Joel Rufino e o negro em cena

 

Eduardo de Assis Duarte*

 

Joel Rufino dos Santos figura indubitavelmente entre os mais destacados intelectuais negros brasileiros de todos os tempos, com dezenas de livros publicados desde meados do século passado. Sua produção transita da historiografia para a ficção e daí para a crítica, sendo possível muitas vezes verificar o quanto, num mesmo texto, esse trânsito se metamorfoseia em mescla discursiva decorrente do entrelaçamento do fato com a imaginação. E o mesmo se dá com suas estórias ditas infantis ou juvenis, a agradar leitores de todas as idades; ou com construções próximas da metaficção, em que literatura e crítica dialogam todo o tempo. Como historiador, suas preocupações abrangem a Colônia e o Império; a República e suas vicissitudes, passando pela ditadura civil-militar de 1964, da qual foi vítima, como se constata em Quando eu voltei, tive uma surpresa, pungente volume de cartas da prisão enviadas ao filho de oito anos e publicado em 2000. Já no campo das relações raciais, é autor de livros como O que é racismo (1982) e Abolição (1988), além das instigantes biografias de Zumbi dos Palmares (1985) e Carolina Maria de Jesus (2009).

Seu mais recente trabalho – A história do negro no teatro brasileiro – constitui-se em valiosa contribuição para o estudo do tema. Sem deixar de lado as primeiras encenações promovidas no período colonial, Joel Rufino dos Santos nos apresenta um denso painel, que percorre a cena teatral do país desde seus começos mais efetivos, após a Independência, até o século XXI, quando assistimos em diversos pontos do país a proliferação de grupos empenhados em produzir um teatro negro na forma e no pensamento.

O autor explicita como o negro aparece inicialmente reduzido a objeto da escrita e da cena concebida pelo branco. E como, após o fim da escravatura, é impedido de atuar e tem que assistir atores brancos “brochados” de preto falarem por ele nos palcos. O que parece inacreditável para muitos ganha estatuto de verdade histórica: salvo as pouquíssimas exceções que só fazem confirmar a regra, somente a partir de meados do século XX, com as atividades pioneiras do TEN – Teatro Experimental do Negro – este começa a se erguer a sujeito de seu discurso e a colocar em cena corpo, voz, fala e dramas por tanto tempo impedidos de chegar às plateias. A história do negro no teatro brasileiro perpassa criticamente todos esses momentos até à diversidade contemporânea, tanto em termos regionais, com produções de valor fora do eixo Rio-São Paulo, quanto no tocante a procedimentos, temas e concepções.

Ricamente ilustrado, o volume se destaca pelo esmero gráfico-editorial, a começar pelo formato 24 x 30 cm., que confere a ele a aparência de álbum de fotografias ou livro de arte, o que de fato também é. E o livro-álbum surpreende tanto pela amplitude do recorte e pelo viés reflexivo que acompanha a narrativa da trajetória do negro em nossos palcos, quanto pela exuberância das imagens, a nos revelar em instantâneos preciosos a beleza jovem de Ruth de Souza e Léa Garcia, por exemplo, entre outros preciosos registros do passado, reveladores de um cuidadoso trabalho de pesquisa arquivística. Assim, o livro se oferece ao leitor antes de tudo como objeto estético cuidadosamente trabalhado. Isto faz o texto do historiador e do crítico dialogar a todo o momento com imagens de grande impacto, que deixam de apenas ilustrar para assumir protagonismo, falarem por si mesmas e agregarem sentido ao texto.

O autor já de início explicita os fundamentos teóricos que embasam sua perspectiva e disserta sobre a diferença entre “teatro” e “drama”, para acentuar que, em paralelo à ausência do negro no teatro – entendido como lugar de exercício do habitus burguês de exibição e “marca de classe” –, a produção dramática tida como “popular” e levada a cabo nas ruas e praças sempre contou com a participação imprescindível dos afrodescendentes. Afirma que “pode haver teatro sem drama e, mais distintamente, drama sem teatro.” E acrescenta: “ficamos em que ‘o negro no teatro brasileiro’ é uma coisa; o ‘negro no drama, ou na dramaturgia brasileira’ é outra coisa. [...] Neste livro se verá que, discriminado no teatro, o negro dominou o drama.” (p. 69). Recorre então aos primórdios da encenação no Ocidente para destacar a tradição dramática nos espaços públicos, com seus cortejos e celebrações, existentes na África bem antes dos colonizadores; e na Europa de antes de Cristo, passando pela Idade Média e chegando à Era Moderna, tanto lá como aqui.

O historiador recupera o vasto repertório de encenações a céu aberto, na tradição dos folguedos e celebrações-espetáculos como o Reisado, o Bumba Meu Boi, as Cheganças, os Fandangos, o Maracatu, o Congado, e muitos mais: “o país não era sequer ainda um projeto, e no sertão – corruptela de desertão –, onde chegassem os europeus, com seus escravos e servos, se fazia drama. É admirável.” (p. 75). E acrescenta:

Como o Boeuf Gras da França, por exemplo, ou o Boi Ápis, do antigo Egito, o Bumba Meu Boi pertence ao ciclo difundidíssimo em todo o mundo de rituais de nascimento-morte-ressurreição. A difusão do Bumba Meu Boi pelo país (também chamado Boi-bumbá, Boizinho, Boi de Mamão, etc.) se deveu a afro-brasileiros e caboclos da agroindústria e da pecuária, desde mais ou menos 1700. [...]

Este autor dramático redefine o que é a sociedade brasileira, pois sendo uma representação de pobres negros para pobres negros, mestiços e índios, quebra o monopólio de representação da sociedade pelo branco, apresentando de cabeça para baixo o modelo internalizado por todos.” (p. 83, grifos do autor).

Na perspectiva autoral, essa precursora quebra do “monopólio de representação” prepara o terreno para o projeto político de construção do teatro negro a partir do TEN, em meados do século XX. Ao destacar a dimensão dramática das celebrações, em geral vistas pela crítica como limitadas ao campo do folclore, Joel Rufino dos Santos reconhece o processo histórico de encenação da sociedade brasileira pela performance do negro e dos segmentos que sempre foram maioria numérica, mas minoria em termos de poder, seja ele econômico, social, político ou cultural.

Passa em seguida ao tópico do “negro no palco”, no qual aborda inicialmente a produção de autores como Alencar, Castro Alves e Arthur Azevedo, entre outros, para destacar a consolidação, com as exceções de praxe, dos estereótipos que irão caracterizar a persona do negro ao longo do século XIX e em boa parte do século XX. Argumenta que, a partir da industrialização e da formação das classes média e operária, lentamente vai se constituindo uma elite negra urbana, que passa a fazer a crítica das figurações estereotipadas e a almejar outras formas de representação.

Não nos esqueçamos de que este momento está marcado pela presença da imprensa negra, com dezenas de publicações, sobretudo nos grandes centros, a mobilizar leitores em defesa dos interesses dos “homens de cor”; e, também, pela criação da “Frente Negra Brasileira”, a arregimentar milhares de filiados em todo o país e a se constituir em partido político até a implantação da ditadura do Estado Novo, em 1937, quando tem suas atividades suspensas pelas leis de exceção, mas vê seus seguidores e simpatizantes se reagruparem em associações e clubes recreativos. Nesse momento, surge a poesia engajada de Solano Trindade, em contraponto ao negrismo folclorizante de autores modernistas como Jorge de Lima e outros.

Nos palcos, a virada de página definitiva começa a ocorrer a partir do surgimento do Teatro Experimental do Negro, dirigido por Abdias do Nascimento, com o objetivo declarado de “reabilitar a identidade, a herança cultural e a dignidade humana dos afrodescendentes.” (p. 135). A partir do TEN e outros grupos que vão surgindo, saem de cena os brancos enegrecidos a carvão ou tinta, para que atrizes e atores afro-brasileiros tomem as rédeas da encenação. A seu lado, vemos diretores empenhados em construir formas outras de expressar o drama do negro, em consonância com a visão de mundo até então emudecida pelo discurso hegemônico. Emergem assim nomes, desempenhos e trajetórias de toda uma geração fundadora, composta de profissionais que mais tarde tornar-se-ão bem conhecidos: Ruth de Souza, Léa Garcia, o próprio Abdias, Aguinaldo Camargo, a bailarina Mercedes Batista, entre muitos outros, além de Solano Trindade, que funda em 1954, em São Paulo, o Teatro Popular Brasileiro, pelo qual recupera a herança dos maracatus nordestinos.

E todos surgem “encenados” no livro em preciosos instantâneos fotográficos, que trazem de volta momentos de extrema beleza e intensidade. Ao enxertá-los no corpo do texto crítico-historiográfico, Joel Rufino dos Santos faz de seu livro-álbum um acervo não só de dados e informações importantes para construção de conhecimento sobre o assunto. Vai além e presenteia o leitor com um conjunto de imagens que, por si só, forma uma memória iconográfica do teatro negro brasileiro desde os anos 1950.

As performances inovadoras, a colocar tambores, rituais e dramas negros – racismo, preconceito, miscigenação, culto aos orixás – pela primeira vez em espaços como o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, são analisadas por Rufino a partir de peças que fizeram história, como Sortilégio, O filho pródigo, e O anjo negro, entre outras. O caráter revolucionário dessa experiência é ressaltado pelo autor, que o vincula ao trabalho social do TEN, arregimentando domésticas e operários para atividades de formação cultural a partir do letramento, em cursos de alfabetização que chegaram a ter seiscentas matrículas.

Na verdade, não houve no Brasil, até aqui, teatro feito por negro sem um movimento negro por detrás – o que por si só demonstraria o racismo da sociedade brasileira. Para representar a si próprio e aos outros ele precisa, antes, denunciar a sua ausência na dramaturgia brasileira e, só depois, subir ao palco. No caso de Abdias, Solano Trindade, Aguinaldo Camargo, Ubirajara Fidalgo e tantos outros, o teatro foi a expressão, ou a materialização, de suas consciências políticas. Desse jeito, o caráter de seu teatro será pedagógico, engajado, mas não por isso de qualidade inferior, atingindo em muitos casos, ao contrário, excelência artística. (p. 140-141).

Como se vê, o empenho em resgatar a dignidade do negro brasileiro marca até hoje a trajetória de sua produção teatral. Tal fato se reflete na ênfase dada aos tópicos “Teatro negro contemporâneo” e “Companhias, grupos e espetáculos teatrais”, que ocupam a segunda metade do livro. O trabalho abrange, portanto, a diversidade de formações com atuações de relevo dentro e fora dos grandes centros, como os do Bando de Teatro Olodum e muitos outros. Com seu livro-álbum, Joel Rufino dos Santos traz a público uma contribuição inestimável para a historiografia do teatro brasileiro. Lugar de memória, seu livro configura em arquivo um vasto e precioso repertório dramatúrgico, resgatando-o do esquecimento.

Referência

SANTOS, Joel Rufino dos. A história do negro no teatro brasileiro. Rio de Janeiro: Novas Direções, 2014.

* Eduardo de Assis Duarte é professor da Faculdade de Letras da UFMG. Autor de Literatura, política, identidades (2005) e de Jorge Amado: romance em tempo de utopia, (1996). Organizou, entre outros, Machado de Assis afrodescendente: escritos de caramujo. (2007), a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011, 4 vol.) e os volumes didáticos Literatura afro-brasileira, 100 autores do século XVIII ao XXI e Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula (2014). Coordena o Grupo Interinstitucional de Pesquisa “Afrodescendências na Literatura Brasileira” e o literafro – Portal da Literatura Afro-brasileira, disponível no endereço www.letras.ufmg.br/literafro

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