O projeto Querino e a ancestralidade brasileira da negritude

 

 

Kétely da Silva Oliveira*

 

Quando um projeto é criado, ele apresenta o delineamento para a realização de um objetivo; ou ainda, de um possível futuro. O trabalho de pesquisa do jornalista e pesquisador negro Tiago Rogero coloca em cena o acervo dos arquivos de sua afrodescendência; move uma intenção: reconstituir a história do povo negro-brasileiro, só que em contraposição ao discurso criado e difundido pela casa-grande.

Idealizado e coordenado por Tiago Rogero - Projeto Querino: um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil – possui várias nascentes. Em formato de podcast narrativo, após dois anos e sete meses de trabalho, contando com a produção da Rádio Novelo e amparado pelo Instituto Ibirapitanga, foi lançado em 6 de agosto de 2022. Após mais um ano de pesquisa, composta por uma rede colaborativa presente no projeto desde o início, tornou-se publicação impressa pela editora Fósforo em 21 de outubro de 2024.

Como definido por Rogero na introdução da publicação, Projeto Querino ganha a roupagem de “livro-reportagem” (p. 14), seguindo o seu percurso de recuperação da história da independência e da abolição da escravatura brasileira pela perspectiva dos africanos, assim como de seus descendentes. O livro, enquanto suporte de investigação, intenta desencobrir as violências fundadoras do Brasil, ao informar os seus impactos positivos para branquitude (p. 23). Para além disso, o trabalho oferece um arquivo de ferramentas críticas da conjectura de uma memória forjada entre o plano ancestre e colonial.

O nome “Querino”, inclusive, é uma referência ao jornalista, professor e abolicionista baiano Manuel Raimundo Querino (1851-1923). Essa reverência é mantida como vetor do projeto, na medida em que a intelectualidade de Manuel Querino, a exemplo de sua obra O colo preto como fator da civilização brasileira (1918), representa a materialização de uma reflexão crítica sobre o protagonismo negro africano e afrodescendente na transformação do Brasil.

Tanto o podcast narrativo quanto o livro-reportagem, conforme seus respectivos campos semióticos, são compostos por oito capítulos que conjugam linhas de pensamentos reveladoras da verdade encoberta pelo mito da democracia. O seguimento historiográfico do projeto teve o cuidado de se guiar, em conjunto às vozes recuperadas em seu arquivo, pela consultoria da historiadora Ynaê Lopes dos Santos. Contando, ainda, com a contribuição de pesquisadores e professores da afrodescendência em distintas áreas de conhecimento, que foram entrevistados ao longo da pesquisa, sendo parte dessas entrevistas dispostas na tessitura da obra.

O eixo de elaboração do livro segue uma ordem espaço-temporal histórica, mas sem deixar de tecer o entrecruzamento de múltiplas temporalidades e seus planos sociopolíticos. A leitura crítica estabelecida pelo projeto, em diálogo com a historiografia, se dá pelo manejo da sobreposição de alguns episódios de racismo ocorridos, de modo similar, em momentos históricos diferentes. A exemplificação dos desdobramentos do Sete de setembro e da criação da Constituição de 1824, aparelhos políticos de manutenção da escravidão, são questionados diante da violência sofrida pela população negra na modernidade. Coloca-se em destaque a precariedade da vida de pessoas negras durante o Império que, mesmo quando livres, tinham a sua alforria ligada à escravidão, como reminiscência da opressão sofrida pelo racismo cotidiano na contemporaneidade.

Como é proposto pela pesquisadora e psicanalista Grada Kilomba (2019), em Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, o racismo é uma forma de opressão atemporal que exerce sua influência ao longo da vida de pessoas negras que, cotidianamente, são levadas ao mesmo espectro traumático de opressão sofrido pelos seus ancestres (p. 29-30). O Projeto Querino evidência, com exemplos históricos e criminais, diálogos que mostram como o trauma segue o curso da memória, que é reafirmada em diferentes gerações afrodescendentes, mediante a repetição dos mecanismos de violência da branquitude. Esse passado em curso é colocado diante dos olhos do leitor desde o primeiro momento até o último, já que, nas palavras de Tiago Rogero: “duzentos anos depois daquela primeira Constituição [de 1824], o negro ainda é um cidadão de segunda categoria no Brasil” (p. 73).

Munido da intelectualidade negra africana e afrodescendente, recolhendo imagens do negro visto por ele mesmo, e de forma dissidente do discurso branco, o projeto revela o motor da repetição do trauma colonial brasileiro: a negação das marcas da africanidade, ressignificada pela experiência afrodescendente, na língua, na arte e na epistemologia do Brasil. Com o intuito de mostrar como a história da negridade brasileira ultrapassa a experiência da dor, Projeto Querino oferece uma série de referências da criatividade e da intelectualidade negra, na experiência das figuras históricas mais importantes da resistência antirracista. Por meio delas, o livro descreve e tece a influência da genialidade negra na música, na literatura, na educação, nas ciências da natureza e na saúde:

 

[...] as pessoas negras não trabalhavam só na condição de escravizados, mas também quando livres. Afinal, mesmo durante o período da escravidão, um contingente enorme de pessoas negras conquistou a própria liberdade.

E frisar isso é importante para subverter a imagem única do escravizado subserviente, sendo torturado no tronco. Não se trata de negar as dores da escravidão, que obviamente existiram, mas de confrontar essa “matriz de sentido” que coloca as pessoas negras somente no lugar de “escravizadas”. (p. 212)

  

Colocando à disposição do leitor um arquivo de pensadores e reflexões da ancestralidade negra reconstruída no Brasil, o trabalho oferece uma perspectiva crítica em relação às lutas e às conquistas populares, como a pressão exercida pelas revoltas no processo da abolição, a constitucionalidade da “lei de cotas”, a aprovação da “PEC das domésticas” e a criação do Sistema Único de Saúde:

  

Foi o “nós por nós” que garantiu que tivéssemos humanidade e liberdade. E foi assim na saúde, na educação, em moradia, no trabalho, na cultura, na luta pelos direitos humanos... Na luta por um país melhor para todos: não só para pessoas negras, mas para todos. Se não fosse por nós, não haveria saúde pública para todos; não haveria filho do porteiro e da trabalhadora doméstica, de todas as cores e raças, entrando na universidade. (p. 346).

 

 O Projeto Querino contesta as fantasias coloniais que ainda integram o imaginário popular através da reafirmação do neoliberalismo, sobretudo, do complexo militar pós-colonial potencializado nos últimos anos. O trabalho é conduzido por uma sensibilidade filosófica e estética que busca delinear caminhos de reflexões sobre a resistência/inventividade da negritude, em detrimento das políticas sádicas de dominação e silenciamento da branquitude no Brasil. A fim de contar a história pela perspectiva dos tidos como derrotados, o projeto coloca em destaque a necessidade de criar modos de engajamento para que a derrota seja vencida: “As pessoas negras construíram não só toda a riqueza do Brasil, mas a própria democracia do país - ainda que não seja, nem de longe, o Brasil que merecemos.” (p. 346). 

 

Belo Horizonte, dezembro de 2024.

 

 

Referências

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

ROGERO, Tiago. Projeto Querino: um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil. São Paulo: Fósforo, 2024.

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*Kétely da Silva OLiveira é Graduanda em Letras/Estudos Literários Bacharelado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação complementar em Psicologia/Psicanálise, e integrante do grupo de pesquisa do CNPq literafro - Portal da literatura afro-brasileira: pesquisas em rede.

 

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