Angola Janga: quadrinho e representação histórica 

Harion Custódio* 

"Há muito tempo, os primeiros homens e mulheres foram pegos. Levados nos tumbeiros pelo calunga... até esta terra. Apesar de tudo, um grupo fugiu! Cheios de gana. Eles caminharam muitas noites pelo cafundó... Alguns sonhavam ainda voltar pra terra além do calunga, em Matamba... Outros sabiam ser impossível. Depois de muitos dias, chegaram numa terra protegida, vistosa e fértil. Mata repleta de palmeiras para comer e construir mocambos, terra onde... sementes de massango, guando e muito mais... podem brotar e florescer". (Uma história do velho Tata).

 

Angola Janga é uma das publicações mais surpreendentes de 2017-2018. E tal fato não poderia ser diferente, visto o talento artístico e o vigoroso espírito investigador de Marcelo D’salete, que vem pesquisando e coletando material para sua composição há anos (espiritualmente, desde a infância dos tempos escolares). D’salete é autor de histórias em quadrinhos, ilustrador e professor. O escritor reside na cidade de São Paulo e possui extenso currículo no mundo das artes gráficas. Suas principais publicações são Encruzilhada (2011)1; Cumbe (2014); e Angola Janga, lançado em novembro de 2017. Além dessas obras de autoria própria, o autor fez colaboração com Alan da Rosa, ilustrando o livro Zagaia (2007), e com Martinho da Vila, sendo responsável pelos desenhos de A rainha da Bateria (2009).

Angola Janga é uma primorosa graphic novel cuja trama sequencial (no sentido atribuído por Will Eisner (2000)) retrata as últimas décadas do maior mocambo da nossa história: Palmares. A narrativa se ambienta, então, no século XVII, e nos é apresentado um enredo que enfoca nos processos de resistência dos negros escravizados e quilombolas contra a brutalidade da violência colonial em seu aspecto geral. O livro é fruto de 11 anos de pesquisa, tempo em que o autor se dedicou a ler sobre a história da escravidão e dos mocambos brasileiros (em especial Palmares) e realizar investigações de campo.

O livro Cumbe, muito semelhante à Angola Janga, é fruto também desse processo de busca do autor. No referido comic book publicado em 2014, D’salete também volta seu olhar para o passado histórico da escravidão brasileira e para os processos de resistência e insubordinação dos negros escravizados. Não se trata de uma narrativa linear, pois apresenta, assim como Encruzilhada, várias histórias protagonizadas por negros e negras no período colonial, dramatizando as múltiplas formas de luta e anseios dos escravizados.

Na mencionada narrativa gráfica, já vemos toda a potencialidade estética dos efeitos e detalhes que se estendem à Angola Janga, pois a beleza dos traços do artista representa com singular sensibilidade e intensidade o mundo das fazendas e engenhos de cana-de-açúcar, assim como as matas fechadas que serviam de abrigo àqueles que almejavam liberdade. Também bela e interessante é a forma com a qual D’salete transporta elementos da cultura africana para sua narrativa gráfica num nível semântico e estético, como no caso do próprio título do livro, Cumbe, palavra proveniente da língua quimbundo, um grande tronco linguístico de origem bantu, que significa sol; luz; força; energia. Além disso, a referida obra quadrinhos venceu o prêmio Eisner Awards de 2018 na categoria de Melhor edição de material estrangeiro e também foi publicado na França, Itália, Áustria, Portugal e Estados Unidos.

Doravante, Angola Janga segue a mesma linha de representação histórica da obra anterior, só que agora se trata de uma novela gráfica com uma trama unificada, e a ação envolve uma cronologia especificamente delimitada, (as últimas décadas de existência do quilombo de Palmares, como já afirmado).

Angola janga, termo proveniente também do quimbundu, que significa “pequena Angola”, era usado para designar a região que englobava Palmares e diversos outros mocambos, como Macaco e Subupira, localizados nas cercanias da Serra da Barriga, numa área que hoje pertence a Alagoas. O título, mais uma vez, não é fortuito: indica o lugar de enunciação afrodiaspórico da narrativa, pois os protagonistas são os próprios negros em busca de liberdade e autonomia, tomando vida, entre eles, personalidades históricas como o próprio Zumbi dos Palmares, Ganga Zumba e Acotirene.

A combinação justaposta de ilustração e prosa nos oferece um interessante prisma de visualização e revisitação cognitiva do passado. Por meio do produto imagético do artista, fruto de uma imaginação criativa calcada na realidade histórica, temos a apresentação direcionada de um mundo da ordem do inexistente em sua totalidade. Aliás, a imagem é uma forma privilegiada e até mesmo primitiva de conservação e exercício da memória, remontando ao tempo da antiguidade, a título de exemplo a ars memoriae ou mnemotécnica praticada por poetas e sofistas da antiguidade grega (SELIGMANN-SILVA, 2016).

Outrossim, o quadrinho possui intrínsecas relações com o cinema, pois o tempo e espaço diegético de ambas as formas artísticas se movimentam por meio da sequência combinada de imagens. Nesse sentido, o quadrinho, na relação entre obra e indivíduo, conserva uma propriedade privilegiada de interação, tanto em relação à fruição quanto em relação à investigação: a demora e a contemplação (a dimensionalidade da imagem impressa permite uma maior desaceleração do olho e o movimento de retrocessão se torna, muitas vezes, um imperativo natural). Assim, temos acesso imaginativo à arquitetura dos mocambos e habitações coloniais da época:





Lampejos da rotina de trabalho forçado nos engenhos:



E visão da composição geográfica da região da Serra da Barriga:





É de se admirar também a intensidade singular que D’salete transfere ao mar atlântico, repleto de manchas negras em tom melancólico, remetendo, em minha visão particular, ao mundo dos mortos paralelo ao “grande mar”, ou, na língua quimbundo, o Calunga:



O Calunga, ou “grande mar”, é também um elemento que nos remete à diáspora africana, pois a resistência cultural e física de milhões de africanos, apesar do desterramento forçado, pôs abaixo fronteiras territoriais, criando profundas raízes em solo estrangeiro de forma perene, se espalhando e imiscuindo por todo a América. É por isso que os Sona – desenhos formados por pontos e linhas sinuosas realizadas na areia e acompanhadas por narrativas orais, de origem tchokwe, povo que habita o nordeste de Angola e as regiões próximas da República Democrática do Congo e Zâmbia –, além de cumprir uma função simbólica na narrativa – pois o símbolo a ser reproduzido a seguir representa um local na floresta onde abundam frutos e animais, funcionando como um mapa da quilombagem – evidencia, também, a resistência inquebrável da cultura africana mesmo nos ambientes mais hostis:

Além de focar no aspecto coletivo da luta por Palmares e demais mocambos, D’salete também se volta para o indivíduo, mostrando, com a ajuda de uma avançada estética do desenho gráfico, os afetos e anseios dos africanos escravizados, que nunca deixam de nutrir amor uns pelos outros e pela cultura e terra de origem. Nesse sentido, a novela gráfica se mostra bastante realista, pois não romantiza as figuras históricas, nem procura um purismo nas relação entre os negros da época.

Angola Janga é fruto de uma extensa pesquisa por parte do autor. Isso fica evidente não só pela presença de um vasto glossário, referência bibliográfica e mapas de regiões quilombolas e das rotas dos navios negreiros no atlântico no final do livro. Mas o trabalho de pesquisador é visível também na própria densidade do traço, que busca reconstruir a arquitetura africana dos mocambos e as matas cerradas em que os embates se travavam.

Angola Janga, e também Cumbe, ajudam a preencher um grande vazio na nossa história oficial, narrando, por meio da arte gráfica dos quadrinhos e da combinação múltipla de símbolos, a história das lutas e aspirações da população negra no período colonial, com suas conquistas e perdas. Tal material se mostra de importante valor para a recreação e pesquisa e também para as salas de aula dos ensinos fundamental e médio, pois representa de forma dinâmica um lado da história pouco contemplado pelos livros didáticos, podendo cumprir o importante papel de suplemento de parte da nossa história nacional. O exercício combinado de visualização e imaginação histórica proporcionado por Marcelo D'salete permite uma mudança axiológica na forma com que os nossos antepassados são representados pela história oficial, por meio do duplo movimento de apontar uma origem dos negros anterior à escravidão, do outro lado do atlântico, e de demonstrar que mesmo na condição de escravizados e espoliados, o povo negro sempre exerceu resistência no nível cultural, simbólico e material (sendo a edificação dos mocambos uma conjunção de todos esses fatores). Além do mais, o quadrinho nos lembra também que a resistência possui um histórico e a necessidade de erguer quilombos contemporâneos se faz uma necessidade constante. 

Belo Horizonte,
25 de setembro de 2018.

Referências

D’SALETE, Marcelo. Angola Janga: uma história de palmares. São Paulo: Veneta, 2017.

EISNER, Will. Comics and sequential arts. 19th edition. Tamarac, Florida: Poorhouse Press, 2000.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência. Psicologia USP, v. 27, n. 1, , p. 49-60, 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564D20150011>.


Notas

[1] Em Encruzilhada, uma de suas primeiras publicações, D’salete já imprime a característica mais importante de seu foco narrativo. Trata-se de uma composição gráfica que reúne um conjunto de histórias isoladas, mas coerentes, que se passam nas regiões periféricas da cidade de São Paulo do início do século XXI. A perspectiva e voz narrativa são construídas de forma interna aos protagonistas das histórias, dando visibilidade, de forma não estereotipada, a uma parcela de sujeitos excluídos da sociedade e privados de representação.


Sobre o autor

* Harion Custódio é mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. Também atua como pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da alteridade.