À guisa de apresentação

Maria Nazareth Soares Fonseca*

No livro O espetáculo das raças (1993)1, Lilia Moritz Schwarcz considera que, nos finais do século XIX, em período em que as consequências da independência do país, em 1822, e mesmo das lutas pela libertação dos escravos, o Brasil era descrito, nos relatos de viajantes europeus que aqui estiveram, como um país negativamente misturado em termos de raças. Ao se referir às várias representações do paia, nas quais a mestiçagem era ressaltada, Schwarcz reitera que, apesar de vários intelectuais brasileiros referirem-se ao “espetáculo brasileiro da miscigenação”, nem sempre são vistas como positivas as misturas raciais que pintavam de cores diversas a face do Brasil. As variações de cor de pele que se exibiam particularmente nas maiores cidades brasileiras era apreendida pelo olhar dos viajantes estrangeiros e pela elite brasileira como sintoma de uma degenerescência, já que, de acordo com as teorias racialistas que aportavam no Brasil, a diversidade fenotípica certamente causaria as mazelas decorrentes da mistura de raças inferiores2. As características climáticas e sociais da jovem nação eram vistas como sintoma de um processo de enfraquecimento biológico e mental, ideia defendida, entre outros, por Arthur de Gobineau, que esteve no Brasil nos anos 1890-1870. Suas ideias, que se espalharam pela mentalidade da época, condenavam a mestiçagem, entendendo-a como causa de atraso e de ameaça aos destinos da nação (Schwarcz, 1993). Tais ideias irão determinar, no Brasil, a importação de brancos europeus para suprir a de mão de obra negra, após a libertação dos escravos. A brancura da mão de obra europeia funcionaria como antídoto contra os males provocados pela miscigenação, razão por que enrijece-se, no país, a rejeição às misturas raciais, quando essas incluíssem negros e mulatos. Esse processo, de certa forma, irá legitimar “um sistema residual de valores" com “viés branco”, bem como contribuir para a sintomática desvalorização dos “elementos africanos, sejam eles culturais ou físicos", como acentua Kobena Mercer (2018, p. 66).3

Em cenário brasileiro fortemente demarcado pelas ideias racistas que conviviam, em conflito, com as imagens de um Brasil mestiço, surge o movimento modernista a que pertenceu a figura magistral de Mário de Andrade, discutida no ensaio de Oswaldo de Camargo. No seu ensaio, Camargo propõe avaliar, nos escritos literários e críticos do escritor paulistano, as expressões reveladoras do modo como Mário de Andrade conviveu com os traços fisionômicos herdados de seus ancestrais negros.4 O ensaísta considera importante verificar como o escritor Mário de Andrade, que se projeta no poema “Eu sou trezentos”, do livro Remate de males, publicado em 1930, sob pseudônimo de Mário Sobral, foi capaz de lidar com os mecanismos de rejeição a negros e mulatos, vigentes no Brasil, ainda que pertencesse à elite intelectual paulistana. Não por acaso, o escritor procurou estudar as diferentes facetas do preconceito racial no Brasil para entender melhor o próprio lugar que ocupava na sociedade a que pertencia.5  

Com o intuito de situar o escritor paulistano em cenário de que fazem parte escritores como Francisco Otaviano (Rio de Janeiro, 1825-1889), Machado de Assis  (Rio de Janeiro, 1839-1908), Lima Barreto (Rio de Janeiro 1881 - 1922) e Cruz e Sousa (Florianópolis 1861-1898),  Camargo discute os males do preconceito racial que fez com que vários escritores e artistas negros e mulatos brasileiros adotassem atitudes escorregadias diante de sua cor. A cor negra da pele, após a abolição da escravatura, continua a figurar, no imaginário do Brasil, como indicadora de inferioridade e isso fará com que os mulatos, como Mário de Andrade, sejam ora considerados positivamente, porque estão mais próximos da cor branca, ou negativamente, porque, apesar de não serem negros, não podem ser considerados brancos. Ser mulato como Machado de Assis e Mário de Andrade e vários outros escritores e artistas citados por Camargo em seu ensaio representa uma condição nem sempre fácil de conviver com as normas da elite brasileira. Como demonstra Camargo,  na época de Mário de Andrade o racismo era discutido e combatido por intelectuais brancos, negros e mulatos, sem que, de forma prática, fosse desacreditado por uma nação que se diz mestiça. O racismo fortalece o processo de exclusão de negros e mulatos do projeto arquitetônico das grandes cidades e explica sua “inclusão parcial numa ordem projetada por grupos hegemônicos” (PEREIRA, 2001, p. 32).6

Ao participar de um jogo cujos lances explicitam as condições para estar dentro e fora do cenário demarcado pela elite intelectual do Brasil, Mário de Andrade se faz “trezentos” ou simplesmente responde “vou passando muito bem, obrigado” aos que lhe perguntam sobre sua cor. Sem aceitar de forma tranquila a mestiçagem que se expõe em seu rosto, em seu cabelo e aguça a sua curiosidade pelas coisas brasileiras, o escritor cria Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, com que ironiza os valores consagrados pela cultura brasileira, expressos numa política de branqueamento que, como se desejava, sanearia a nação degenerada constituída por misturas e mestiçagens. Os versos do poema “Grito imperioso de brancura em mim”, de Mário de Andrade, expõem os conflitos de uma sociedade que assume, a contra gosto, a mestiçagem como característica do Brasil tropical, embora continue praticando políticas de branqueamento. 

Como fica demonstrado no ensaio de Camargo, Mário de Andrade, ao sentir-se impossibilitado de se ver “negro nem vermelho”, delega ao eu lírico o direito de se nomear “só branco, só branco”. Essa nomeação, no entanto, não se dá sem conflito no poema, porque é o mesmo eu lírico que reconhece ter  a “alma crivada de raças”.

O ensaio de Oswaldo de Camargo é, por todos os pontos que ressalta, caminho bem construído para os que procuram acompanhar, de perto, o modo como o escritor, ensaísta, musicólogo e ativista cultural Mário de Andrade lidou, em sua vida e em sua obra, com a questão racial brasileira que está presente em sua obra literária e crítica, sem panfletarismos contra ou a favor.


Notas

1 - SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870 - 1930, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

2 - A percepção de negros e indígenas como raças inferiores sustentava o pensamento racista do século XIX, sendo assumida também por intelectuais e ideólogos brasileiros. Destaque-se a opinião do conde Arthur de Gobineau, que residiu no Brasil entre 1869 e 1870, em missão da diplomacia francesa. Crítico ferrenho da mestiçagem, que, segundo ele, tornava os brasileiros  feios e preguiçosos.

3 - Sobre os processos de desvalorização de traços do corpo negro em sociedades racistas, é importante consultar: MERCER, Kobena. Black hair/ Políticas de estilo. In:  Histórias afro-atlânticas- Antologia. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake/MASP. 2018, p. 63 - 81.

4 - De acordo com texto publicado no jornal Folha de São Paulo, em  25 de setembro de 1993, de autoria de José Geraldo Couto e Mario Cesar Carvalho, Mário de Andrade era extremamente vaidoso. Segundo o artigo, o escritor paulistano tinha o costume de “atenuar o tom amulatado da pele, herança das avós materna e paterna, ambas mulatas”. Ver: http://almanaque.folha.uol.com.br/semana3.htm. Acesso em 28/08/2018. 

5 - No ensaio, Oswaldo de Camargo refere-se ao modo como Mário de Andrade considerou o negro e a cultura produzida por matrizes africanas, no Brasil, citando a tese defendida por Angela Teodoro Grillo, em 2011. A tese foi publicada em livro, em 2016. GRILLO, Ângela Teodoro. Sambas insonhados: o negro na perspectiva de Mário de Andrade, São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2016.

6 - A citação foi extraída de: PEREIRA, Edimilson de Almeida; GOMES, Núbia Pereira de Magalhães. Os ardis da imagem. Belo Horizonte: Editora PUC Minas/Mazza Edições, 2001).


Sobre a autora

*Maria Nazareth Soares Fonseca é doutora em Literatura Comparada (UFMG, 1993) e professora da Pós-graduação em Letras da PUC Minas. Além de diversos ensaios e artigos críticos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, organizou os livros Brasil afro-brasileiro (2000), Poéticas afro- brasileiras (2003), Literaturas africanas de língua portuguesa – percursos da memória e outros trânsitos (2008), entre outros. É também autora de Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015).


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