O teatro da diáspora africana em questão

Eduardo de Assis Duarte*

Em sua Crítica da razão negra (2014), o filósofo camaronês Achille Mbembe demonstra em detalhes o quanto os sentidos outrora hegemônicos da palavra “negro” foram construídos, desde o século XV, pelo Ocidente interessado em fazer dos africanos não apenas mercadoria mas, sobretudo, força de trabalho submissa. E relata como o predomínio dos interesses do capitalismo mercantil em sua expansão ultramarina levou à convicção na infra-humanidade do negro, crença fundamentada em inúmeras narrativas – tanto triviais e lendárias, quanto filosóficas e, até mesmo “científicas” – que ganharam corpo em quase todo o planeta até se fixarem no senso comum. Esse “atributo de inferioridade” que, via de regra, divisava no negro africano e em seus descendentes figuras humanas apenas até certo ponto, pois destacava neles a submissão animalesca aos instintos, se impôs como verdade absoluta dos dois lados do Atlântico, tanto nas metrópoles quanto nas colônias. E isto porque funcionou como justificativa e álibi para o lucrativo tráfico negreiro.

Mbembe assevera que a doxa inferiorizante só vem a ser efetivamente combatida a partir de começos do século XX, não só pela pesquisa antropológica, mas, em especial, pelos escritos dos próprios negros africanos e da diáspora. E nesse aspecto destaca a literatura, o teatro e a música, ao lado de discursos políticos mais contundentes.

De fato, não se pode negar a força renovadora de movimentos como a Renascença do Harlem estadunidense, o Negrismo cubano (e seus congêneres caribenhos) e a Negritude francófona ao constituírem, nas décadas de 1920 e 1930 o fenômeno que veio a constituir a chamada “Literatura negra ocidental”. Essa força vai além da página impressa e é renovadora não apenas por dar corpo ao primeiro movimento artístico internacional originário das Américas, mas principalmente por produzir textos poéticos, ficcionais, dramatúrgicos e musicais que contestam a dita “razão negra” europeia, cujo DNA, hoje todos sabemos, é branco e racista.

Como não poderia deixar de ser, essa “onda afro” chega ao Brasil em 1944, com a fundação do Teatro Experimental do Negro – TEN, dirigido por Abdias Nascimento. E, ao chegar, se soma aos precursores que já batalhavam pelo espaço artístico e literário com produções oriundas de uma perspectiva interna ao sujeito negro como forma de anunciar sua humanidade e, assim fazendo, denunciar as formas de pensamento que o enjaulavam nos estreitos limites oriundos da escravização. Ao substituir a black face pela até então inédita presença do ator negro no palco, o TEN cumpriu um papel seminal na propagação da literatura e do teatro negros no Brasil, sendo também responsável pelo aparecimento de profissionais da estatura de Ruth de Souza, Léa Garcia e Haroldo Costa, entre outros. Ao longo da segunda metade do século XX, vários grupos vão surgindo, movimento este que ganha impulso na contemporaneidade, com coletivos de autores e atores negros presentes em todas as regiões do país.

É nesse contexto que se situa o importante trabalho de Marcos Antônio Alexandre, O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba. Fruto de longo e minucioso trabalho de campo, que levou o pesquisador a visitar e estabelecer convívio com autores, encenadores e atores de diversos polos de produção nos dois países, o livro revela um vasto universo de criação dramatúrgica e teatral pautado pela afirmação do negro enquanto sujeito/autor do texto e da cena.

Além de pesquisador e professor dos cursos de Letras e de Teatro da UFMG, Marcos Antônio Alexandre é também ator e diretor, com participação no grupo mineiro Mayombe desde a sua fundação, em 1996. É, portanto, alguém que vive o teatro intensamente e em todas as suas particularidades. Dentre suas inúmeras publicações, cumpre destacar os volumes Por um reino, teoria e prática teatral (2000, em parceria com Sara Rojo); Gênero e representação em literaturas de línguas românicas (2002, coautoria); Antologia teatral da latinidade (2007, também em parceria com S. Rojo e Maria Lúcia Barros); além da organização da coletânea crítica Representações performáticas brasileiras (2007). Nessa linha, sua pesquisa vem mapeando e estudando o trabalho dos principais grupos teatrais afro-brasileiros contemporâneos.

O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba articula de modo extremamente produtivo as instâncias da teoria e da prática, numa reflexão crítica de fôlego que não exclui a interlocução com importantes agentes desse movimento, presentes no livro através de entrevistas e depoimentos. E que se completa com a tradução da peça María Antonia, do afro-cubano Eugenio Hernández Espinosa, que também comparece com seu depoimento. Nessa linha, o livro se divide em quatro grandes blocos: no primeiro, vêm os aportes teóricos sobre o teatro negro, em que ganha relevo o conceito de “corpo pulsante”; no segundo, o leitor tem uma verdadeira aula, ricamente ilustrada, a respeito dos grupos teatrais negros em atividade em Minas, na Bahia e em Cuba; no terceiro, se insere a tradução do texto de María Antonia; e, por último, vêm as transcrições dos depoimentos e diálogos do pesquisador com dramaturgos, atores e encenadores dos dois países.

De início, tem o leitor acesso à polêmica envolvendo o conceito. Para Marcos Alexandre, o teatro negro compõe-se de “textos dramáticos e/ou espetaculares em que os negros, a sua cultura e a sua visão ideológica do (e para o) mundo aparecem como temática central e como agentes”. (p. 28-29, grifos do autor). Alinhado à perspectiva dos Estudos Culturais, Marcos Alexandre questiona a falsa abrangência do adjetivo “brasileiro”, para ele responsável por “um discurso muito distante de nossa diversidade cultural e étnica”, destaca o fato do Brasil ter “a maior população negra fora da África e a segunda maior do mundo”. (p. 29). E acrescenta:

O teatro negro não só retrata as especificidades dos sujeitos negros e sua integração na sociedade, mas também se retroalimenta dos elementos que compõem e integram a cultura dos afrodescendentes em suas distintas manifestações artístico-performáticas: danças, músicas, jogos, linguagem, mitos, religião e ritos, pois o teatro negro é ritualístico. (p. 34 grifos do autor).

O tom polêmico prossegue, com o autor se posicionando por um teatro negro engajado: “este engajamento deve ser manifestado em distintos níveis, assumindo características que vão desde uma arte que seja (por que não?) panfletária até uma estética que assume vieses que dialogam com outras nuances”. (p. 35-36). Arrola então questões inerentes aos afetos e à subjetividade em paralelo à postura explicitamente política.

Ainda na primeira parte, Alexandre introduz o conceito de “corpo pulsante”, que vê o corpo negro como um signo pleno de sentidos, a remeter a todo instante à memória ancestral e ao vasto repertório cultural que interliga o trabalho performativo com o rito e a ação espetacular.

No segundo bloco, o livro percorre a atuação dos grupos de teatro negro em Belo Horizonte, Salvador e Cuba para ressaltar suas especificidades e confluências. E apresenta ao leitor um conjunto significativo de mulheres e homens negros, em sua maioria jovens e de meia idade, envolvidos na criação dramatúrgica e na encenação de suas angústias, inquietações e reivindicações, mas igualmente de alegrias, encontros e realizações, tudo isto numa performance atenta ao poder da forma de expressão como ponte para cativar atenções, corações e mentes das plateias. Surgem então artistas e grupos sobre os quais, via de regra, se tem pouco ou nenhum conhecimento, em função de suas ausências na grande mídia: Teatro Negro e Atitude, Tambor Mineiro, Cia. Burlantis, Tambolelê, Aruê das Gerais, Arautos do Gueto, Trovão das Minas, entre outros.

O trabalho de Marcos Alexandre não só descreve as atividades de cada um, como procura situá-los historicamente, além de dar a palavra a alguns de seus líderes no quarto bloco do livro. Além disso, analisa montagens específicas para ilustrar com exemplos concretos sua postura, não só descritiva, mas, acima de tudo, reflexiva. Detém-se então em espetáculos como O Negro, a Flor e o Rosário, assim como Galanga Chico Rei, Madame Satã, Memórias de Bitita, NEGR.A e O Grito do Outro – o grito meu!, todos encenados em Belo Horizonte, com a participação de elencos locais, mas também de profissionais reconhecidos nacionalmente, como o diretor João das Neves.

De Minas Gerais a pesquisa desembarca na Bahia para focalizar tanto o Bando de Teatro Olodum, com direito a um alentado depoimento do diretor, Márcio Meirelles, na parte final do livro, como também iniciativas vitoriosas como o NATA – Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas, dirigido pela atriz, dramaturga e encenadora Fernanda Júlia, com um depoimento em que discute sua trajetória pessoal e do grupo. O estudo de Marcos Alexandre detém-se então em espetáculos encenados pelo NATA, como Shirê Obá, a festa do Rei e Exu, a boca do Universo, em que destaca o diálogo da peça com a tradição mítica e religiosa presente na cultura afro-baiana. Adentra, em seguida, no rico acervo de realizações do Bando de Teatro Olodum, tais como Zumbi, Cabaré da Rrrrraça, e Bença, pautado pela mesma orientação pedagógica e reflexiva de aliar a proposta de cada coletivo à leitura crítica de suas realizações no palco. E tudo isto chega ao leitor também pelas imagens escolhidas a dedo e inseridas com extremo apuro estético a fim de ilustrar cenas cruciais dos espetáculos analisados pelo crítico, para deleite e aprendizado dos leitores.

O segundo bloco se encerra com o universo do teatro afro-cubano, trazendo ao leitor brasileiro um formidável conjunto de informações, sem deixar de lado as polêmicas que vigoram em ambos os países a respeito da questão identitária e do embate entre nacionalidade e etnicidade. Percorre então trabalhos como o de Fátima Patterson, fundadora do “Cabildo Teatral Santiago”; Gerardo Fulleda Leon, diretor e autor premiado de peças de sucesso no país, como Azogue, Chago de Guisa e Ruandi, entre outras; e Eugenio Hernández Espinosa, também premiado e reconhecido autor dos mais relevantes, por suas peças, entre elas, Quiquiribú Mandinga, Odebí, el cazador e María Antonia, drama de forte componente trágico, a articular crítica social e de gênero com o repertório mítico-religioso oriundo da cultura negra diaspórica.

Na terceira parte do livro, María Antonia surge traduzida na íntegra para o português, cumprindo o projeto autoral de instigar a reflexão do leitor pelo confronto das posições teóricas e lugares de fala de cada um dos autores estudados com suas construções textuais e espetaculares. Para quem sofre, como nós brasileiros, o persistente “bloqueio” midiático a encobrir com uma verdadeira cortina de silêncio a produção cultural da ilha, o livro funciona como precioso alento e se transforma em fonte imprescindível não apenas para a pesquisa acadêmica, mas, em especial, para que tomemos conhecimento de universos tão próximos e tão distantes, explicitados pela cena teatral dos dois países.

O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba surpreende, pois, pelas inúmeras convergências reveladoras do quanto há de pontos de contato na dramaturgia da diáspora negra nas Américas, instada a responder no palco às situações de exclusão e subalternidade oriundas do processo escravagista, até hoje vivas e atuantes no cotidiano de milhões de afrodescendentes. Por outro lado, revela também as particularidades específicas de cada contexto, a compor um conjunto amplo e diversificado, que inscreve a diferença a partir de dramas sociais e políticos distintos, embora convivendo com heranças e arquivos culturais comuns. Em suas 426 páginas, o livro de Marcos Antônio Alexandre se afirma como referência aos estudiosos da questão não apenas pelo ineditismo, amplitude e originalidade da pesquisa mas, em especial, por recobrir todas essas lições com o empenho político e ético de trazer para o debate vozes até então pouco consideradas.

Belo Horizonte

20 de Março de 2017

 

Referências

ALEXANDRE, Marcos Antônio. O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2017.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.

* Eduardo de Assis Duarte é professor da Faculdade de Letras da UFMG. Autor de Literatura, política, identidades (2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (1996). Organizou, entre outros, Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (2007), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2014). Coordena o Comitê Gestor do literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro.

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