O Resgate de Firmina

 

Aline Alves Arruda*

Maria Firmina dos Reis (1822-1917) integra o numeroso contingente de escritoras brasileiras do século XIX ignoradas pela crítica e pela historiografia literárias de seu tempo e, mesmo, ao longo de boa parte do século XX, momento em que se estabelece em definitivo o cânone da literatura brasileira. Publicações recentes, como a coleção em 3 volumes Escritoras brasileiras do século XIX, organizada por Zahidé Muzart, demonstram de modo cabal o caráter branco e masculino do cânone, ao deixar de fora mais de uma centena de autoras, todas com livros individuais publicados.

No caso específico da poetisa e ficcionista maranhense, somente a partir de 1975, momento em que vem a público uma pequena edição fac-similar de seu romance Úrsula, terá início o longo processo de resgate crítico de sua produção, até então restrita a antigas publicações locais e sem maior repercussão para além dos limites de sua terra natal.

É também de 1975 o já histórico artigo de Josué Montello no Jornal do Brasil – “A primeira romancista brasileira” – publicado no ano seguinte na Espanha e incluído como texto de abertura no volume ora lançado e objeto dessas considerações, Maria Firmina dos Reis: faces de uma precursora. Nele, o escritor e conterrâneo cita os responsáveis pela “ressurreição” da autora: Nascimento Morais Filho, filho do autor de Vencidos e degenerados, notabilizou-se como biógrafo e divulgador dos textos de sua conterrânea; e Horácio de Almeida foi o responsável pela localização do original num sebo carioca e por sua doação ao governo maranhense. Desde então, prosseguiu lentamente o processo de resgate da autora. Ao longo do último quartel no século passado, vieram a público os poemas de Cantos a beira-mar, inseridos por Morais Filho no volume Maria Firmina, fragmentos de uma vida, também de 1975, e a terceira edição de Úrsula, organizada por Luiza Lobo em 1988, por ocasião do centenário da Abolição. Em paralelo, artigos da própria Luiza Lobo, ao lado de escritos críticos de Maria Lúcia de Barros Mott, Norma Telles e Zahidé Muzart.

Mas será mesmo no século XXI que a escritora, nascida pouco antes da Independência do Brasil e falecida às vésperas da Revolução Soviética, irá ser de fato redescoberta pela crítica e pelo público interessado nas “falas do Outro” mapeadas pelos movimentos negro e feminista. Se entre a primeira e a segunda edições de Úrsula passaram-se nada menos que 116 anos; entre a segunda e a terceira, 13 anos; e entre a terceira e a quarta, 16 anos; entre a sexta e a sétima o intervalo foi de apenas 7 meses... E mais: adotado pelo vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, somente em Porto Alegre o romance teve em 2018 duas novas edições. A estas se somam a da prestigiosa Companhia das Letras/Penguin, a do Senado Federal, além de outras realizadas por pequenas editoras. Em paralelo, cresce o interesse acadêmico por Maria Firmina com aproximadamente 30 dissertações e teses sobre sua obra, defendidas ou em elaboração.

E é justamente para o público universitário – que faz da autora fenômeno literário contemporâneo, exemplo de resistência e denúncia pela via do poema e da ficção –, que o volume organizado por Constância Lima Duarte, Luana Tolentino, Maria Lúcia Barbosa e Maria do Socorro Vieira Coelho se volta ao reunir desde leituras já clássicas a estudos recentes, fruto de trabalhos levados adiante por jovens pesquisadoras e pesquisadores.

Maria Firmina dos Reis: faces de uma precursora inicia com artigos mais conhecidos, como os de Montello, Muzart e Telles, nos quais se pode mapear os primeiros movimentos de ressignificação da obra frente ao contexto dos primórdios do romance no Brasil. Destaca-se não apenas a primazia da voz feminina a clamar contra o paradoxo de uma sociedade ao mesmo tempo cristã e escravocrata, mas igualmente o pioneirismo do romance de autoria feminina no ambiente cultural do país recém-chegado à Independência e dominado pelo romantismo de Alencar, Gonçalves Dias, Macedo e tantos outros luminares masculinos.

Em seguida, a coletânea adentra por estudos mais recentes. Eduardo de Assis Duarte vale-se das reflexões do filósofo camaronês Achille Mbembe para adentrar pelos meandros da razão negra ocidental, a fim de destacar o inédito processo de desconstrução empreendido pela autora frente à doxa europeia responsável pela redução do negro a figura infra-humana. Destaca ainda como Firmina se apropria do discurso bíblico para denunciar a conivência da Igreja com o sistema.

Já Dilercy Adler traz a público sua pesquisa que corrige o equívoco de estudos anteriores e apresenta, entre outras contribuições, a data correta de nascimento da autora: 11 de março de 1822; Cristina Pinto-Bailey comparece com estudo inédito sobre o conto abolicionista “A escrava”; Bárbara Simões examina o enfoque da abolição a partir do Existencialismo e Vânia Vasconcelos comparece com estudo comparativo entre Firmina, Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves.

Os jovens estudiosos estão representados por Juliano Carrupt do Nascimento, autor de livro sobre a escritora; Rafael Balseiro Zin, que escreve tese sobre Firmina e coordena um grupo de discussão na internet voltado para sua obra; e Luciana Martins Diogo, pesquisadora responsável pelo site “Memorial Maria Firmina dos Reis”. Além destes, o volume contém artigos críticos assinados por Laísa Marra, Rilza Rodrigues Toledo, Karina de Almeida Calado, Fernanda Rodrigues de Miranda, Rosangeli de Fátima Batigniani, Imaculada Nascimento, Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho, Kelen Benfenatti e Geraldo Ferreira da Silva, todos com pesquisas concluídas ou em andamento sobre a romancista.

Segundo as organizadoras, “a pluralidade das abordagens aí reunidas com certeza permitirá ao leitor a oportunidade de conhecer melhor essa história oculta que o texto literário vem iluminar, além de acrescentar definitivamente uma nova escritora ao conjunto das letras nacionais”.

Assim, os trabalhos reunidos tornam a publicação um justo resgate desta escritora que, como muitas, passou por um cruel apagamento nada incomum na literatura brasileira e hoje recebe o merecido título de precursora.

Referência

DUARTE, Constância Lima; TOLENTINO, Luana; BARBOSA, Maria Lúcia; COELHO, Maria do Socorro Vieira (Org.). Maria Firmina dos Reis: faces de uma precursora. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2018.


* Aline Alves Arruda é Doutora em Letras: Literatura Brasileira pela UFMG e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, campus Betim. É coautora de Literatura afro-brasileira – abordagens na sala de aula (2014) e coorganizadora dos volumes críticos A escritura no feminino: aproximações (2011) e Memorialismo e resistência: estudos sobre Carolina Maria de Jesus (2016).