Representações da masculinidade em Eles, de Vagner Amaro

Harion Custódio1

 

Amplos e inconclusos são os debates em torno da função da literatura e mesmo de seu sentido. Uma das vias de pensamento a levar em conta é a de que o que caracteriza a literatura é a sua própria impossibilidade de ser definida com um sentido único, sendo, assim, aberta a multiplicidades. Porém, é seguro dizer que a literatura é uma forma de conhecimento e autoconhecimento, um meio de se experimentar a vida e a sensação temporal do mundo através da narrativa. Ou seja, resumindo o que foi dito anteriormente, a literatura tem um forte potencial de nos humanizar. Evoco, aqui, as palavras de Antônio Cândido para explicitar tal função da literatura: “entendo aqui por humanização [...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 2004, p. 180).

Com Eles, livro de contos publicado por Vagner Amaro2 em 2019, já em sua segunda edição pela Editora Malê, minha experiência foi justamente essa sensação de estar vivo e em contato com a complexidade do mundo, em toda sua dimensão emocional e intelectual. Sensação de vida não só pelo conteúdo veiculado, mas também pela própria construção do texto e das imagens, cujo melhor exemplo é o conto “Eles”, que dá título ao livro. Na referida narrativa, acompanhamos um recorte na vida de uma criança, que subitamente passa a viver com seu pai, em consequência de um divórcio. Vagner foca nas impressões sentidas pelo menino ao morar com o pai em sua casa de frente para o mar. Bonitas cenas de afeto e cuidado paterno são construídas, ao mesmo tempo em que as imagens nos reportam à puerilidade, inocência e leveza da infância, num movimento nostálgico.

Caminhamos em direção ao mar, a espuma que se formava na beira do mar dava vontade de beber, de tão bonita. Quando alguns raios de sol rompiam as nuvens, que se movimentavam agitadas e clareavam os cabelos do meu pai, dava para ver toda a sua beleza, ele sempre parecia estar em paz, mas ali, na praia ao nosso lado, ele parecia um anjo. Em alguns momentos, Eles se olhavam e sorriam com o olhar, teve uma hora que Luan me pegou e me levantou até perto do céu, e me rodou, eu ria sem fim, meu pai jogou areia em nós, então começamos a empurrar uns aos outros no chão. Eles rolaram na areia, parecia briga, mas era brincadeira porque todos riam, até que meu pai pegou Luan no colo e o jogou na água gelada do mar, fiquei com medo de ele fazer o mesmo comigo e comecei a chorar. Então, ele veio em minha direção e me abraçou grande, me levantou no braço, e, embora chovesse frio, seu abraço era como uma casa quente, não queria sair dali de dentro do abraço, podia não acabar. (AMARO, 2019, p. 28, grifos do autor).

Luan, presente na citação anterior, é o elemento que reúne as complexidades do conto. Companheiro do pai do menino, ele é apresentado para a criança como um tio, “um Tio que eu nunca tinha visto” (AMARO, 2019, p. 26), alguém que estaria de passagem. Entretanto, tal questão, o fato de que ele tinha um relacionamento afetivo com seu pai, permanece na dimensão do silêncio, do não dito. Eis a realidade sendo figurada em sua complexidade: há um padrão comportamental, calcado na construção de uma masculinidade historicamente tóxica, que afeta pais e filhos, homens e mulheres, e inviabiliza a manifestação total e explícita do amor.

Não é o caso, aqui, de falta de amor, pois o garoto admirava o pai a ponto de ter uma referência identitária: “da cozinha veio um cheiro gostoso de peixe, Meu pai cozinhava..., ele ficava tão bonito com um avental, cozinhando. Quando eu crescer eu quero ter um braço tão forte quanto o do meu pai, as pernas grossas também, e quero ser alto como ele”. (AMARO, 2019, p. 26, grifos do autor). O que está sendo problematizado é o estigma social que casais homossexuais carregam e reproduzem devido ao medo de se assumirem em todas as esferas da vida social. Estigma porque passa pela via da dor e do não dito, e indizível permanece também a separação do casal ao longo do tempo: “Meu pai, naquela casa, sempre sozinho, e nunca mais aquele sorriso, daquela tarde, o visitou”. “Minha mãe, às vezes, surgia com seu novo marido e meus novos irmãos” (AMARO, 2019, p. 29).

O nervo central a perpassar todos os dez contos de Eles é, portanto, a tematização da existência de uma construção social de gênero baseada em uma performance masculina historicamente construída e que se manifesta em todas as esferas da sociedade e da vida, sejam elas particulares ou coletivas, cujos efeitos são negativos tanto para o indivíduo que reivindica tal identidade para si, conscientemente ou não, quanto para os outros em torno do qual orbitam.

Damos a esta construção de identidade de gênero masculina – porque performatizada pelo homem – o nome de masculinidade tóxica. Nociva, pois, apesar de muitas vezes ser um fator decisivo para a posição de poder do homem na sociedade, possui efeitos destrutivos para a vida em si, tanto em nível psicológico quanto material, pois a representação hegemônica de “ser homem” pressupõe uso exaltado da violência, predação sexual, supressão de emoções e afetos que possam demonstrar qualquer tipo de “fragilidade” – principalmente se direcionados a um outro do mesmo sexo – blindagem autorreflexiva levando à supressão dos próprios sentimentos, dentre outras autolimitações e estímulos à agressividade.

Desse modo, a masculinidade tóxica é um fenômeno cujos efeitos negativos afetam toda a estrutura da sociedade. Os contos de Vagner exploram, cada um a seu modo, os locais de efeito e dano da construção social de tal referência identitária. É nesse sentido que o primeiro conto, “O perfume de Olavo”, dramatiza uma cena cotidiana protagonizada por uma mãe solo, isto é, cujos filhos e ela própria foram abandonados pelo ex-marido. Luíza, a mãe, esforça-se por tentar criar uma festa de aniversário para seu filho do meio, mesmo com todas as limitações econômicas e emocionais. Olavo, um vizinho de idade avançada que despertava muito apreço por Luíza e seus filhos, chegando a ser chamado de vô, presenteia o filho do meio com um refrigerante. Entretanto, momentos antes de acontecer a festa de aniversário, Olavo e seu companheiro são brutalmente linchados em plena praça pública aos sons de “Mata! Mata! Vai dar em outro lugar!” (AMARO, 2019, p. 12), e sendo observados por “Outros homens [que] sorriam diante do triste espetáculo, as esposas, cúmplices e delirantes, sorriam vitoriosas, não queriam criar os filhos perto daquelas aberrações” (AMARO, 2019, p. 12-13).

Neste rápido, mas conciso conto, que não se basta somente nas descrições, como também penetra nos pensamentos e emoções da protagonista, o leitor é estimulado a pensar várias facetas do machismo: o abandono paternal, que deixa ao infortúnio mulheres e crianças, desestabilizando a estrutura familiar e prejudicando as economias emocionais e afetivas; a homofobia, gerada por um medo de ordem, muitas vezes, do recalque e pela completa aversão à alteridade – alteridade, no caso, responsável por ameaçar a unidade da cultura machista e patriarcal heterossexual. Violência homofóbica que, no conto, adquire mais um grau de complexidade, pois se trata de um casal de idosos, apontando para a completa vulnerabilidade e terror à que essa parcela da comunidade LGBT está exposta; há também a dimensão da assimilação ou reprodução do machismo por parte das vítimas, como demonstra a mãe de Luíza ao culpabilizar a filha pelo abandono do ex-marido dizendo “que não foi sábia para manter o marido” (AMARO, 2019, p. 10).

Em “Janjão” podemos visualizar o caráter construído da masculinidade tóxica, isto é, não se trata de manifestação identitária pura ligada ao homem por natureza, mas sim possui raízes que são reproduzidas ao longo do tempo pelas instituições e estruturas sociais, bem como de pai para filho. No conto, acompanhamos a vida de Janjão e seu pai, o qual é responsável por transmitir ao outro todos seus valores: “cuidou de preparar o menino para todas as batalhas da vida, das brigas com as outras crianças, as espertezas infantis, ‘tem que ser esperto, não pode bobear, dar mole para os manés’” (AMARO, 2019, p. 18).

O pai está presente até mesmo nos momentos mais íntimos: “lembrava-se também de, com o pai, aprender a assobiar, tocar violão, azarar as mulheres, e de que, até mesmo no momento em que perdera sua virgindade, o Mais Velho estivera presente, levando o filho aos poucos bares de meninas que resistiam no bairro” (AMARO, 2019, p.18-19). Chega também a agredir um professor que tentou corrigir as atitudes do garoto: “certa vez, Marcelo esbofeteou um professor que criticou as atitudes de seu filho. ‘Ninguém fala mal do meu filho’” (AMARO, 2019, p. 19). O personagem se responsabiliza por transmitir todos os valores e atitudes condizentes com a masculinidade tóxica a seu filho: violência, ignorância, agressividade e compulsão sexual. Janjão acaba por se tornar policial e dá sequência a uma cadeia irracional de violência, assassinando com um tiro uma criança negra que se encontrava em uma zona de combate contra “criminosos”.

No conto “Dança”, Vagner Amaro aprofunda a problematização da masculinidade tóxica ao dramatizar a questão por meio de um filtro racial. O protagonista da narrativa é Edson, um homem negro adulto que trabalhava como vigilante, mas se encontra desempregado depois de ser acusado de roubar uma garrafa de whisky no próprio estabelecimento onde trabalhava. Temos aqui um primeiro elemento digno de ser notado, que não está ligado à masculinidade tóxica, mas assola majoritariamente homens e mulheres negras: o desemprego e a resignação a trabalhos precários como forma de sobrevivência. Segundo dados do IBGE divulgados em maio de 2019, a taxa de desemprego para a população de negros e pardos é de 63,9%, enquanto para a população branca é de 35,2%.3

Edson, depois de despedido e sendo pressionado para arcar com os custos da vida, se coloca em uma jornada desgastante e cíclica em busca de um novo emprego. E o ciclo do racismo (que não havia deixado de existir mesmo quando trabalhava, pois foi despedido devido à sua cor), com toda sua brutalidade, continua:

Ao vê-lo indo em direção ao caixa, a atendente fechou de forma brusca a gaveta em que ficava o dinheiro e fixou um olhar que ele já conhecia bem, era uma sequência de medo, desejo e constrangimento. Fez seu pedido, a vontade era de não pagar, tão pouco dinheiro, lutando por um emprego e ainda ser tratado assim, como um assaltante! (AMARO, 2019, p. 31, grifos do autor).

O tempo da narrativa do conto se desenrola na mente do personagem enquanto sai na procura de um novo labor. Os acontecimentos que reportam ao passado são representados pela memória do protagonista. É nesse sentido que o deslocamento de Edson pela cidade funciona como um elemento catalisador e de uma tímida autorreflexão. Catalisador na medida em que seu percurso sofre várias violências de raça e gênero: é abordado por um policial num ônibus lotado. É alvo de olhares de vigilância de uma loja em que passa, assim como de olhares lascivos por parte do vendedor, levando-o a lembrar da forma com que sua ex-namorada o tratava sexualmente, à maneira de uma besta sexual: “[nas] noites quentes de intimidades, a mina branca pedia a ele que batesse com força, mordesse e a xingasse. Ela queria casar, mas ele cansou do papel e sumiu sem deixar recado”. (AMARO, 2019, p. 32).

Por meio dessa dramatização, nos é evidenciada a objetificação do homem negro, que além de cobrado por um alto desempenho libidinoso, também tem sua imagem vinculada ao animal, selvagem, máquina sexual, portanto. Temos, nesse caso, a junção de dois elementos históricos: o mito da masculinidade e o mito do homem negro potente. Históricos, porque remetem a uma construção que vem sendo feita desde o passado.

O homem negro, durante o período de escravidão, era rebaixado ao nível da infra humanidade e aproximado ao animal, sendo usado, mesmo, como “máquina” reprodutora de novos escravizados. Tal prática se alastrou de diversas maneiras, e a representação da população negra masculina como sexualmente predatória possui um leque de efeitos negativos, e aliados à masculinidade tóxica geram efeitos nefastos sobre o sujeito. Edson, no conto, parece possuir consciência parcial disso. Do mesmo modo, possui consciência parcial na sua função de propagar o racismo e construções históricas sobre raça, ao abordar um homem negro que adentrara a loja do ex-chefe, acatando a ordem do patrão para sempre revistar pessoas negras que pudessem parecer “suspeitas”.

Todos esses pensamentos ocorrem em uma micro rotina, porém, de tão intensos, levam o protagonista a pensar sobre sua própria identidade:

Quando as pessoas se afastavam dele na rua, quando não queriam sentar ao seu lado no ônibus, quando fechavam os vidros do carro ao vê-lo se aproximar, quando as mães puxavam suas crianças nas vezes em que ele passava perto, isso tudo o atormentava mais estando ele sem emprego. Se pegava pensando coisas que logo em seguida julgava loucas: Quem era esse, que tantos viam nele, mas que ele não encontrava ao se olhar no espelho? Quem era esse outro que se colocava entre ele os outros, fazendo com que o medo em relação a ele fosse tão grande?. (AMARO, 2019, p. 36, grifos do autor).

De fato, há sempre um eu estranho se colocando entre si e o mundo. E esse eu estranho é uma construção de fora para dentro, elaborado pelas esferas impessoais de poder: muitas vezes nossa identidade é construída de forma a corresponder a um mito: o mito da brancura, da virilidade, da masculinidade. Disso resultam, então, inúmeras formas de sofrimento mental e emocional – que se manifestam também sobre a realidade objetiva –, pois é sempre um afastar de si.

Há, ainda, uma série de elementos presente em Eles que gostaria estar discutindo nesta presente resenha. Mas pelas limitações do próprio gênero textual, isso não será possível. Entretanto, caros leitores, deixo meu forte apelo para que apreciem a obra de Vagner Amaro. Não só pelo prazer do texto e da bela leitura, como também uma forma de aprofundar a consciência sobre o mundo em que vivemos e pensar nas complexidades que um padrão tóxico de masculinidade está a causar sobre nossas interrelações. Eles é um convite a se pensar uma nova sociedade, um novo homem.

Belo Horizonte, junho de 2019.

 

Referências

AMARO, Vagner. Eles. 2. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2019.

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 4. ed. Rio de Janeiro: Duas Cidades, 2014.


[1] Harion Custódio é Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais. É também pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade.

[2] Vagner Amaro, além de escritor, é bibliotecário e jornalista. É também especialista em Gestão da cultura. Organizou obras como Machado de Assis por jovens leitores e Lima Barreto por jovens leitores. É sócio e editor da Editora Malê.

[3] Os dados podem ser conferidos no site do IBGE. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/ 24486-pnad-continua-trimestral-desocupacao-cresce-em-14-das-27-ufs-no-1-trimestre-de-2019. Acesso em: 13/06/2019.