Triste visionário: retratos de um escritor afro-brasileiro

Rafaela Pereira*

Durante a minha passagem pela escola, lembro as vezes (e foram poucas) em que os professores falaram sobre Lima Barreto, enfatizando o fato de ter sido “alcóolatra e louco”; eram os dois adjetivos que faziam questão de ressaltar, mas nenhum deles foi capaz de abordar a escrita do autor e o seu olhar crítico em relação às injustiças com as quais se deparou constantemente. Parece que, para os professores da minha época, Lima Barreto ficou na memória deles apenas pelo alcoolismo e pela loucura e não por seu potencial como escritor.

Lima Barreto: triste visionário (2017), biografia escrita por Lilia Moritz Schwarcz, felizmente, traz uma riqueza de informações reunidas em mais de 500 páginas que vão muito além das mazelas que assolaram a vida do autor; acompanhamos sua história de 41 anos, que nos intriga pelo seu modo de escrever, seus personagens e sua crítica às mazelas da sociedade recém-saída da escravidão. O livro é dividido em dezessete capítulos através dos quais o leitor acompanhará uma trajetória que vai pontuar aspectos desde a infância do autor até à sua morte, ocorrida em 1º de novembro de 1922. A quantidade de referências bibliográficas no final do livro deixa bem claro que se trata do resultado de um extenso trabalho de pesquisa em que Lilia Schwarcz nos presenteia com informações significativas sobre o biografado.

No final do século XIX, o país ainda vivia sob o regime escravocrata, até que no dia 13 de maio de 1888 foi declarada a abolição da escravatura. Na mesma data, exatamente sete anos antes, nascia no Rio de Janeiro Afonso Henriques de Lima Barreto. Filho da professora Amália Augusta e do tipógrafo João Henriques de Lima Barreto, o autor carioca cresceu em uma família que prezava pela educação e teve a oportunidade de ser orientado a estudar com afinco na infância e adolescência, a fim de se preparar para ingressar na escola Politécnica, algo que estava ao alcance somente das famílias abastadas.

Mas Lima crescia percebendo os obstáculos que a vida constantemente lhe apresentava: perdeu a mãe muito cedo, foi acusado de furto ainda garoto, cresceu vendo o pai ser consumido pelos males do alcoolismo e da loucura, algo que herdaria e também vivenciaria na fase adulta. Lima via esses acontecimentos como reflexos estritamente relacionados com a sua origem e condição social, o que resultou no abandono do curso de engenharia na Politécnica e fez nascer um escritor que não economizou palavras nem personagens para expressar as arbitrariedades tão evidentes no meio social no qual transitava: a periferia e o centro carioca.

Uma das características mais interessantes e, até mesmo curiosas, são os traços biográficos do autor tão presentes em suas obras, a ponto de ser difícil dizer se ele usava os personagens para falar de si mesmo ou se ele fazia questão de usar a própria imagem para construir os personagens, como é possível notar em Policarpo Quaresma, Gonzaga de Sá e Isaías Caminha, sendo este, na visão da autora, escolhido por Lima Barreto como sua “carta de apresentação”. À medida que outros escritores da época percebiam que esses traços biográficos se tornaram recorrentes na obra dele, foi duramente criticado, o que o fazia ficar nas incertezas e angústias do seu fazer literário. Porém, nunca se sentiu intimidado por tais reparos, como Lilia Schwarcz explicita nos capítulos “O jornalismo como ficção: Recordações do escrivão Isaías Caminha”, “Cartada forte e visionária: fazendo crônicas, contos e virando Triste fim de Policarpo Quaresma” e “Clara dos Anjos e as cores de Lima”, desvendando os caminhos que ele traçou para ingressar na vida literária: fazendo denúncias com o objetivo de escandalizar a sociedade da época, ora de forma bem explícita, ora de forma um tanto disfarçada.

Em seu romance de estreia, Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909, o autor molda seu personagem afrodescendente, através do qual mostraria a visão realista sobre os reflexos da abolição. Outra informação a respeito do tema que Schwarcz destaca é o conhecimento que Lima tinha sobre a elite de intelectuais negros e ativistas norte-americanos como Paul Cuffee, Martin Delany e W. E. Du Bois, que discutiam em suas obras a subalternização das populações negras no contexto dos Estados Unidos da América. Tais influências contribuíram para que Lima abordasse a questão do preconceito de cor em Recordações, narrado em primeira pessoa, tornando mais evidente a mescla do autor e seu personagem, como a autora pontua:

Tal como Lima, Isaías é um bom aluno e recebe um livro da professora de ginásio, do qual não se separa mais. Detesta igualmente Botafogo e Petrópolis, não gosta das artificialidades do jogo social, carrega desconfianças para com o Apostolado Positivista e diante das reformas urbanas que vão sendo socializadas. Por fim, assim como seu criador, amarga sérias preocupações acerca da relevância da obra que está escrevendo: suas recordações. (p. 217).

Sobre o romance, o mais curioso é que o incômodo não se deu pela abordagem e denúncia racial e, sim, pela forma como o livro tratou o jornalismo, desencadeando uma série de críticas negativas que frustraram as expectativas do triste visionário, que não conseguiu ingressar na Academia Brasileira de Letras, o “santuário” dos escritores consagrados e imortais da literatura brasileira. Isso, não se pode negar, fez com que a lista de inimigos crescesse e afetasse as possíveis “influências” para que fizesse parte do ciclo dos renomados.

Em várias passagens, Schwarcz deixa bem claro que Lima Barreto não estava disposto a se corromper para fazer parte do ciclo de autores renomados, mas se sentia angustiado por ser mal compreendido e interpretado. O fato de não conseguir fazer parte da lista dos imortais da ABL foi motivo suficiente para que tecesse também críticas fervorosas à instituição fundada por Machado de Assis. Não se pode negar que o escritor incomodou muitos de seus contemporâneos e com certeza ainda incomoda, talvez pelos questionamentos que fez tão pertinentes na contemporaneidade.

Outra referência valiosa que Lilia nos apresenta é uma análise sobre as tentativas de explicitar pontos comparativos entre Lima Barreto e Machado de Assis, talvez porque ambos tenham muito mais pontos em comum do que contra: eram afrodescendentes, de origem humilde, foram funcionários públicos, iniciaram a carreira literária trabalhando nos jornais da cidade do Rio de Janeiro e faziam críticas aos estereótipos que desenhavam o perfil da sociedade burguesa da cidade carioca; abordou o período pré e durante a abolição da escravatura, enquanto o outro pode observar os efeitos já profetizados por Machado de Assis. Apesar de Lima não simpatizar muito com o projeto de carreira do Bruxo do Cosme Velho, constata-se que obras como Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Esaú e Jacó faziam parte da Limana, a biblioteca de Lima Barreto, como nos mostra Schwarcz no capítulo “Lima e Machado: guerra e paz”:

E, em meio a esse emaranhado de sentimentos, chama a atenção a presença oculta mas recorrente de Machado. Sua sombra era tal que, por vezes, ele surgia insinuado em frases e expressões. No conto “Manifestações políticas” – publicado em 29 de outubro de 1921 –, Lima termina o texto com o seguinte diálogo: “Quem é essa gente que me aclama assim? [...] Nisto um bêbado ou um maluco, antepassado certamente de Quincas Borba, gritou bem alto: Ao vencedor, as batatas!...” Ao citar, sem motivo aparente, a famosa expressão de Rubião – a qual é originalmente do filósofo que dá título ao romance Quincas Borba, de 1891 – o escritor acabava por se revelar. Era mesmo um leitor de Machado, como, aliás, toda a sua geração. (p. 335).

Essa observação evidencia um dos pontos das ambivalências de Lima Barreto em relação a Machado; por mais que o primeiro fizesse críticas usando analogias e ironias para se referir ao segundo, o autor de Policarpo Quaresma não conseguia esconder que era leitor e admirador do criador de Brás Cubas.

E afinal, quem era o Lima triste e quem era o Lima visionário? Ou seria o escritor um triste visionário ou um visionário triste? A carreira literária que o autor almejava não se cumpriu da forma como ele esperava e esta era de fato, uma de suas tristezas, principalmente porque ele sabia as principais razões desse empecilho. Por outro lado, é indubitável admitir que ele foi, sim, um exímio visionário que enxergou e não se intimidou em falar sobre o que via e o que vivenciava, e fez do ambiente e dos gêneros jornalísticos, com os quais se familiarizou, o lugar ideal para traçar os discursos das suas indagações. Incrível é perceber o quanto estas indagações são e estão tão atuais no que se refere ao perfil fechado do retrato da literatura brasileira.

Referência

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

* Rafaela Pereira é graduada em Letras pela UFMG, professora do Ensino Fundamental e Médio, e pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Faculdade de Letras da UFMG. Atua na Rede SESI de Educação e é professora voluntária do EDUCAFRO.

 

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