No meio da palavra as possibilidades

Edimilson de Almeida Pereira*

De início, chama a atenção no presente livro de Henrique Freitas a ênfase na relação estabelecida entre literatura e cultura. Não deveríamos estranhar o destaque conferido a essa relação seminal, não fosse a crescente dissociação que se observa, em nossas experiências cotidianas, entre os fenômenos e os contextos sociais em que são gerados. Tal dissociação, justificada por uma espécie de ordem natural dos acontecimentos é, no fundo, o resultado de construções sociais cujos agentes podem ser identificados em sua atuação objetiva e ideologicamente orientada. Se nos guiamos por essa vertente, que nos permite atribuir a agentes concretos a responsabilidade por ações igualmente concretas, pode-se considerar que a gradativa e intencional dissociação entre fenômeno e contexto é uma consequência dos abalos provocados na cadeia das grandes narrativas: estas, em linhas gerais, sucumbem à exacerbação do individualismo e à ascensão de um modelo social em que o cliente consumista se sobrepõe à valorização do sujeito e de suas vinculações comunitárias. Nesse ambiente fraturado, a literatura, assim como a atividade política e intelectual, a experiência místico-religiosa ou a experiência encantatória do lúdico – salvo as exceções – estremecem à beira do pragmatismo e do senso utilitário.

As comunidades afrodiaspóricas – mantidas historicamente à margem dos circuitos sociais com mais acesso aos sistemas de representatividade política, de empreendimento econômico e de intervenção cultural – sofrem de maneira mais agressiva os efeitos da ruptura acima mencionada. Talvez, por isso, as respostas dessas comunidades tenham sido, desde há muito, articuladas como tentativa de interpretação do mundo e do sujeito levando-se em conta uma lógica da diferença. Ou, como pontua Henrique Freitas, a partir de uma lógica em que a perspectiva da “Arkhé como tradição eurografocêntrica” é posta em diálogo com a perspectiva do xirê, percebido “como tradição viva que evoca outra Arkhé para dar conta das tensões e contribuições da literatura-terreiro como campo da literatura negra que dilata os sentidos convencionais de uma literatura brasileira.” E, diríamos, também, como outra Arkhé que fundamenta as demais práticas sociais de uma parcela expressiva de sujeitos os quais, sendo afrodescendentes ou não, modulam suas vozes identitárias a partir de uma epistemologia afrodiaspórica.

Contudo, as investigações de Henrique Freitas – alinhadas com as proposições de outros analistas (e aqui, com a devida licença de tantos nomes importantes, nos limitamos aos trabalhos críticos desenvolvidos por Eduardo de Assis Duarte, Florentina Souza, José Jorge de Carvalho, Leda Maria Martins e Antonio Risério) – demonstram que o reconhecimento restrito da interferência da epistemologia afrodiaspórica em nossos procedimentos culturais deve-se ainda à hesitação com que nos aproximamos “das experiências éticas e estéticas que as gnoses indígena e afro-brasileira (africana e negro-brasileira) nos oferecem”. Tal fato – resultante de mecanismos ideológicos que sustentam a exclusão étnica, política, social e econômica do sujeito afrodiaspórico – nos inclina a pensarmos a configuração de uma ideia de nação e de cultura brasileiras caracterizada, simultaneamente, por um sinal de menos (indicador da recusa que manifestamos, de forma intencional ou não, em relação às matrizes de origem africana) e por um sinal de multiplicação (provocador do desejo que manifestamos de vivenciar a ductibilidade do domínio cultural afrodiaspórico).

O conjunto de ensaios propostos em O arco e a arkhé, além de reiterarem as críticas à cultura brasileira como sinal de menos (sobretudo quando esta tangencia, por conveniência, os domínios culturais indígenas e populares), investigam e expõem, sob a forma de uma lógica de pensamento e ação, as possibilidades da cultura brasileira tecida pelo viés da pluralidade e das interações entre as diferenças. Sob esse aspecto, a ductibilidade do domínio cultural mencionado anteriormente é realçado a partir de suas variantes locais e, sob o impulso dos confrontos e negociações sociais, desdobra-se em reconfigurações de caráter global. A consequência imediata desse enredo, como bem demonstra o trabalho de análise e de criação literária de Henrique Freitas, é a articulação de uma epistemologia outra, cujas proposições negociam, num cenário tenso, com a epistemologia da Arkhé eurografocêntrica. Dentre tais proposições, sobressaem conceitos-denúncia como “pilhagem epistemológica” e análises-manifesto que apostam num abalo crítico nas áreas da teoria, da crítica e da historiografia literárias em consequência da inserção, em seus núcleos, de novos temas-e-problemas. Além disso, a epistemologia outra nos insta a projetar essas e outras proposições, desenvolvidas ao longo do livro (a exemplo de “literatura-terreiro”, “filosofar desde o corpo”, “etnoescrituras” e “afro-rasuras”), como sonares para percebermos as realidades brasileiras, considerando-as a partir de suas alteridades e não apenas de padrões identitários dominantes.

Há muito para dizermos sobre O arco e a arkhé: ensaios de literatura e cultura, no entanto, abreviamos essa apresentação cientes de que na pausa, no meio da palavra, residem as possibilidades do movimento. A leitura de O arco e a arkhé coloca-nos diante de um conjunto de análises inovadoras, que nos instigam a reinventar, com ternura e coragem, o nosso olhar sobre as culturas brasileiras, em geral, e sobre a nossa paisagem literária, em particular. Longe de ser um manual, resolvido em suas prescrições, este livro de Henrique Freitas se oferece às leitoras e aos leitores como uma provocação à nossa capacidade de pensarmos e de vivermos, sob outras perspectivas, o que julgávamos ser o pensamento e a vida.

Juiz de Fora,

primavera de 2016.

Referência

FREITAS, Henrique. O arco e a arkhé: ensaios sobre Literatura e Cultura. Salvador: Ogum's Toques Negros, 2016.

* Pesquisador e poeta premiado, Edimilson de Almeida Pereira é professor titular da Faculdade de Letras na Universidade Federal de Juiz de Fora. Possui Doutorado em Comunicação e Cultura e pós-doutorado em Literatura Comparada. Autor, entre outros, do volume teórico-critico Malungos na escola (Paulinas, 2007) e organizador, entre outros, de Um tigre na floresta de signos (Mazza, 2010).

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