As operações iliberais da incivilidade do capital na sociedade contemporânea:

uma breve leitura da obra de Muniz Sodré

 

Rodrigo Pires Paula*

 

Muniz Sodré de Araújo Cabral, 79 anos, nasceu em São Gonçalo dos Campos, na região de Feira de Santana. Filho do comerciante de tecidos, poeta e vereador Antônio Leopoldo Cabral, o pesquisador brasileiro nos campos da Comunicação e Sociologia é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor-visitante e conferencista em várias universidades estrangeiras, ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional (2009-2011), um dos expoentes da comunicação brasileira contemporânea, com uma produção de aproximadamente 40 obras nas áreas de comunicação e cultura.

Mais uma vez de maneira impactante para o pensamento ocidental e latino-americano, Muniz Sodré produz uma potente e impactante obra, para além da temporalidade do contexto sócio-político atual. Nessa direção, em A sociedade incivil: mídia, liberalismo e finanças, Sodré faz, no mínimo, uma consistente síntese das próprias contribuições como pesquisador, resultado de décadas de trabalho ao longo da respectiva carreira acadêmica

Conforme apontado na orelha do livro, a “sociedade incivil é a disrupção da sociedade civil, descrita principalmente por Gramsci como forma de organização do mundo do trabalho e da vida social pelo Estado e pelo capitalismo produtivo”. E é justamente o ponto fulcral da obra: as novas formas de organização do capitalismo, do mundo do trabalho e da sociedade produtiva em sua totalidade, por intermédio das novas formas de se comunicar. Nesse sentido, apresenta o modo como a comunicação se tornou instrumento de interesses financistas.

A obra trata dos novos signos para o capitalismo da contemporaneidade, outras formas de subjetivação e coletividade, de tecnologia e de comunicação, embasadas e impulsionadas pelas novas ferramentas do liberalismo (iliberalismo) econômico agravadas pelo racismo estrutural. Ademais, traz reflexões sobre os caminhos que a sociedade ocidental vem trilhando como resultado das mutações do velho civilismo liberal, ameaçando a estabilidade da democracia e das instituições em âmbito mundial.

Além disso, a obra nos mostra as formas sintomáticas da comunicação ao largo da história na “civilização” neoliberal, e, consequentemente, outras maneiras de lidarmos com novas formas identitárias, baseadas em outras ferramentas de comunicação presentes no mundo contemporâneo. Para isso, tecnologias digitais, robôs e ciborgues são conectados a outras necessidades no âmbito da comunicação inter-humana.

Afirma a obra que vivemos um período da “bios midiático” ou “virtual”, em que a “realidade” humana, cotidiana e palpável é projetada em imagens (“imaginarizada”), e não necessariamente ou obrigatoriamente vivida e disputada pelas pessoas. Dessa forma, corremos diversos riscos como sociedade, nos “incivilizando”.

Para Sodré,

no consequente rearranjo de pessoas e coisas, a comunicação revela-se como principal forma organizativa, em que o reconhecimento humano aliado à inteligência artificial – Big Data, análise de dados e cálculo de alto desempenho – transforma a natureza do trabalho no sentido da imaterialização das forças produtivas, ou seja, no sentido da conversão das clássicas fábricas de objetos físicos em “usinas” digitais.

O que significa dizer que o mundo da tecnologia digital nos remete a um cenário em que a imagem adquire um valor ainda mais significativo perante à sociedade, sendo valorizada muito mais do que parece ser e além do que realmente é.

Assim, o capital cultural passa sobretudo pela esfera do virtual, de tal modo que as fronteiras se encurtam. Porém, as formas de regulação do todo se ampliam, os meios de trabalho se modernizam e a sociedade (e os respectivos mecanismos) do controle se instauram e se aparelham ainda mais, de forma progressivamente decisiva. “A inteligência é aquilatada pelo número de variáveis que um sistema comporta. Por isso, se pode falar de ‘tecnologias do Big Data’”. Assim, grandes corporações (Amazon, Apple, Google etc.) em diversas áreas do conhecimento técnico e/ou científico centralizam os respectivos meios de produção e assumem o protagonismo dessas novas formas de se comunicar.

Nesse sentido, o ciberespaço torna-se o chão de fábrica, e, como exemplo dessas novas formas de arranjo das forças produtivas do mundo do trabalho, a produção fabril seria composta por duas esferas: uma esfera material, objetiva, e uma cognitiva, da ordem das ficcionalizações externas, supostamente “não objetivas”.

Segundo o autor, “se antes o Estado totalitário pretendia enraizar-se na vida da nação, reunificando (contra o liberalismo) corpo e espírito, agora é a mídia que se enraíza culturalmente na vida social”. Assim, a imprensa burguesa, que já exerceu esse papel se colocando como defensora da liberdade de expressão, ironicamente, é assimilada por interesses do capital financeiro.

 

Belo Horizonte, setembro de 2022

Referência

A Sociedade Incivil: mídia, iliberalismo e finanças. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2021.

 

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* Rodrigo Pires Paula é professor, pesquisador, mestre em Teoria da Literatura (UFMG) e, atualmente, cursa o doutorado em Análise do Discurso (UFMG).

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