Apresentando Entre o dilema e o silenciamento:

etnicidade, memória e poder nas crônicas de Lima Barreto e João do Rio

Harion Custódio*

Aciomar de Oliveira, autor de Todas as vozes (2014), Resiliência (2016) e Maju: a princesa do tempo (2016), lança em 2017 mais um livro: Entre o dilema e o silenciamento: etnicidade, memória e poder nas crônicas de Lima Barreto e João do Rio, livro que é objeto desta resenha. O autor, além de poeta, ficcionista e ensaísta é mestre em Teoria da literatura pela UFMG e professor efetivo de Letras na UEMG de Ibirité, Minas Gerais, além de colaborador do NEIA – Núcleo de estudos interdisciplinares da alteridade – e coordenador do NIEHLAFRO – Núcleo de Estudos em História e Literatura Afrodescendente.

Entre o dilema e o silenciamento, livro de natureza teórica e crítica, é fruto da dissertação de Aciomar para a Pós-graduação em Estudos Literários da UFMG. Trata-se de uma robusta pesquisa que busca analisar, com eficiência, a relação entre três elementos: etnicidade, memória e poder, nas crônicas de Lima Barreto e João do Rio. Tal empreitada intelectual é de alta relevância, pois ambos os autores – negros, porém embranquecidos pelo cânone literário – desenvolveram concepções críticas acerca da memória nacional e do projeto moderno de poder e “progresso” brasileiro, articulando a reflexão com o problema no negro.

A análise de Aciomar foca majoritariamente na produção de crônicas dos dois escritores. A escolha do pesquisador em centralizar suas leituras sobre esse gênero literário se justifica pelo fato de que nesse tipo de produção escrita se encontra uma preocupação maior em refletir e relatar o externo e cotidiano, isto é, as manifestações e relações de poder na sociedade, com suas operações, explícitas ou não, de exclusão social, racismo, e apagamento da cultura e memória dos sujeitos subalternos. E ainda, nas palavras do próprio pesquisador, “as crônicas de João do Rio e  de Lima  Barreto  evidenciam  uma  função  social  marcada  pela preocupação étnica  e  econômica, em diálogo com  a  memória  e  o  poder”, (p. 22).

Ambos os escritores, ademais, valem-se da crônica como locus privilegiado de reflexão sobre a cidade e suas mazelas, lugar em que o poder opera em diversos estratos, podendo ser percebido de maneira até mesmo pungente, pois é no espaço urbano do início do século XX – e ainda nos dias atuais – que as desigualdades se escancaram. Através da obra desses dois autores pode-se perceber contundentes denúncias sobre o agenciamento de exclusão e marginalização operado pelo poder – a categoria poder é usada por Aciomar, cabe ressaltar, no sentido marxiano, ou seja, “poder” é empregado para designar   as  forças  do  Estado  e  da  classe  social dominante  –,  caracterizado  por  um  violento  conflito  entre  centro  e  periferia, provocando  segregações  de  ordem  racial  e,  correlativamente,  econômica.

O livro se divide em três capítulos: o primeiro, “Crônica, memória e cidade”, prima por trazer os conceitos teóricos de crônica e memória. Aciomar dialoga com importantes teóricos, como Maurice Halbwachs, Paul Ricouer e Jacques Le Goff. É dado um enfoque, também, sobre como a cidade, descrita pela crônica, é um lugar de manifestação da memória, tanto individual quanto coletiva.

O segundo capítulo, “A etnicidade”, nos traz importantes concepções acerca do conceito de raça e etnicidade, abordando como os termos são complexos e polêmicos e propondo a substituição do primeiro pelo segundo. O pesquisador, então, analisa diversas concepções de teóricos que se debruçaram sobre o tema, tais como Stuart Hall e Kabengelle Munanga. Outrossim, nesse capítulo é mostrado de forma empírica como a etnicidade opera nos escritos dos autores em questão, trazendo uma vasta gama de exemplos e citações.

Por fim, o capítulo três “Refletindo sobre o poder”, além de trazer posições importantes de Raimundo Faoro, Joel Rufino dos Santos e Karl Marx sobre o poder, articula como os dois intelectuais construiam suas visões críticas sobre as estruturas de dominação da Velha República, fortemente controladas pelas classes dominantes (burguesia, oligarquia e força burocrática). Do mesmo modo, tem-se nesse capítulo um robusto trabalho de demonstração.

Em interseccionalidade com a questão do poder e da memória, Aciomar busca traçar também como a identidade étnica de Lima e João do Rio se constroi em seus textos. Ambos meditaram sobre a situação do negro no Brasil, entretanto, como aponta o pesquisador, de modos e tonalidades diferentes. Enquanto Lima Barreto é mais incisivo e transparente em expressar seu pertencimento étnico e suas críticas ao status quo em geral, João do Rio se apresenta mais comedido em incomodar o poder e expressar sua identidade. Porém, no caso de João do Rio, ainda assim é possível perceber sua identificação étnica, o que demanda, contudo, um trabalho de leitura mais atento às nuances subjacentes ao texto. Tal fator deixa evidente como os dois escritores possuiam estilos diferentes, o que poderia ser reflexo não só de um direcionamento estético singular, como também de formas distintas de engajamento.

A figuração da etnicidade nas crônicas dos autores nos mostra, também, a imagem complexa do dilema: pertencer e não pertencer a mundos diferentes, na linha do que Dubois chamou de dupla consciência. Ser duplamente oprimido em um país que recusa a humanidade de negros e pobres; ser altamente ilustrado, mas marginalizado por decidir falar a verdade; ou ainda da aceitação e  não  aceitação  de suas  características  afrodescendentes;  de  estar  e  não  estar  ao  mesmo  tempo.

Tanto Lima Barreto quanto João do Rio lançaram suas palavras contra o perverso projeto de “progresso” nacional do início do século XX, que negou ao negro recém liberto os direitos básicos de cidadania, relegando-o às margens do tecido social e trancando-o em prisões. Assim, a ideia de democracia racial é fortemente contestada pelos escritores.

Recomendamos veementemente a obra do mestre Aciomar de Oliveira. Além da qualidade discursiva e retórica e do amplo corpus pesquisado, as indagações e considerações feitas pelo autor são de alta relevância e originalidade. Destaca-se ainda a atualidade das visões de Lima Barreto e João do Rio, pois as velhas formas de manutenção do poder – como golpes de estado, censura e autoritarismo – sobrevivem numa roupagem pouco diferemente de antigamente.

 

Belo Horizonte, 05 de março de 2018.

Referência

OLIVEIRA, Aciomar de. Entre o dilema e o silenciamento: etnicidade, memória e poder nas crônicas de Lima Narreto e João do Rio. Belo Horizonte: Poesias Escolhidas Editora, 2017.


* Harion Custódio é mestrando em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade.

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