Nova tradução para um velho bebedor
Alice Botelho Peixoto
Amos Tutuola, escritor nigeriano, ressurge no Brasil em nova publicação, pela Editora Carambaia, com seu consagrado primeiro romance repaginado desde o título. Agora foi traduzido como O bebedor de vinho de palma e seu finado fazedor de vinho na Cidade dos Mortos. Mesmo que as mudanças possam parecer mínimas aos olhos de um leitor comum, a narrativa, um tanto complexa e estranha por natureza, ganha fluidez com as escolhas e atualizações da nova tradução. Por exemplo, “palmeira", na antiga tradução distribuída pelo Círculo do Livro, na década de 1970, vem hoje como “palma”, “vinhateiro” foi substituído por “fazedor de vinho” e “morto”, por “finado”. Tais escolhas, mais familiares aos ouvidos do leitor brasileiro, dão maior fluidez ao texto.
A nova tradução, feita por Fernanda Silva e Sousa, doutora pela Universidade de São Paulo, no entanto, não tira a característica de estranhamento que a obra pode causar à primeira vista. Essa é uma narrativa potencializada por um universo peculiar – ou fantástico, ou mágico, ou extraordinário ou ainda exótico –, para a qual nós leitores ocidentais, talvez, ainda não estejamos preparados, mesmo depois de tanto tempo. A obra foi publicada pela primeira vez em 1952 pela editora londrina Faber and Faber e, desde então, permanece vivíssima, como dito por Wole Soyinka, intelectual também nigeriano. O livro continua causando impacto.
O bebedor de vinho de palma narra as peripécias do protagonista que se lança num longo caminho para resgatar seu fazedor de vinho, que caiu de uma palmeira e morreu, deixando o herói sem a sua preciosa bebida, o único líquido que ele conseguia beber. A trajetória do protagonista segue um percurso que ultrapassa tempo, espaço, vida e morte, conceitos fixos e lineares a que estamos acostumados. Viajando por matas, vilarejos e cidades, os personagens vão e vêm como criaturas estranhas e cruéis. Cenas de extrema violência são narradas como corriqueiras, como atos típicos, característicos daquelas criaturas específicas em suas cidades. O narrador, que é o próprio protagonista, sofre, sente medo, mas não se estranha e nem pode morrer. Um de seus feitos extraordinários é, justamente, vender a própria morte. Assim, a mágica, conquistada ao longo do caminho pelo uso de seus jujus, amuletos feiticeiros típicos de sua cultura iorubá, é capaz de salvá-lo, bem como à sua esposa.
A história é contada em primeira pessoa, à medida que os fatos acontecem, inclusive, com algumas poucas mas claras palavras, o narrador protagonista se dirige ao leitor. Embora o romance de Tutuola abale a concepção linear de tempo e espaço, os eventos que relatam a sequência de aventuras acontecem de forma cronológica, reiterando mitologias antigas sobre jornadas de heróis em busca de seus mortos. O texto é marcado por subtítulos que se sucedem na narrativa sem, no entanto, pausá-la, nem marcar uma nova seção. O romance mantém um fluxo contínuo de acontecimentos, no qual a trama se constrói por seus diversos episódios que narram as peripécias desse implacável e aventureiro bebedor de vinho.
Ao longo da trama, enquanto encontramos diversas referências à mitologia iorubá, o ambiente se reconstrói com elementos da cultura inglesa como marcadores do tempo cronológico e do espaço dividido em milhas que, nesta nova edição, são traduzidas em quilômetros. Além disso, insere o dinheiro como moeda-objeto de troca, nomeando o valor das coisas segundo a convenção inglesa da época, libras, xelins e pence, por exemplo. Mas não só, o trabalho aparece, na trama, como elemento ativo e transformador das relações interpessoais mostrando que, sim, este romance não é uma mistura ingênua de fábulas. Ele carrega seu teor crítico, ao encenar diversas formas de violência perpetradas pela prática colonial.
Além disso, fica destacado o tom poético da escrita de Tutuola pela apropriação e transformação de mitos, instaurando um ambiente sobrenatural e mágico típico de muitas narrativas africanas. A poesia em O bebedor de vinho de palma é também fruto de uma linguagem remexida pelos elementos de várias culturas. O enredo sobrenatural pede um leitor que compactue com a narrativa, que não é realista, no sentido estrito do termo, pois os limites do mundo material, tal como o conhecemos, não têm efeito nessa história. Não há oposição entre mortos e vivos, as criaturas existem vivas ou mortas, sendo espíritos ou humanos. “Nessa trama, o mundo é - e não precisa ser explicado”, como dito pela tradutora, em posfácio à edição brasileira atual. Mas é sobretudo em razão de uma linguagem com forte sotaque autoral que multiplicam-se críticas sobre O bebedor de vinho de palma.
Resumindo, considero-o como um romance de valor histórico, um clássico da literatura africana, para além das críticas e comentários. Abro aspas para dizer que foi o primeiro romance publicado na Nigéria, na língua do colonizador, por um escritor negro, autóctone, em um território do continente africano. Sigo sem aspas para dizer que dispenso os conflitos em torno do termo romance. Enfatizo a negritude desse corajoso escritor que, desafiando as fronteiras da língua inglesa, assim com as de sua própria cultura iorubá, criou e publicou este seu primeiro romance, pois é justamente nessa confluência de culturas que a magia da arte, da narrativa romanesca acontece.
A Faber and Faber, que ainda edita as obras do autor na versão original, traz, na edição de 2014, o prefácio do também consagrado intelectual nigeriano Wole Soyinka, que se refere ao romance do conterrâneo como uma busca “irreverente”, uma “zombaria heróica”, onde o sagrado Grahal é posto no terreno do vinho de palma. Esse é um dos tons que o romance pode assumir ao trazer à tona as marcas da oralidade iorubá. Num ambiente lúdico ou mesmo onírico, a existência ultrapassa concepções rígidas do imaginário ocidental, desafiando os limites mais intransponíveis, como seria o limite entre vida e morte.
Amos Tutuola nasceu em Abeokuta, no oeste da Nigéria, em 1920, e faleceu Ibadan, em 1997. Filho de agricultores, frequentou a escola apenas por seis anos. Exerceu diferentes ofícios, como o de ferreiro. Atuou, de 1942 a 1945, na Royal Air Force. Depois foi funcionário público no Departamento do Trabalho, quando começou a escrever. Apesar das controvérsias, esse primeiro livro de Tutuola tornou-se um clássico da literatura africana, com uma narrativa ainda hoje considerada inovadora, tendo se tornado-se arte literária cult.
Belo Horizonte, maio de 2025.
Referências
TUTUOLA, Amos. O bebedor de vinho de palmeira e seu vinhateiro morto na Cidade dos Mortos. Tradução Eliane Fontenelle. São Paulo: Círculo do Livro, 1970.
TUTUOLA, Amos. The palm wine drinkard and his palm wine tapster in the Dead’s Town. London: Faber & Faber, 2014.
TUTUOLA, Amos. O bebedor de vinho de palma e seu finado fazedor de vinho na Cidade dos Mortos. Tradução Fernanda Silva e Souza. São Paulo: Carambaia, 2024.
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* Jornalista, tradutora e pesquisadora de literaturas africanas independente. Colaboradora do grupo de estudos GEED. Doutora em literaturas de língua portuguesa pela PUC-MG, com tese intitulada Identidade, espaço e estratégias narrativas em romances africanos do Mali, Moçambique e Nigéria. É também professora de yoga, com pós-graduação em medicina ayurvédica. Atualmente, está em licença maternidade. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.