Carolina: uma biografia,

relato fascinante sobre a trajetória de uma escritora necessária 

Aline Alves Arruda*

 

Infelizmente Carolina Maria de Jesus ainda não dispensa apresentações. Apesar de ter vendido mais de 10 mil exemplares de seu Quarto de despejo: diário de uma favelada na primeira semana de seu lançamento, em 1960, esgotando a primeira edição, há muita gente que ainda desconhece a escritora mineira nascida em Sacramento, no ano 1914, que recebeu o adjetivo “favelada” por ter morado na extinta favela do Canindé, em São Paulo. A alcunha impressa na capa do livro permaneceu por muitos anos, mesmo depois de ela ter comprado sua casa de alvenaria, no bairro Santana, com o dinheiro recebido pela venda do seu primeiro livro publicado. É assim que a imprensa da época continuou chamando Carolina e também é dessa forma que muitos ainda se referem a ela. Talvez por conhecerem apenas o livro que lhe deu visibilidade e ignorarem o conjunto de sua obra.

De uns anos para cá, especialmente após seu centenário em 2014, a escritora tem ganhado um espaço maior nos trabalhos acadêmicos, nos saraus, nos eventos de movimentos negros e populares, na formação de professores. O livro de Tom Farias recém-lançado pela editora Malê, Carolina: uma biografia, coroa um momento de efervescência em 1960, ainda que menor que o de 1960, em 1960.

A biografia escrita pelo jornalista, escritor, crítico literário, pesquisador, biógrafo, dramaturgo e roteirista é a mais completa já publicada sobre a autora. Na primeira parte, Farias apresenta a Carolina mineira de Sacramento, que viveu tantas dificuldades na infância ao lado da mãe, Cota. É basicamente a Bitita, apelido que ela tinha na infância, que conhecemos em Diário de Bitita, lançado pela primeira vez no Brasil em 1982, depois de publicado na França, relançado recentemente pela editora SESI-SP. O leitor de Carolina vai reconhecer as histórias performatizadas por ela no livro, recontadas agora na biografia.

Entretanto, o autor complementa e solidifica a narrativa autobiográfica da escritora com o contexto histórico da época, dados geográficos e sociais sobre Sacramento e região, além de nos abrir os olhos para as origens afro-brasileiras de Carolina, completando a história contada pela escritora no texto “O Sócrates africano”, quando ficamos conhecendo Benedicto José da Silva, avô dela, apelidado assim pelo amigo prefeito de Sacramento. O sábio homem é motivo de orgulho e admiração da neta escritora e sobrevém na pesquisa de Tom Farias através dos arquivos por ele cuidadosamente examinados, confirmando a imagem construída por Carolina. Neste momento da biografia traçamos, junto ao escritor, o curto percurso escolar de Carolina e os percalços sofridos na infância pobre e injusta, como a prisão infundada dela e da mãe, fatos típicos de um país com raízes escravocratas.

A segunda parte nos mostra a Carolina das grandes cidades, especialmente São Paulo, onde se estabeleceu até a morte. O fato novo mais surpreendente trazido pelo biógrafo é o de que Carolina de Jesus morou no Rio de Janeiro por aproximadamente dois anos. Tom Farias nos apresenta a notícia de que ela foi entrevistada pelo jornal carioca A Noite, quando se reafirmou como poetisa. É nessa parte também que vamos entender melhor como a autora de Quarto de despejo chegou à favela do Canindé e como sua vida lá foi de carência extrema. Conhecemos ainda nos capítulos que compõem esta parte a Carolina mãe de três filhos, com todas as dificuldades; além disso, a escritora, que já possuía seu projeto literário, investia nele visitando jornais e correspondendo-se com revistas. A escrita era sua companheira diária, assim como o ofício de catar materiais que pudesse vender, seu ganha-pão por muitos anos depois de deixar a vida de doméstica na capital paulistana para se dedicar aos filhos e aos cadernos onde escrevia de tudo.

Na terceira parte do volumoso livro de Tom Farias vamos enfim encontrar a Carolina famosa pelo best-seller e conhecida em todo o mundo. Aqui o autor narra a publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada, em 1960, os números espantosos de exemplares vendidos e os detalhes do lançamento do diário que marcou a história brasileira.

O leitor poderá também conhecer a recepção que o livro teve no país e fora dele, a relação de Carolina com o movimento negro e com as personalidades com quem conviveu durante sua fama. Por fim, nos é mostrada a reviravolta na vida da escritora, sua dificuldade de adaptação na casa de alvenaria, a crueldade da imprensa da época e o esquecimento de que foi vítima até sua morte em Parelheiros, no sítio que comprou para se afastar do tormento que a rodeava no grande centro.

Há ainda no relato de Farias preciosas fotos da escritora e de arquivos pesquisados, saciando nossa curiosidade pelas imagens que ilustrariam essa existência tão impressionante e instigante. A narrativa, como afirma o autor na contracapa, que encantou o biógrafo e agora delicia o leitor é “a força criadora e criativa de uma mulher determinada a viver pelo seu ideal de vida, mas que o mundo da indústria da escrita consumiu como um ‘fruto estranho’ que ela se tornou”.

 

Referência

FARIAS, Tom. Carolina: uma biografia. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2018.

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* Aline Alves Arruda é Doutora em Letras, Literatura Brasileira pela UFMG e professora de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, IFMG, campus Betim. É coautora de Literatura afro-brasileira – abordagens na sala de aula (Pallas, 2014) e coorganizadora dos volumes A escritura no feminino: aproximações (Ed. Mulheres, 2011) e Mulheres em letras: memória, transgressão, linguagem (Viva Voz, 2015).

 

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