Panorama da literatura negra ibero-americana: novas práxis discursivas e o conhecimento como devir

 

Harion Custódio*

Os campos do discurso e da ciência são marcados por conflitos atrelados a relações de poder, como já constataram amplamente os estudos voltados para a análise do discurso. Nesse sentido, a epistemologia pode ser usada como um instrumento ideológico que mascara, suprime ou deturpa determinados segmentos que sejam contrários ao interesse sobre o qual o “sujeito hegemônico” está vinculado. Apesar do cunho notoriamente político da afirmação anterior, tal procedimento de apagamento e silenciamento é facilmente observável na historiografia do conhecimento, mesmo no caso de um ato despretensioso do pesquisador apaixonado pelo seu objeto de investigação. E, estando a episteme inserida na história, os efeitos negativos de tal operação continuam a existir nos dias de hoje, podendo ser definidos como “epistemicídios”, para ficarmos nos termos de Sueli Carneiro (2014).

Fundam-se, então, paradigmas que não correspondem à multiplicidade de vozes que compõem a sociedade. A História Oficial acaba por obliterar as narrativas dos “vencidos”, dos subalternizados, relegando-os ao espaço da margem, do quase esquecimento. Se atentarmos para a historiografia da literatura brasileira, perceberemos que o processo de canonização configura-se também como um processo de exclusão e inferiorização, no qual os autores contemplados por esse estatuto partilham entre si, na maioria das vezes, características e perfis semelhantes: classe, etnicidade e gênero são, quase sempre, “brancos”.1 E quanto à temática os efeitos não são diferentes: a alteridade ou, mais precisamente, o negro, é, via de regra, inscrito a partir de uma perspectiva estereotipada e desprovida de humanidade.

Apesar disso, os textos de expressão afro-brasileira sempre se fizeram presentes e expressivos desde os primórdios da vida artística e intelectual nacional,2 inseridos em lugares de fala resistentes e contrários à ordem silenciadora. Em vista disso, os estudos voltados para essas produções fundam conceitos outros que abalam a estrutura gasta dos paradigmas conservadores, ressignificando continuamente, desse modo, a episteme pré-estabelecida. A partir dessa primeira constatação, é possível compreender a afirmação de Rodrigo Vasconcelos Machado, para quem “o trabalho historiográfico pressupõe novas sistematizações e permanentes reescrituras que possam incorporar ou até mesmo retirar do ostracismo produções literárias até então esquecidas ou obnubiladas.” (2015, p. 7). Nesse contexto, a literatura negra ibero-americana, atravessada por tempos e discursos heterogêneos, exige para si novas abordagens e investigações, alterando, destarte, a própria historiografia.

É nessa categoria epistemológica pautada pela diferença que o livro Panorama da literatura negra ibero-americana se insere. Organizado por Rodrigo Vasconcelos Machado, da Universidade Federal do Paraná, reúne vinte e nove trabalhos apresentados no II Simpósio de literatura negra ibero-americana, realizado em março de 2015, na UFPR, com pesquisadores de diversas instituições, localizadas de norte a sul do país.

Em vigorosas 641 páginas, a coletânea é composta por textos que buscam refletir acerca da representação e da atuação dos negros na literatura e nas diferentes artes localizadas na Ibero-américa, bem como abordar temas relativos a africanidade e diáspora, articulando esse complexo identitário com a história e a cultura de diferentes espaços geográficos. Devido à multiplicidade de temas e objetos, o livro se divide em quatro partes, em permanente diálogo: “Novas abordagens da literatura negra ibero-americana”, “A poesia negra ibero-americana”, “A narrativa negra ibero-americana” e “A literatura negra ibero-americana e outras linguagens”.

No artigo que introduz o livro, “Saberes e sabores na ensaística de Manoel Querino”, Rodrigo Vasconcelos Machado aponta questionamentos e reflexões acerca do ensaio do pensador baiano merecedores de especial atenção. Querino, que viveu entre os anos de 1851 a 1923, obteve relativa notoriedade devido aos seus estudos históricos e sociais, conseguindo superar a condição socioeconômica de origem. Tendo isso em conta, Vasconcelos, em primeira instância, recorre ao retrato do intelectual como uma forma de resgatar um arquivo simbólico que permite interpretações acerca de seu lugar de fala e de sua biografia, para em seguida articular tais fatores com sua produção ensaística, analisando como ele teorizava sobre os elementos raciais e culturais nos ensaios presentes no livro A arte culinária da Bahia. O pesquisador pondera que os textos de Manoel Querino vão além e acabam funcionando como discurso que afirma as influências e as características positivas do afrodescendente no processo de nossa formação como nação, fundando uma perspectiva de miscigenação na qual os conflitos inerentes ao processo não foram velados e o negro não é representado como elemento negativo ou inferior.

Na mesma seção, o artigo “Oswaldo de Camargo: poesia, ficção, autoficção” também utiliza como ponto de partida elementos da biografia, levando em conta os lugares de fala do escritor. Seu autor, Eduardo de Assis Duarte, traça uma linha interpretativa acerca de três livros do contista e poeta, demonstrando as diferentes formas com que ele representou a construção de uma identidade afrodescendente em três distintos livros: Um homem tenta ser anjo, 15 poemas negros – escritos em sua juventude – e O carro do êxito. No primeiro, o eu-poético constitui-se como ser em busca de razões existenciais e substância identitária. Já no segundo, “esse sujeito em trânsito cresce e traz para o verso sua condição de afrodescendente submetido ao racismo nem sempre silencioso vigente no país desde os tempos da senzala”. (p. 26).

Em O carro do êxito, por sua vez, Oswaldo de Camargo experimenta novas formas de linguagem e expressão sem, entretanto, relegar a negritude: os contos inscrevem “o subalterno na intensidade de suas angustias e sofrimentos, da mesma forma que apontam para a consciência crítica da realidade de sua condição”. (p. 28). Concomitantemente ao estudo das marcas do princípio étnico ao longo das narrativas de Oswaldo de Camargo, Duarte analisa como a própria história de vida do escritor, assim como de notáveis figuras do movimento negro dos anos 70, lastreiam, em vários biografemas, os seus escritos. Outrossim, isso também estaria ligado a uma poética polifônica, na qual a construção da identidade negra seria representada não como um processo homogêneo, mas como um mosaico de faces múltiplas.

Os artigos suscitam reflexões e questionamentos sobre novas práxis discursivas empenhadas em romper com paradigmas e lidar com as questões relativas à presença do negro na literatura. Os temas abordados possuem relação entre si, estabelecendo uma sequência harmônica. A investigação sobre os conflitos vividos historicamente e a exclusão social que persiste ao longo do tempo estão nos artigos “O Brasil-decifrado e o Brasil-enigma. Abordagens da exclusão e da violência na Literatura Negra e/ou Afro-Brasileira”, de Edimilson de Almeida Pereira; assim como em “Os anônimos no espaço da cidade: inter-relações poéticas”, de Maria Nazareth Fonseca.

Ainda na seção “A poesia negra ibero-americana”, os artigos “O drama da expressão: Estética, ideologia e negritude em Adão Ventura” e “A poesia de Adão Ventura em uma nova ordem para o discurso”, escritos, respectivamente, por Anelito de Oliveira e Édimo de Almeida Pereira, também partem da análise de traços biográficos autorais vinculados à representação da identidade negra. No primeiro, em breve panorama da literatura de Adão Ventura, o pesquisador constata como o poeta articula sua afro-brasilidade com diferentes recursos estéticos ao longo do tempo e como isso culmina em um procedimento ideológico. Já no segundo, Édimo de Almeida Pereira, a partir das teorias de Foucault, observa como o poeta mineiro estabelece uma ordem discursiva engajada, contraposta ao discurso do apagamento, de modo a impedir que a voz e a real situação da população negra sejam obliteradas.

Os estudos da autoficção e da autobiografia ressurgem também em “A escrevivência na literatura feminina da diáspora negra”, agora presente na seção “A narrativa negra ibero-americana”. Nele, a pesquisadora Mail Marques de Azevedo lança mão do conceito de “escrevivência”, cunhado pela escritora Conceição Evaristo, para analisar não só a presença de elementos biográficos como também a performance do corpo negro, com toda sua carga identitária e histórica, intrinsecamente ligado ao processo de escrita. Estabelecendo um estudo literário comparado, a pesquisadora aproxima as narrativas de Geni Guimarães e Conceição Evaristo com as suas “counterparts” norte-americanas, Maya Angelou e Toni Morrison, ressaltando as diferenças e semelhanças da representação da identidade negra e feminina em uma realidade pós-colonial, sem deixar de lado, é claro, as dessemelhanças históricas e espaciais.

Nesse ínterim, cabe inferir uma reflexão acerca do livro, tomando como base o termo panorama: visando construir uma imagem abrangente, que leva em conta aspectos como história e lapsos temporais, um panorama contempla diferentes ângulos de um dado objeto: além da negritude, questões como gênero, classe e geografia estão imbricados em um processo complexo. Apesar da proposta ser aparentemente restrita ao território da ibero-américa (nomenclatura que remete a uma condição histórica relativa à colonização de territórios circunscritos no continente americano por parte de países da Península Ibérica), o estudo de problemas relativos ao ser afrodescendente extrapolam as barreiras de uma nação específica, uma vez que a condição do negro diaspórico aponta para um fenômeno de ordem coletiva. A produção da literatura negra nas Américas é marcada, portanto, por esse estado de “entre-lugar” causado pela violenta empreitada da escravidão. Desse modo, outros artigos também refletem sobre a questão de uma forma transnacional, tais como “Discurso sobre a história e cultura afro no período colonial em A república dos bugres” e “De escravo a rei: a trajetória de Alonso de Ilescas no Equador do século XVI”.

Transnacional, a literatura negra ibero-americana também se encontra numa área intermidiática. É isso o que os artigos inclusos na última seção problematizam. Em “Os recursos cinematográficos no conto ‘Quando o malandro vacila’, de Márcio Barbosa”, Fausto Antônio analisa como o coordenador do Quilombhoje lança mão de recursos da sétima arte em sua ficção, criando “uma interseção cultural e ponto de mediação entre múltiplas linguagens, a literária, a cinematográfica e da tradição negro-africana.” Outrossim, a análise de interseções focadas na cultura negra-africana e afro-brasileira também é matéria dos artigos “O negro na poética cancional do samba-enredo de Porto Alegre” e “Ritos de candomblé em Aruanda (1946), de Joaquim Ribeiro”.

O Panorama da literatura negra ibero-americana fundamenta-se como uma antologia crítica de grande importância para a historiografia literária e até para a História em si. Após a fruição dessa densa matéria voltada para o exercício intelectual, a sensação prevalente é de encanto e alento: encanto, pois nos é mostrado – em várias perspectivas, temporalidades e espaços – o quão grande e bela é a cultura afro-brasileira, assim como sua resiliência frente aos processos de apagamento; alento, porque mesmo o seu conteúdo sendo de alta complexidade e profundidade teórica e crítica, os objetos analisados não esgotam aí, ao contrário, explodem em outras múltiplas possibilidades, demonstrando como essa epistemologia da alteridade afrodescendente se encontra em um constante devir, uma existência da ordem da perenidade – produto de incansável luta e trabalho de nossos antepassados e contemporâneos.

Referências

CARNEIRO, Sueli. Epistemicídio. Portal Geledés. Disponível em: <http://www.geledes.org.br/epistemicidio/#gs._cqZqcA>. Acesso em: 7 out. 2015.

MACHADO, Rodrigo Vasconcelos (Org.). Panorama da literatura negra ibero-americana. Curitiba: Imprensa UFPR, 2015.

 

1 Sobre isso, recomenda-se a leitura do artigo “A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990 – 2004” (2005), de Regina Dacalstagné.

2 Conferir a Antologia Literatura e afrodescendência no Brasil (2011), organizada por Eduardo de Assis Duarte.

* Harion Custódio é graduado em Letras e Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG; pesquisador do NEIA/UFMG e membro da Comissão Editorial do literafro - Portal da literatura afro-brasileira.

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