O gesto, o corpo e a voz:
rituais congadeiros no Reinado do Rosário de Jatobá

 

Giovanna S. Pinheiro¹

 

Assim, nos congados,
cada situação e momento rituais
exigem propriedade da linguagem,
expressa nos cantares:
há cantos para saudar,
cumprimentar, invocar,
cantos para atravessar portas
e encruzilhadas,
e muitos outros.
Em cada situação,
o capitão deve saber
o canto adequado
para aquele lugar e momento,
pois o sentido da palavra
e seu poder de atuação
dependem, em muito,
da propriedade da execução.
Ele deve saber
o que cantar,
em que circunstâncias
se produz a eficácia do canto,
a vibração da voz
e os movimentos gestuais necessários
para a produção do sentido.
A performance
é que engendra
as possibilidades
de significância
e a eficácia
da linguagem ritual.

Leda Maria Martins
2021


Traduzir a forma de organização de culturas negras e de tradições que se formam nas encruzilhadas requer uma pesquisa-escuta atenta, crítica e, ao mesmo tempo, afetiva de vozes, corpos, gestos e linguagens. Essa pesquisa-escuta gerida pelo afeto – entendido aqui como possibilidade aberta de contato com o outro – visa delinear não apenas o modo de organização de um costume, mas também a sua manifestação como representação ativa de um povo/comunidade no mundo. Muniz Sodré, em
A verdade seduzida (2005), propõe-nos a noção de reposição brasileira, ao discutir as trocas ocorridas entre negros e brancos, entre mito e religião, entre negros e mulatos e, por fim, entre negros de etnias distintas, a partir das quais formas essenciais de diferença simbólica (africanas) foram preservadas no Brasil (SODRÉ, 2005, p. 101).

A manifestação sacro-cultural dos Congados emerge também de tais trocas, às quais são incorporados cantos ritualísticos, danças, vozes, tambores e corpos que as encenam. É a partir dessa leitura que apresentamos aqui a irrecusável tarefa atribuída à Leda Maria Martins (poeta, professora, pesquisadora e crítica literária) pelo então capitão-mor do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, João Lopes, no ano de 1993. A ela coube a missão de escrever a história do Reinado do Jatobá, os rituais sagrados, as origens, os cantos, os nomes reais e sagrados desse reinado negro em festejo, instalado no território de Minas Gerais, em finais do séc. XIX, na Fazenda Pantana, hoje município de Ibirité. Importante salientar que Leda Martins é integrante da Guarda de Congo da Irmandade do Jatobá, como Rainha Conga, pesquisando e escrevendo, portanto, a partir de um lugar por ela habitado, mas também a partir de arquivos, como o do Museu do Ouro de Sabará, o do Arquivo Público de Minas Gerais e o das fontes orais congadeiras.

Dessa pesquisa etnográfica e arquivística, surge, então, o Afrografias da memória: o Reinado do Rosário no Jatobá, publicado, inicialmente, em 1997, e relançado, em 2021, após 25 anos da primeira edição. Editado pela Mazza Edições, de Belo Horizonte, e pela Perspectiva, de São Paulo, tal obra possui 7 capítulos, cujos títulos são: 1) “Deixa o meu gunga passar”, 2) “A oralitura da Memória”, 3) “Undamba Berê Berê”, 4) “Reinos Banto em Terras de Y-ata-obá”, 5) “Cantares”, 6) “Afrografias Rituais” e 7) “Se a Morte Não Me Matar, Tamborim”. Outro aspecto de destaque das Afrografias é o belíssimo banco de imagens final, composto de 78 fotografias legendadas, que traduzem a complexidade dos rituais, a formação das guardas, os Reis e Rainhas congos, os instrumentos musicais, tambores, atabaques (ingomá) e indumentárias.

Em cada uma dessas partes, notamos a potência escritural aguçada da autora, que buscou não apenas retecer as vivências do Reinado do Rosário no Jatobá, mas também refazer as confluências estéticas, religiosas, o campo teórico-conceitual que envolve as Congadas em sua origem. Nesse âmbito, Leda Martins parte da noção de oralitura, letra e litura, voz e corpo, linguagem em deslocamento. Assim, tal noção:

(...) como littera, ‘letra’, grafa o sujeito no território narratário e enunciativo de uma nação, imprimindo, ainda, no neologismo, seu valor de litura, ‘rasura’ da linguagem, alteração significante, constituinte da diferença e da alteridade dos sujeitos, da cultura e das suas representações simbólicas. (p. 25).

Há, nesses escritos, conforme aponta a escritora, o traçado mnemônico de uma tradição negra, oral, em primeira instância, transcriada como letra, grafia do outro em contato e, sobretudo, em cena. Transcria-se, em sentido amplo, o que se forma nas encruzilhadas – “a cultura negra é uma cultura das encruzilhadas” (p. 32) – sob o signo de Èsù Òjísè: o mensageiro, o intérprete, o espiral, o princípio norteador e comunicador.

Nessa composição múltipla de cruzamentos, a mitopoética e os saberes ancestrais se reatualizam, porque há a emissão viva da voz, o que permite transmitir às gerações seguintes o ritual sagrado sempre em expansão. Nele, inscrevem-se e cruzam-se elementos estéticos e religiosos de África e do ocidente branco, os santos católicos, responsáveis por manter, pela resistência, o domínio simbólico dos congados operantes:

Para os congadeiros, essa linhagem da palavra vernacular dos antigos sábios das nações do congado, reis, rainhas, capitães, permanece como signos de referência nos atos rituais, evocados como instância da sabedoria que fecunda a comunidade e que ressoa nos cantares que os presentificam. A veneração dos ancestrais funda a visão de mundo banto e se constitui num dos elementos fundamentais de inserção de códigos culturais africanos no tecido da cosmovisão cristã, reformatando-a africanamente. (p. 186).

No rito oral da palavra encantada, em canto e encanto, o Congado se apresenta como campo sagrado, festivo, mas também como história e memória ancestral de uma comunidade, memória espiralar, como prefere a autora, movente, circular, real, improvisada (como no jazz). Essas Afrografias da memória possuem, sem dúvida, irrefutável beleza, pois Leda Martins, como poeta, Rainha Conga, imprimiu em seus escritos a força da palavra vocalizada, dos cantares, da poesia oral e escrita. Neste 2021, ano de retomadas, de reinícios, em certo sentido, a obra de Leda Martins ressurge para nos afinar, para nos excitar ao gesto sensível da escuta próprio desses rituais congadeiros em oralitura. Essa escrita é também ato exusíaco de feição, de comunicação, de abertura: resistência-potência, encontro-canto, porque atualiza trânsitos, reinados, a tradição ancestral africana e afro-brasileira, como “o moçambique nas encruzilhadas canta” (MARTINS, 2021, p. 197):

Estrela do dia

Estrela do mar

Alumia o gira d’ingombe

Para mia povo passar

Que a força poética dessas Afrografias da memória, seiva escritural, leitura-fruição, possa reverberar como modo de operar o sistema simbólico dos Congados, forjado nos cruzamentos, especialmente o do Reinado do Rosário do Jatobá, ao qual se dedica, com excelência, a escritora. Que ele possa ainda ser lido como ritual iniciático por aqueles que desejam conhecer essa expressão cultural e celebrativa de devoção a Nossa Senhora do Rosário e a outros santos inscritos nessa tradição afro-brasileira.

 

Belo Horizonte, dezembro de 2021

Referências

MARTINS, Leda. Afrografias da memória: o reinado do Rosário do Jatobá. 2.ed. Belo Horizonte: Mazza Edições; São Paulo: Editora Perspectiva, 2021.

SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2005.

 

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¹Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora, Mestre e Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. No momento, cumpre Estágio Pós-doutoral nesta Instituição. Pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Portal literafro, é coautora de Literatura afro-brasileira – 100  autores do século XVIII ao XXI.

 

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