A poesia de mulheres negras como enfrentamento necessário ao

epistemicídio

Maria do Rosário A. Pereira*

 

É preciso buscar
outros referenciais
epistêmicos
para que
a mulher negra
possa existir
e falar.

Heleine Fernandes de Souza
2020

 

Sinto-me um pouco suspeita ao fazer uma resenha sobre a obra A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento, de Heleine Fernandes de Souza (2020, Editora Malê). Não porque conheça a autora da pesquisa (e seria um prazer conhecê-la), mas porque aprecio fortemente as três autoras por ela investigadas as quais, diga-se de passagem, são poetas que merecem – merecem não, precisam! – ser lidas e estudadas de modo mais sistemático.

Heleine Fernandes de Souza, pesquisadora do Laboratório Estudos Negros do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ, é professora doutora em Teoria Literária pela mesma instituição. Além disso, é também poeta, o que diz muito sobre sua sensibilidade na leitura das obras em xeque, ao mesmo tempo que demonstra apuro acadêmico no trato com as poéticas por ela selecionadas. Assim, a obra propõe uma reflexão sobre as especificidades dos discursos de três mulheres negras que anunciam, via texto literário, seu lugar de pertencimento no mundo, filiando-se a uma estética afrodiaspórica.

Dividida em três capítulos, a obra faz um percurso que vai dos caminhos trilhados contra o silenciamento dessas vozes negras – e femininas, importante frisar - , percorrendo estratégias de dicção como forma de enfrentamento ao epistemicídio, até a compreensão do modo como a poesia dessas autoras estrutura-se, por meio da retomada da ancestralidade e, ainda, do afeto nas relações como possibilidade de resistência. Interessante perceber que tal reflexão encontra ecos em obra de bel hooks recentemente publicada no Brasil, Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2021), na qual a autora preconiza que o amor seria uma ação transformadora no mundo que nos cerca.

Partindo de Audre Lorde, em seu conhecido ensaio “Poesia não é luxo”, a autora defende a premissa de que a poesia tem o poder vital, isto é, o poder de garantir às mulheres negras sua própria existência. Mais do que uma simples forma de expressão artística, pois, a poesia é colocada no lugar de uma prática que legitima vozes até então posicionadas como subalternas na cultura hegemônica. Ao retomar a ideia de “tradição fraturada”, de Edmilson de Almeida Pereira, Souza demonstra como a poesia dessas mulheres pode suplementar o cânone, como forma de combater a violência epistêmica a que essas vozes, historicamente, vêm sendo submetidas de modo sistemático. A autora percorre uma tradição feminista ocidental que, desde Simone de Beauvoir, considerou a Mulher como somente a mulher branca. Ainda que sejam inegáveis as contribuições teóricas de Beauvoir e outras feministas da primeira hora, fato é que as vivências de mulheres negras distinguem-se fortemente das mulheres brancas, assim como dos homens negros, e por isso devem ser vistas de mais perto. Afinal, são justamente essas experiências que devem ser retratadas, seja do ponto de vista teórico ou artístico, sob a perspectiva de quem as vivencia, uma vez que, como é sabido, o sujeito se inscreve na sua escrita, mesmo que isso apareça ressignificado via linguagem.

Dessa forma, reconhecer a importância dessas produções é uma forma de resistência ativa – e, neste ponto, a autora retoma teóricas como Spivak. Destaque-se a vitalidade da bibliografia utilizada, uma vez que percorre contribuições importantes para o feminismo, mas também se volta para autoras contemporâneas que se propuseram a pensar sobre a produção intelectual da mulher negra, como Florentina da Silva Souza e Giovana Xavier, sem desconsiderar também os intelectuais negros que problematizaram o lugar subalterno relegado à negritude, como Cuti e Abdias do Nascimento, dentre muitos outros e outras.

Quanto à escolha das três poetas, Souza promove uma leitura entre elas por aproximação, apontando elementos congruentes no conjunto de seus poemas, sem, no entanto, desconsiderar as particularidades de cada uma. É assim que as autoras estudadas redimensionam o lugar e o corpo da mulher negra, mulher esta que, para além de uma longa tradição que a objetificou, apresenta-se como sujeito de seu próprio discurso, além de as poetas tratarem, de algum modo, da reescrita de uma memória ancestral. É assim que figuram, por exemplo, mulheres negras que atuam numa comunidade, que estão sujeitas às dores e aos amores do dia a dia, mas cujas raízes encontram-se na diáspora africana. Essas “vozes-mulheres”, para lembrar de um poema emblemático de Conceição Evaristo, reverberam resistências que ainda se fazem necessárias, pois se hoje já não temos os porões dos navios negreiros, temos as favelas e o silenciamento da população negra – simbólico ou físico inclusive –, como bem nos lembra Souza.

Há uma leitura cuidadosa por parte da pesquisadora quanto aos poemas analisados: enquanto Conceição Evaristo apresenta uma linhagem de mulheres que passam o bastão da cultura e da ancestralidade adiante, por assim dizer, Lívia Natália ressemantiza alguns símbolos da cultura negra vistos de modo pejorativo ou mesmo estereotipado na sociedade, como se lê no poema “Lá vai verso!”, em que a “carapinha” é exaltada para realçar a beleza das “irmãs negras”, as quais devem se reconhecer “no espelho da diferença belas e valorosas”, como bem pondera a pesquisadora. Já Tatiana Nascimento apresenta uma poética que, além de trazer a mulher negra para o centro do texto poético em imagens e signos que remetem ao corpo negro em diáspora – como no poema “baobá”, por exemplo –, também destaca a mulher negra lésbica ou trans em muitas de suas produções. A autora, que para além de um projeto poético tem um projeto editorial voltado pra isso – a Padê Editorial –, usa do coloquialismo e da oralidade como recurso linguístico, além de trabalhar imageticamente com a fragmentação das palavras, conferindo ao poema ainda mais expressividade. No que se refere à dimensão afetiva que aparece nos poemas, enquanto Lívia Natália retoma personagens femininas arquetípicas na cultura ocidental, como Ariadne e Penélope, num diálogo subversivo com a tradição, Conceição Evaristo aponta para o autoconhecimento, para o autoamor, como caminho profícuo para a redescoberta das potencialidades íntimas e contra toda a negatividade de uma cultura racista. Destaque-se a leitura feita por Souza sobre o poema “lundu”, de Tatiana Nascimento, pois chama a atenção para inúmeras singularidades que nele se apresentam em relação ao padrão heteronormativo, já que o desejo entre mulheres lésbicas é percebido pela estudiosa como “um estado de saúde vital e orgânico”.

Como se vê, são muitas as nuances sob as quais a poesia dessas autoras se apresenta e muitos os diálogos que podem ser construídos. Portanto, pode-se afirmar que o livro de Heleine Fernandes de Souza apresenta uma contribuição ímpar para os estudos relativos à poesia negra escrita por mulheres e, mais ainda, faz-se fortuna crítica para aqueles (as) que se propuserem a se debruçar sobre a poesia de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento. Logo, este livro institui “uma rasura teórica necessária no campo da Teoria da Literatura”, para retomar palavras de Lívia Natália citadas por Souza a propósito do que seria essa “poesia dissidente”. Que os leitores se sintam instigados a conhecer ainda mais o universo dessas potências negras.

Belo Horizonte, abril de 2020

Referência

SOUZA, Heleine Fernandes de. A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento. Rio de Janeiro: Malê, 2020.

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* Maria do Rosário Alves Pereira é Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG, professora do CEFET-MG e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFV. É autora de Entre a lembrança e o esquecimento: a memória nos contos de Lygia Fagundes Telles (2018); e coorganizadora dos volumes: Linhas cruzadas: literatura, arte, gênero e etnicidade (2011); A escritura no feminino: aproximações (2011); e Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (2016; 2018). E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.  

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