Maria Firmina dos Reis: 200 anos de uma precursora

 

Anna Faedrich*

Rafael Balseiro Zin**

 

A história do Brasil, da Colônia à República, carrega certa intimidade com o número 22. Mais que certa intimidade, podemos dizer que se trata de uma verdadeira sina. No último ano do século XV, 1500, por exemplo, a chegada dos primeiros portugueses ao território denominado pelos povos originários tupis-guaranis como Pindorama se deu no dia 22 do mês de abril. No vigésimo segundo ano do século XIX, mais especificamente em 7 de setembro, o país viu sua independência de Portugal se tornar uma realidade, tendo como marco simbólico o folclórico grito desferido por Dom Pedro I às margens do rio Ipiranga. Cem anos mais tarde, em 1922, foi realizada nas dependências do Teatro Municipal de São Paulo a famosa Semana de Arte Moderna, ocorrida nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro daquele ano, dividindo as opiniões em torno de sua capacidade inventiva até hoje. Já o ano de 2022, entre outras efemérides importantes para a história política e para a cena literária nacionais, como os 125 anos de criação da Academia Brasileira de Letras, os 140 anos da morte de Luiz Gama, o centenário de falecimento do escritor Lima Barreto e os 160 anos de nascimento da escritora abolicionista Júlia Lopes de Almeida, também marca os 200 anos de nascimento de Maria Firmina dos Reis, a mais ilustre das maranhenses.

Considerada atualmente a primeira mulher a publicar um romance no Brasil, Úrsula, em 1859, além de ter sido a primeira voz feminina a registrar a temática da escravidão em nossa literatura, sob o pseudônimo “Uma maranhense...”, a autora apresentou de forma inédita aos leitores do Império a questão da servidão, vista a partir do entendimento dos próprios cativos – perspectiva essa que nortearia os seus trabalhos futuros. Quebrando as barreiras impostas pelas dinâmicas patriarcais e escravistas, que estruturaram as bases da sociedade brasileira desde o seu surgimento, Maria Firmina dos Reis também legou para as futuras gerações obras como o conto “Gupeva”, de temática indianista, veiculado originalmente entre as edições de 13 de outubro de 1861 e 13 de janeiro de 1862 do jornal O Jardim das Maranhenses; os poemas contidos no volume Cantos à beira-mar, de 1871; o conto “A escrava”, de 1887; além de ter contribuído de maneira significativa na imprensa local, com poesias, ficções, crônicas e até mesmo com a publicação de enigmas e charadas, prática recorrente na época.

Com o intuito de render as devidas homenagens a essa precursora da literatura brasileira e visando contribuir com as comemorações em torno do seu bicentenário de nascimento, convidamos um time seleto de pesquisadoras e estudiosos espalhados pelos quatro cantos do país, que vêm se dedicando nos últimos anos a investigar determinados aspectos sobre as trajetórias artística e intelectual da maranhense. Como resultado desse processo, apresentamos a vocês, leitores e leitoras, os doze textos que compõem esse livro, desenvolvidos em diferentes estilos e divididos em três partes distintas. A primeira delas busca discutir o processo de recuperação histórica da vida e da obra de Maria Firmina dos Reis. O ensaio de Dilercy Aragão Adler analisa a desconstrução do silenciamento que envolveu por décadas o nome da escritora, através dos esforços de pesquisa realizados por José Nascimento Morais Filho e sua equipe na década de 1970. O artigo de Agenor Gomes, por sua vez, aproxima-nos de forma mais íntima do cotidiano vivido pela romancista nas cidades de São Luís e de Guimarães, ao apresentar os resultados preliminares de sua pesquisa sobre a árvore genealógica e as relações sociais e familiares da autora. Já Cristina Ferreira Pinto-Baley compartilha a sua experiência como a primeira tradutora do romance Úrsula para a língua inglesa e mostra a importância de oferecer a esse público-leitor “uma perspectiva única e pioneira sobre a história dos escravizados no Brasil e, por conseguinte, sobre a vasta e complexa história da diáspora africana nas Américas”.

A segunda parte do livro traz à tona justamente o pioneirismo de Maria Firmina dos Reis na cena cultural brasileira e tem como objetivo debater os seus escritos pelo olhar da crítica literária contemporânea. Nesse sentido, Rosane Jaehn Troina estabelece um recorte para a análise e reflete sobre a luta das personagens femininas por espaço social contidas no romance Úrsula. Na sequência, Régia Agostinho da Silva e Soraia Salles Dorneles, por meio da leitura do conto “Gupeva”, revelam as estratégias ficcionais adotadas pela autora para a formação da nacionalidade brasileira. Juliano Carrupt do Nascimento, com foco nos poemas de Cantos à beira-mar, lança luz sobre a linguagem e o olhar femininos que rompem com a domesticidade e a passividade atribuídas às mulheres no Brasil dos oitocentos, bem como sobre a imagem do mar, que “surge não apenas como motivo marinho, mas como a força de uma representação da natureza que age sobre o espírito criador do fazer poético”. Jéssica Catherine Barbosa de Carvalho, adiante, retoma o engajamento abolicionista da Firmina para ler o conto “A escrava”, entendendo o texto “como a continuação de um projeto literário fundado na luta em favor da igualdade e dignidade para homens e mulheres negras”. Luciana Martins Diogo, por fim, aborda os temas da tristeza e da separação presentes em o Álbum, diário íntimo da autora publicado por Nascimento Morais Filho em 1975, no livro Maria Firmina, fragmentos de uma vida.

A terceira e última parte dedica-se às pesquisas realizadas recentemente sobre a obra firminiana em perspectiva comparada. Fernanda Rodrigues de Miranda, em diálogo com as demais romancistas negras do país, apresenta Maria Firmina dos Reis como a precursora do romance de autoria negra e feminina no Brasil. Ana Carla Carneiro Rio realiza uma análise comparativa entre os romances Úrsula e A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, identificando os marcadores que revelam como as relações de poder vinculadas aos moldes patriarcais e escravistas se manifestavam em pleno Brasil do século XIX. Já Roberta Flores Pedroso propõe um diálogo entre Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, duas escritoras negras que viveram em épocas distintas, mas que convergem em suas narrativas em vários aspectos. Finalmente, Renata Carmo Alves aproxima as intelectuais e ativistas contemporâneas Lélia Gonzalez, Djamila Ribeiro e Marielle Franco aos escritos de Maria Firmina dos Reis, revelando preocupações sociais e as inquietações comuns a cada uma delas. [...]

Em clima de comemoração, portanto, oferecemos a vocês, leitores e leitoras, as páginas que seguem. Até porque, ao revisitarmos o conjunto de feitos e de realizações da primeira romancista do Brasil, apresentados aqui de forma breve, bem como todos os pioneirismos que envolvem o nome e a trajetória de vida de Maria Firmina dos Reis, o que se constata é que ela foi uma mulher que conseguiu vencer as barreiras da discriminação de gênero e do preconceito racial em pleno Brasil do século XIX, além de ter sido uma pessoa comprometida com os desafios da época em que viveu, deixando como legado para as futuras gerações, além de suas criações, ensinamentos que se associam às máximas contemporâneas que dizem: vidas negras importam e lugar de mulher é onde ela quiser.

 

 

Referência

FAEDRICH, Anna; ZIN, Rafael Balseiro (Org.) “A mente ninguém pode escravizar”: Maria Firmina dos Reis pela crítica contemporânea. São Paulo: Alameda, 2022.

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* Anna Faedrich é Doutora em Letras (PUC-RS) e professora da UFF. Coordena o projeto “Literatura de autoria feminina na Belle Époque brasileira: memória, esquecimento e repertórios de exclusão”. É organizadora, entre outros de Exaltação, romance de Albertina Bertha; Nebulosas, de Narcisa Amália e das crônicas de Júlia Lopes de Almeida.

** Rafael Balseiro Zin é sociólogo e Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP). Atua como pesquisador do “Núcleo de Arte, Mídia e Política” desta Instituição. É autor de Maria Firmina dos Reis: a trajetória intelectual de uma escritora afrodescendente no Brasil oitocentista (2019).

 

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