Um Exu em Nova York: Narrativas que se entrelaçam

 

 

Ingrid Oliveira*

Exu é o senhor dos caminhos,da comunicação
e das encruzilhadas no panteão ioruba; aquele que deve ser saudado e alimentado
antes de iniciar qualquer cerimônia das religiões de matriz africana no Brasil. Cidinha da Silva 2018

                                                                              

Ganhador do Prêmio Literário Biblioteca Nacional de 2019, categoria conto, Um Exu em Nova York, publicado pela editora Pallas, é o 13º livro de Cidinha da Silva, prolífica escritora mineira a trafegar incessantemente entre a crônica e o conto, além da feliz incursão na poesia, com suas Canções de amor e dengo (2016), bem como na literatura infantojuvenil e no ensaio.

Com uma carreira já consolidada, a autora afirma em entrevista recente ser este o seu primeiro livro de contos, declaração que, sem provocar polêmica, tem gerado opiniões discordantes entre seus leitores.

Um Exu em Nova York, como o próprio título indica, à sua maneira exalta a espiritualidade de matriz africana, colocando em cena Exu – orixá que reflete a conexão do divino com o terreno, por entender as aflições e desejos humanos, além de simbolizar a comunicação, a transformação, os caminhos e as escolhas e desafios de cada um frente às encruzilhadas da vida. No prefácio, Wanderson Flor do Nascimento afirma:

Caminhando com Exu por muitas terras e muitos tempos, de Minas Gerais a Nova York, de nosso presente aos tempos dolorosos da escravidão, as palavras de Cidinha da Silva nos enredam, nos convidando a fazer parte desses deslocamentos exúnicos, mergulhados em um convite lírico, transformador e ancestral. (NASCIMENTO, 2018, p.11)

Nos 19 contos que compõem a obra, Cidinha ressalta a memória afrodescendente, ou afrografia, segundo afirma, em referência ao conceito cunhado por Leda Maria Martins, a quem o livro é dedicado. Tal postura se materializa no uso constante de termos e palavras de origem ioruba, comuns nas religiões de matriz africana, e nas próprias narrativas construídas ao longo do livro.

Destaque-se, em todo o conjunto da obra, o estado de trânsito do narrador, que está em constante movimento e em lugares diferentes, como em Nova York, no terreiro, na rua etc. São contextos diferentes, mas que se unem nessa escrita para criar um lugar comum de fala: a diáspora africana. Assim, o livro indica que negras e negros estão por todas as partes do mundo, sem que a comunicação deixe de fluir, diante de toda a conexão espiritual e cultural. Logo no primeiro conto, I have shoes for you, Cidinha da Silva convida o leitor a seguir nessa exuzilhada – neologismo criado para unir as palavras Exu e encruzilhada, no sentido de a divindade mencionada estar presente em toda história e fazer essas conexões.

Os primeiros contos logo vão incitar a reflexão sobre questões caras à contemporaneidade. Primeiro sobre relações de gênero, e o medo que só a mulher sente ao andar sozinha e se deparar com algum homem na rua, violências simbólicas enfrentadas cotidianamente diante da hipersexualização das mulheres negras e dos abusos sexuais; em seguida, por tratar da intolerância religiosa promovida pelos evangélicos contra os terreiros, ou, de certa forma através da nossa ignorância, por precisarmos recorrer ao glossário para saber o significado de palavras que deveriam ser parte do nosso vocabulário.

Os contos também convidam a analisar a marginalização e a política higienista do Estado com o povo preto na urbanização das cidades, seja lá no Morro de Mary de Anya e Sá Rainha ou lá no Sul dos EUA da Farrina. A autora também nos leva a mergulhar no período colonial, ao representar não só o que já sabemos, mas a forma como o preto era tomado como um animal pronto para o “coice” nas próprias mulheres escravizadas, para fins de reprodução e venda, ou, por não “resistir à tentação”, como no caso da viúva da Casa-grande.

Ademais, todas essas discussões se interpõem a momentos de afeto, aconchego e desejos que, em alguns contos, passam longe da heteronormatividade. A autora representa o sentimento e o desejo entre mulheres, relata a solidão que pode acompanhar a mulher lésbica e negra, e as identidades formadas nesse contexto. Mas também apresenta o aconchego dentro das famílias e tradições, como a relação dos mais novos com os mais velhos – pais e filhos, netos e avós – que é sempre acompanhada do carinho respeitoso.

Assim, Um Exu em Nova York deve ser lido e relido várias vezes. É um livro singular, por trazer temáticas relevantes e atuais e misturá-las com tradições e ancestralidades. Cidinha consegue captar o leitor do início ao fim, nos levando a lugares ainda não conhecidos e transformando as nossas vivências singulares em coletivas, sempre com enfoque na resistência. LAROIÊ!

Belo Horizonte, dezembro de 2019.

Referência

SILVA, Cidinha da. Um Exu em Nova York. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2018.


 * Ingrid Oliveira é graduanda em Letras Português / Espanhol da Faculdade de Letras da UFMG e bolsista de Iniciação Científica vinculada ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares da alteridade – NEIA.


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