PREFÁCIO

 

Ahyas Siss*

 

Não tenho nenhum motivo
para deixar de combater o racismo.
Não faço acordo com a minha poesia.
Há alguns anos,
conversando com o professor
Abdias Nascimento,
ele me disse que muitos brancos
o consideravam um negro ingrato.
Então, de pronto lhe respondi:
“então somos dois
negros ingratos, professor”.
E caímos na gargalhada,
cheios de motivações. 

Ele Semog

A sociedade brasileira, hierarquizante e hierarquizada, que dos seus quase cinco séculos de existência, foi escravista por mais de trezentos e cinquenta anos, ainda contemporaneamente concebe as diferenças culturais em termos de exotismo ou de inferioridade. Educar para o respeito às relações étnico-raciais em sociedade assim estruturada, implica em atuar-se firmemente na perspectiva de uma mudança de atitudes e de valores.

Apenas reconhecer-se o caráter multicultural da nossa sociedade é muito pouco, como também não basta que a escola reconheça que a sua clientela é diversificada, seja por gênero, por classe, por raça e que possuem culturas diferentes. Isso já é sobejamente conhecido. A simples presença física de seus alunos evidencia isso. Se esse reconhecimento não se fizer acompanhar por políticas de respeito aos diferentes e por uma mudança de atitudes frente a eles, dificilmente essa escola será capaz de criar mecanismos potentes para transformar as relações de dominação e de exclusão, tanto no seu interior, quanto na sociedade ampliada.

Não obstante a ênfase concedida à educação não nos escapa, a preocupação com o fato de que é na escola que se recebe "a maior carga de branqueamento, nos afastando cada vez mais do nosso grupo de origem". Daí decorrem as razões pelas quais a educação, na perspectiva dos afro-brasileiros/as (negros/as, pretos/as e pardos/as) vir se configurando, ao longo de todo o século passado e também desse, como uma nova prática, impactando fortemente as múltiplas relações que permeiam os processos de discriminação racial enquanto forma de exclusão, construção da cidadania e a descolonização de subjetividades.

A partir do final dos anos noventa do século XX, essa prática vem se instituindo mais fortemente, conseguindo tencionar e influenciar aquelas práticas educacionais ditadas pela tradição em uma sociedade que por mais de trezentos e cinquenta anos foi escravista e que aprendeu a perceber os afro-brasileiros/as (negros/as, pretos/as e pardos/as) sob uma ótica deformada e deformadora.

A Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER’s) é um dos mais importantes desafios com o qual a e educação brasileira em todos os seus níveis vem se defrontando contemporaneamente. Na linha de frente do enfrentamento direto desse desafio historicamente colocado para a educação brasileira está a Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003, que altera a nossa atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/1996, para nela incluir os artigos 26A e 79B.

No seu artigo 26-A, por exemplo, essa Lei determina que “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” e que o seu “conteúdo programático (...) incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”.

Não há como negar o papel estruturante que o racismo desempenha nas relações raciais e sociais brasileiras. Muito embora ele possua suas raízes cravadas no passado escravista da nossa sociedade, ele se atualiza constantemente nas ações e relações interpessoais e institucionais. Passada mais de uma década da Lei 10.639/2003 O sistema educacional no Brasil continua a reproduzir, com frequência, práticas discriminatórias racializadas e racistas.

Ainda que a educação escolarizada não seja a única solução para a eliminação de todas as desigualdades sociais, raciais, étnicas, geracionais e de gênero, dentre outras, não podemos ignorar que ela ocupa um lugar histórico e fundamental nos processos de construção e de implementação de cidadania plena dos diferentes segmentos populacionais de qualquer sociedade, se configurando como um mecanismo efetivo e imprescindível de promoção de inclusão social. Entretanto, se o processo educativo tiver suas bases assentadas sobre princípios racistas e excludentes, essa educação jamais será capaz de cumprir seu papel social.

Existe um círculo vicioso que combina racismo, pobreza, fracasso escolar e marginalização social. A soma destas práticas impede o desenvolvimento dos direitos humanos, o exercício pleno da cidadania e a possibilidade de participação social, econômica, cultural e política do segmento populacional negro (afro-brasileiro/a, preto/a, ou pardo/a) majoritariamente aí inserido e de forma subalternizada o que torna urgente e inadiável a construção de uma política de formação de professores em seus aspectos inicial e continuado, baseado em princípios antirracistas, que valorizem a diversidade, a equidade e a justiça social.

Na implementação da Lei 10.639/2003, revestem-se de fundamental importância os papéis que os professores e as professoras desempenham no processo de enfrentamento desse importante desafio de educar-se para as relações étnico-raciais e da transformação qualitativa dos valores sociais e étnico-raciais, o que certamente nã passa despercebido ao arguto olhar de Ele Semog, ele mesmo professor e homem negro (afro-brasileiro, preto, ou pardo).

Qualificados para o exercício da Educação das Relações Étnico-Raciais os professores e professoras estarão aptos a perceberem as ideologias e os estereótipos veiculados pelos diversos materiais didáticos colocados à sua disposição, de poderem desmistificar os valores particulares que os currículos escolares muitas das vezes tentam tornar gerais ou hegemônicos e a elaboração de críticas e subversão de estereótipos e ideologias veiculados pelos  diversos recursos pedagógicos colocados à sua disposição.

Esse desafio, quando não enfrentado, reduz professores e professoras a meros expectadores, diletantistas, quando não a um completo e nefasto mutismo frente à situações de preconceito e de discriminação étnico-racial o que por sua vez obstaculiza, não só a otimização de sua prática pedagógica, como também impacta negativamente os processos de aprendizagem de seus alunos, colocando-os em níveis indesejáveis.

Afinal, se o tornar-se sujeito implica em uma luta constante contra  o assujeitamento, como será possível ao alunado Afro-brasileiro/a, (negro/a, preto/as ou pardo) tornar-se sujeito do conhecimento em um contexto assim delineado, sem que esse processo implique em um doloroso exercício de aprendizagem e de negação, tanto de si mesmo como de seu lugar de origem?

Nesse sentido, é necessário perceber-se que formar profissionais focados nos conhecimentos para a Educação das Relações Étnico-Raciais possibilita laborar para uma atuação profissional que vai além da docência, dando conta da gestão de processos educativos e pesquisas que acontecem na escola e em seu entorno.

Apontamos aqui para a necessidade de uma sólida formação inicial e continuada teórico-prática, que permitam aos professores e às professoras reconhecer que o racismo e as desigualdades sociais e étnico-raciais são produções estruturais políticas e históricas que contribuíram e contribuem para a exclusão da população negra, em condições de minoria política, dos bens construídos socialmente dentre os quais a educação ocupa lugar de centralidade. Essa formação deve possibilitar a todos os professores a assumirem a responsabilidade com a educação de todos os alunos, transformando as práticas pedagógicas excludentes em trabalho educativo antirracista no Brasil.

O professor precisa dar continuidade ao seu processo de formação inicial. Quando ainda em estudos incipientes na universidade, é possível dar-se conta de quão falha foi nossa formação inicial e o quanto a cada dia necessitamos nos formar, nos informar e trocar conhecimento. Nossas relações estabelecem o quão diferenciado são nossos projetos para formação do professor.

A formação continuada de professores implica necessariamente na postura assumida pelo profissional frente a ampliação de sua formação inicial, entrelaçando seus saberes-fazeres, integrando e interagindo com os diferentes, visando a produção da Educação das Relações Étnico-Raciais em prol do aprimoramento das relações e do respeito, às diferenças. Este é, pois, o caráter complexo do desafio da formação humana e das relações étnico-raciais.

Um dos caminhos possíveis para realizar um trabalho educativo que dê conta de tantas e complexas questões como as que estão envolvidas no processo de (des)construção do racismo em nossa sociedade é problematizando-o em nossas salas de aulas, questionando o preconceito e a discriminação, ainda tão presentes em nossa sociedade e portanto em nossas escolas, apesar dos discursos em contrário e construindo-se conhecimentos que permitam a professoras e professores contrapor à concepção autoritária do "conhecimento-verdade, abstração criada para dominar", aqueles conhecimentos criados por seres humanos que os constroem em sua praxis social transformadora.

Até meados da primeira década do presente século, eram escassos os materiais didáticos de apoio a professores e a professoras, produzidos na perspectiva da Lei 10.639/2003, ou seja, antidiscriminatórios e antirracistas  voltados para a Educação das Relações Étnico-Raciais, que buscassem ressignificar  e valorizar as culturas africanas e afro-brasileiras, negro/as, pretos/as e ou pardos/as.

 Gradativamente, porém, a produção desses materiais passou por um significativo crescimento tanto qualitativo, como quantitativo e vem se constituindo em importante mecanismo que possibilitem o efetivo cumprimento da nossa atual LDBEN, atualizada pela Lei 10.639/2003. Tais materiais tem se convertido em importante e fundamental instrumento de suporte à professores e professoras que, nos processos de ensino e aprendizagem, atuam na perspectiva da Educação das Relações Étnico-Raciais.

É nessa perspectiva que se situa o A galinha garnisé e outros Eusébios de Queirós: racismo na sociedade brasileira, de Ele Semog, autor que já nos presenteou com tantas obras significativas nas quais as relações étnico-raciais indubitavelmente estão sempre presentes abordadas de forma dramática, romântica, épica, ou aventureira e lúdica. Este mais recente livro de Ele Semog é resultado de palestras e reflexões proferidas por nosso importante autor a convite de diversas instituições.

Poeta, militante dos movimentos negros, ativista político, professor romancista, Ele Semog nos presenteia com essa bela coletânea de textos escritos em diferentes épocas mas, sempre atuais, que nos instigam a ressignificar nossas práticas educativas e que, certamente é um importantíssimo material de apoio e uma significativa contribuição à Educação das Relações Étnico-Raciais.

Eu poderia discorrer longamente aqui sobre a importância de nos debruçarmos sobre cada um dos vinte artigos que compõe essa excelente obra. Entretanto, se tal o fizesse, eu estaria privando o leitor e a leitora, de saborear, de fruir em primeira mão, das múltiplas possibilidades interpretativas que a obra oferece. Boa leitura. Mas, fiquemos uma vez mais com Ele Semog:

Zumbi razão de vida
herói irmão das nossas lutas
pulsão da África que nos habita
nesse imenso ilê de gentes negras.
Zumbi guia dos rumos
desse ardiloso caminho,
não nos deixe em silêncio,
não nos deixe sozinhos.
Zumbi, Zumbi, Zumbi!
Cansei de ti de vez em quando,
cansei de ti só em novembro!
Cansei... mas quero te ver
De janeiro a dezembro.
E vê se trás o João Cândido.

 

Referência

SEMOG, Éle. A galinha garnisé e outros Eusébios de Queiroz: racismo e sociabilidade brasileira. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2020.

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* Ahyas Siss é professor/pesquisador do Programa de Pós-graduação em Educação da  UFRRJ, com Pós-doutorado em Antropologia Social.

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