Tudo que pode ser é negro:
transgressão e encantamento em A persistência e o tempo
Loiany Camile Gomes*
O livro A persistência e o tempo: escritos sobre raça, poder e racismo, de Fátima Lima, foi publicado pela Papéis Selvagens Edições em 2024. A obra propõe ao leitor a imersão em conceitos fundamentais à discussão da existência da pessoa negra, como a negridade, o encantamento, a resistência, a visceralidade, a liberdade, a igualdade, a transgressão, a desobediência e a teimosia. Embora se faça necessário analisar os processos e as premissas dolorosas da vivência diaspórica no negro, como o colonialismo, a colonialidade, o trauma, a necropolítica, a plantation, etc., o que sobressai nos textos de Fátima é a persistência do povo negro ao longo do tempo, marcada pelo poder da ancestralidade.
Fátima Lima convoca para ampará-la em sua escrita um referencial teórico que, para além da acuidade epistemológica e literária, tem a vivência diária daquilo que o poeta Anelito Oliveira (2023) denuncia por meio de seu poema “Negrontologia”, a saber, a não existência da pessoa negra: “O negro não é. / O negro é isso que não é. / O negro é o não.” A obra de Lima, nesse sentido, dialoga com Frantz Fanon (quem inspirou Anelito em seu poema), Grada Kilomba, Denise Ferreira da Silva, Achille Mbembe, Conceição Evaristo, Toni Morrison, Saidiya Hartman, Lélia González, Édouard Glissant, entre outros.
Já na capa, por meio da ilustração da artista J. Lo Borges, há uma sugestão do que Lima abordará em seu livro: raízes ancestrais que se fortalecem e verdejam. A árvore ilustrada é conhecida como gameleira-branca ou figueira-branca. Segundo Douglas Mota (2023), majestosa, ela pode chegar a 30 m de altura e 2 m de diâmetro. Além disso, está associada à figura de Iroko, orixá cultuado no candomblé Ketu, que representa a dimensão do tempo imanente e da ancestralidade, bem como faz a ligação entre o Òrun (geralmente traduzido como “céu”) e Ayé (geralmente traduzido como “terra”). A representação proposta por J. Lo Borges ganha a forma de uma mulher negra, figura que Fátima Lima enfatiza sempre em sua obra.
Também é interessante mencionar o projeto gráfico do livro, que conta com páginas pretas e fonte branca na dedicatória, no sumário e no início das seções, intensificando imageticamente a discussão sobre a existência e a resistência social da pessoa negra na sociedade em que está inserida.
Composta por seis seções e 10 capítulos (textos já anteriormente apresentados em comunicações ou publicados em revistas acadêmicas), a obra organiza-se a partir da temática “Palavras tramadas na opacidade”. Como informa Lima (p. 18):
O tema da trama e da opacidade é a espinha dorsal que alinhava cada oferta. Essa trama vem de um imaginário vivo dos Nordestes: suas cestarias, redes, bordados. A opacidade, tomo-a emprestada de Édouard Glissant, tentando desvencilhar-me da política das diferenças e perseguindo o direito a ela.
Nesse sentido, as opacidades podem coexistir, levando à convivência das humanidades. E é isso que Fátima Lima busca demonstrar, esclarecendo que o universal e o transparente são elementos atribuídos à identidade branca, mas que não servem à pluralidade das humanidades.
Na seção “Palavras tramadas na opacidade: textos soltos, composições e partilhas”, encontram-se quatro capítulos. O primeiro deles – “Protocolo de descarte do lixo, contracolonialidades(S) e o dia seguinte” – trata da covid-19 e da distribuição desigual da vulnerabilidade, expressão de Achille Mbembe. Lima menciona o caso do dono de um supermercado e sua família que deixa Belém do Pará em um jatinho equipado com UTI em direção a São Paulo, bem como se refere à fala do prefeito de Belém à época, em 06/05/2020, segundo a qual os serviços das empregadas domésticas seriam essenciais durante a pandemia. Por meio desses exemplos, fica patente como as desigualdades de gênero, raça e classe impactaram a vivência dos sujeitos e dos grupos menos privilegiados no período pandêmico (e não somente nessa época, como a obra demonstra). Embora tenha se falado que o vírus atingiu a todos, ficou claro que as condições de exposição a ele, os tratamentos e o manejo dos corpos por ele atingidos eram diferentes de acordo com o gênero, a raça e a classe.
No segundo capítulo, “BIONECROpolítica(S), ContraColonialidades(S) e o dia seguinte”, tensionando as noções de biopoder e biopolítica de Michel Foucault e ancorada na discussão de Achille Mbembe sobre a necropolítica, Fátima Lima (p. 166) lança mão do conceito de bionecropolítica à brasileira, que seria
[…] um ponto de contato que nos possibilita, acima de tudo, versar outros olhares sobre as relações de poder, principalmente o poder sobre a vida (as/os viventes), ou melhor colocando, o poder sobre a morte (as/os matáveis) desde um ponto de vista local.
A partir dessa perspectiva, a autora aponta que a raça é um critério de eliminação de viventes pelo Estado e que a guerra torna-se legítima politicamente para o sistema, ao promover o extermínio e o massacre de comunidades como as indígenas no início da colonização brasileira ou as pretas periféricas na atualidade. Porém, em contraposição a essa política da matabilidade, Fátima aponta o conceito de políticas das visceralidades, proposto por Achille Mbembe, em que a resposta à violência e à brutalidade são “afetos, emoções e paixões” (p. 39), reforçando aquilo que já está posto no título: a persistência.
O terceiro capítulo – “A igualdade e a liberdade podem ser pássaros em nossas mãos – vocês decidem!” – opera com as ideias da igualdade e da liberdade como resistência em um cenário subjugado pela colonialidade e pelo racismo, propondo “a possibilidade de um novo humanismo” (p. 47), e do fim deste mundo para a construção de um outro. Para tratar dessa temática, Lima busca, em Denise Ferreira da Silva, o conceito de negridade, que se refere à potência capaz de interromper o pensamento moderno, e, em Grada Kilomba, a noção de descolonizar o eu, relativa à construção da independência e da autonomia do sujeito. Também em Frantz Fanon, segundo Lima, pode-se pensar a igualdade e a liberdade como necessárias para a construção de um novo mundo. Isso seria aventado por um grito capaz de estremecer as estruturas do mundo após a pessoa negra ser levada ao limite da autodestruição pela estrutura da branquidade.
O capítulo quatro – “Escrevivência e a fabulação crítica do (im)possível, ou como en(cantar) numa academia no fim de um mundo” – está dedicado ao encanto em um mundo repleto de desencanto. Recorrendo a Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino, Lima enfatiza que o contrário da vida é o desencanto, e não a morte e, por isso, encantar está ligado a um ato de transgressão e desobediência, sendo uma ação coletiva. O encantamento, como “arte da diáspora africana” (p. 58), está relacionado à escrevivência, ao tensionamento de arquivos da escravidão, a uma reparação histórica, epistêmica, afetiva, etc. Sendo assim, o encantamento é a possibilidade de uma vivência em que se afirma a existência da pessoa negra.
A segunda seção – “Palavras tramadas na opacidade: sobre mulheres negras e o trauma colonial” – trata especificamente da condição da mulher negra, sendo composto pelo quinto capítulo: “Vidas pretas, processos de subjetivação e sofrimento psíquico: sobre viveres, feminismo, interseccionalidade e mulheres negras”. Já de entrada, Lima aborda a vivência interseccional da mulher negra atravessada pelo racismo e pelo sexismo. Por meio da estratégia argumentativa de apresentação de pesquisas sobre a condição da mulher negra na realidade brasileira, Lima chega a questionamentos sobre o sofrimento psíquico dessas mulheres e sobre a transformação do contexto brasileiro marcado pelo racismo e sexismo. Amparada por Grada Kilomba, Lima perpassa a ideia de trauma, ou seja, a vivência de barbaridade do mundo do branco, demonstrando o contexto de fragilidade ao qual a mulher negra é submetida e que o trauma, nesse caso, não se trata de um processo individual. Em Frantz Fanon, Lima encontra a resposta positiva à destituição dessa estrutura traumática: “Não sou uma potencialidade de algo. Sou plenamente o que sou” (FANON, p. 2008, p. 122 apud LIMA, 2024, p. 76).
Na terceira seção – “Palavras tramadas na opacidade: sobre necropolíticas!” –, encontra-se o sexto capítulo, “Bionecropolítica: diálogos entre Michel Foucault e Achille Mbembe”. Trabalhando com pressupostos também abordados no capítulo dois, Fátima Lima retoma os conceitos de biopoder e biopolítica de Michel Foucault, para afirmar que estes não conseguem esclarecer a experiência de vida e morte norteada pela colonialidade. Apoiando-se na noção de necropolítica, de Achille Mbembe, Lima esclarece que o biopoder e a biopolítica não demarcam a brutalidade dos processos de colonização e escravidão, bem como o espólio dessas construções da modernidade, as quais deixaram um devir negro no mundo. A autora encerra o texto reafirmando que a necropolítica não discorre somente sobre a morte, mas também convida a pensar sobre possibilidades para a vida.
A quarta seção – “Palavras tramadas na opacidade: a sociogenia em Frantz Fanon” – está composta pelo sétimo capítulo, “Trauma, colonialidade e a sociogenia em Frantz Fanon: os estudos da subjetividade na encruzilhada”. Nesse capítulo, Fátima Lima retoma Fanon para demonstrar que o trauma nas pessoas negras tem uma gênese social, e não necessariamente individual. Além disso, reafirma sua construção enquanto processo coletivo. Grada Kilomba também partilha dessa visão, segundo elaborou Lima (p. 107): “o mundo é o ponto de onde emerge a violência traumática”. Nessa perspectiva, o colonialismo e a colonialidade impingiram aos contextos sociais o cubo branco do qual fala Kilomba (a prisão que a branquitude impôs ao negro). Disso, depreende-se que a desalienação da pessoa negra passa pelo entendimento de que sua estruturação enquanto sujeito está marcada pela dimensão racial, que implica desigualdades sociais e econômicas. Para liberta-se dessa opressão, o negro precisa destituir o branco de dentro de si e matar sua imagem.
Na quinta seção – “Palavras tramadas na opacidade: arte e negritude!” – Lima apresenta dois capítulos sobre a arte e sua capacidade disruptiva. No capítulo oito – “Um ebó artístico-epistêmico: desobediências poéticas em Grada Kilomba” –, é explorada a exposição “Grada Kilomba: desobediências poéticas”, especialmente as videoinstalações Ilusões Vol. I, Narciso e Eco e Ilusões Vol. II, Édipo. Partindo das noções de ebó (algo que restitui e funda espaços outros) e de encruzilhada (lugar de cruzamento de diferentes sistemas simbólicos), Lima demonstra como Kilomba assume a enunciação desde a função de griot ao recontar mitos gregos, dando-lhes uma feição questionadora em relação ao lugar ocupado pela pessoa negra e pela branquitude na constituição social. Ao utilizar o mito de Narciso e de Eco, em Ilusões Vol. I, Narciso e Eco, Kilomba revela, segundo Lima, como a branquidade olha para si mesma como o único grupo com direito a ser admirado e a ser objeto de amor. Além disso, pela figura de Eco, demonstra a ressonância que a branquitude encontra em seus pares. Em Ilusões Vol. II, Édipo, Kilomba, de acordo com Lima, demonstra que
por mais que as pessoas marginalizadas obedeçam à lei” (KILOMBA, 2019, p. 16), elas não possuem a autoridade legal e acessam de forma diferente o poder patriarcal, tornando-se aquelas/aqueles que são punidas/os e assassinadas/os pela própria lei. (p. 135)
Ainda na quinta seção, o capítulo nove, “Como resistir (a)o objeto – Pretas conjurações em Experimentando Vermelho em Dilúvio”, Fátima Lima analisa a videoperformance Experimentando Vermelho em Dilúvio, de Michelle Mattiuzzi. Nessa performance, a artista caminha pelo centro do Rio de Janeiro em direção à estátua em homenagem a Zumbi dos Palmares. A performer ainda tem uma máscara na boca presa por agulhas, as quais, quando retiradas, fazem o sangue escorrer. Lima entende que a performance artística propõe uma volta dolorosa a um passado traumático, mas que ainda assombra as comunidades negras; ademais, o projeto artístico demonstra um silenciamento e um apagamento pela maquinaria da colonialidade. Considerando essa perspectiva, Lima coloca como preocupação o fato de pessoas negras não apenas verem a violência e a coisificação como elementos em si mesmos, mas de os entenderem como itens a serem suplantados. Para Lima (p. 158), “[…] fazer ver a coisa, a objetificação, a desumanização, pode possibilitar um exercício de imaginação política e poética de um outro mundo”.
A última seção – “Palavras tramadas na opacidade: a fuga” – está composta pelo décimo capítulo, “Persistência no necrotempo pandêmico – favelas, marronagens e o dia seguinte”. Tal capítulo, assim como o primeiro, num movimento de ritornelo, para usar um termo citado pela própria Fátima, trata da pandemia de covid-19. Porém, o foco será a estratégia de sobrevivência traçada pelas periferias. Como ficou claro ao longo dos textos, a vida das pessoas negras é passível de ser exterminada a qualquer momento, porque estão, segundo Fanon, na zona do não-ser. Entretanto, Lima dá destaque à persistência ao tempo, termos que compõem o título de sua obra, esclarecendo que há uma resistência e uma teimosia durante esse tempo de morte da pandemia, o necrotempo. Amparadas nas práticas de marronages (insurreição e fuga) e quilombismos (comunitarismos, na conceituação de Abdias Nascimento [2002]), as comunidades se articulam para reafirmar a quem pertence suas, por meio de práticas como o boletim De olho no Corona, da sociedade civil Rede da Maré.
Nesse sentido, a obra de Fátima Lima, recorrendo à circularidade do tempo espiralar, busca refletir, em diferentes momentos – já que os textos vêm a público inicialmente separadamente, mas retornam conjuntamente – sobre temas caros à existência da pessoa negra. Esse processo possibilita à autora o tempo do entendimento, cada vez mais profundo, do que é a realidade das comunidades negras nas periferias, nos quilombos, no meio rural brasileiros. O tempo também lhe dá a oportunidade de olhar para trás e compreender a desumanização imposta secularmente aos negros. Porém, esse mesmo tempo a ajuda a olhar para o futuro-presente, para que possa persistir e escrever sobre o encantamento e a teimosia, como fica expresso em seus textos ao conclamar o leitor a refletir sobre alternativas de libertação.
Belo Horizonte, dezembro de 2024.
Referências
LIMA, Fátima. A persistência do tempo: escritos sobre raça, poder e racismo. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2024.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
KILOMBA, Grada. Ilusões Vol. I, Narciso e Eco. In: KILOMBA, Grada. Desobediências poéticas. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2019.
_______________________________
* Loiany Camile Gomes é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG, mestra em Estudos Literários e graduada em Letras pela UFMG.