o sistema, a estrutura social, a corrupção, o racismo e, acima de tudo, o ser humano.

Belo Horizonte, dezembro de 2019.

Referência

LOPES, Nei. Agora serve o coração. Rio de Janeiro: Record, 2019.


* Ana Carolina Bicalho Ribeiro é graduanda em Letras - licenciatura em português e voluntária de Iniciação Científica junto NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade.


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