A escrita literária de Dina Salústio e Vera Duarte:
resistindo à persistência de um cânone de perspectiva masculina

 

Simone Caputo Gomes*

Imagens que reconheço mas que a câmara não captou como eu vi,
como vejo ainda. Outro olhar. [...] Eu, a mulher, questionando os papéis que a sociedade me impõe
Sara Almeida
1993

 

Resumo: Panorama histórico sobre a escritura de autoria feminina no sistema literário cabo-verdiano: impasses e resistências. De Antónia Gertrudes Pusich a Dina Salústio e Vera Duarte.Um outro olhar sobre o cânone: perspectivas, temas, denúncias, posturas, propostas. As antologias literárias ao longo da trajetória da literatura cabo-verdiana e a insistência de uma perspectiva masculina. A resistência das escritoras e das pesquisas e críticas acadêmicas à insistência patriarcal do cânone como expresso ns antologias.

Palavras-chave: Cabo Verde. Literatura de autoria feminina. Histórico. Novas perspectivas. Resistência.

Este artigo tem como ponto de impacto uma perplexidade: a constatação da insistência dos produtores de antologias (e com o destaque que é dado à poesia neste tipo de publicação), nos séculos XX e XXI, em caminhar na contramão da crítica universitária que faz proliferar ensaios, dissertações e teses sobre a escritura cabo-verdiana de autoria feminina; ao mesmo tempo, ressalta a resistência das autoras de pertença cabo-verdiana a uma perspectiva do cânone que as torna invisíveis.

Apoiando-me em um sintético acompanhamento histórico dos procedimentos de inclusão e, na maioria das vezes, exclusão da participação feminina no percurso da Literatura Cabo-verdiana até então documentado, passo a explicar as razões da minha perplexidade.

As antologias mais referidas pela crítica têm, com raras exceções, selecionado autoras, contando com alta percentagem de produção masculina. Em ensaios anteriores sobre a escritura de autoria feminina (uma de minhas linhas de pesquisa desde a década de 1990), já considerava como paradigmática desta tendência a Antologia da ficção cabo-verdiana contemporânea, organizada por Baltasar Lopes (1960), com 100% de textos de autoria masculina. Jaime de Figueiredo, em 1961, dentre 20 poetas, dava relevo apenas a Yolanda Morazzo, fato que se repetirá em seleção posterior de Manuel Ferreira (1975), em No reino de Caliban (Yolanda Morazzo entre 39 poetas)e de Castro Segóvia, no Panorama de lapoésieduCap-Vert (1980). Os Jogos Florais 12 de setembro de 1976 expõem 11 poetas, dentre os quais somente uma mulher, Vera Duarte.

Na década de 1980, a coletânea de poemas apresentados ao concurso do I Encontro de Jovens Escritores em São Vicente, 1981, contudo, é paritária: de 12 textos, 6 são de autoria feminina. Luis Romano, em Contravento: antologia bilíngue de poesia cabo-verdiana (1986), seleciona 37 autores, mas apenas uma mulher, Maria José Cunha, com um poema bilíngue de teor militante. Em 1988, Maria M. Ellen inclui, entre 36 poetas, 3 mulheres: Ana Júlia Sança, Yolanda Morazzo e Vera Duarte. Manuel Ferreira, em 50 poetas africanos (1989), volta à perspectiva integralmente masculina de Baltasar Lopes (1960), elencando somente poetas do gênero masculino.

Este movimento de atração e retração no que toca à presença feminina persiste nas décadas posteriores.

Na década de 1990, confrontando duas publicações próximas, a antologia Mirabilis: de veias ao sol, organizada por José Luís Hopffer Cordeiro Almada (1991), apresenta 57 poetas cabo-verdianos revelados após 25 de abril de 1975, sendo 6 mulheres; e os dois volumes de entrevistas com escritores organizado por Michel Laban (1992) ressaltam apenas uma escritora (desta vez, uma ficcionista), Orlanda Amarílis, entre 25 autores, num intervalo de mais de três décadas desde a antologia de Baltasar Lopes, o que, entretanto, não chegou a alterar muito a dominância da ótica masculina norecorte do cânone.

XoséLois García contribui marcadamente para a visibilidade da autoria feminina com sua Antologia da poesia feminina dos PALOP, 1998, em que inclui 7 poetas cabo-verdianas. A brasileira DeniraRozário organiza, em 1999, Palavra de poeta, antologia com entrevistas, destacando, dentre12 cabo-verdianos, apenas 2 mulheres: Yolanda Morazzo e Vera Duarte; Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, ainda em 1999, em sua Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX (Volume 2: Cabo Verde), ressalta 44 autores, dos quais 4 mulheres: as já citadas Yolanda e Vera, além de Ana Júlia e Dina Salústio.

No nosso século,na antologia Poesia africana de língua portuguesa (2003), Lívia Apa, Arlindo Barbeitos e Maria Alexandre Dáskalos,dentre 23 poetas,destacam 3 mulheres: Alzira Cabral, Dina Salústio e Vera Duarte. Na liberdade (2004), antologia poéticacomemorativa dos 30 anos do 25 de abril, em meio a 131 poetas (dos dois gêneros), apenas Vera Duarte comparece;Francisco Fontes reúne 32 poetas em Destino de bai (2008), sendo 9 mulheres (se forem incluídas as “improvisações visuais” de Elisa Schneble).Portuguesia: contraantologia, organizada pelo brasileiroWilmar Silva em 2009, elenca, dentre poetas de vários países de língua portuguesa, 7 cabo-verdianos, sendo 2 mulheres: Vera Duarte e Vivianne Nascimento.

Mais próximos de nós, Frederick Williams, em Poets of Cape Verde, edição bilíngue, apresenta, em 2010,textos de 35 poetas, sendo 4 mulheres.No mesmo ano, o brasileiro Carlos Alberto Faraco organiza um manual do professor voltado para o ensino médio (Português: língua e cultura), e inclui apenas 1 poeta de Cabo Verde: Vera Duarte. A coleção Horizontes insulares, de literatura e arte contemporânea, dirigida por Nilo Palenzuela(2010), elege também Vera Duarte como representante de Cabo Verde, com seus Exercícios poéticos traduzidosem espanhol e inglês. Ricardo Riso, em Cabo Verde: antologia de poesia contemporânea (2011), apresenta 13 autores, dentre os quais 6 mulheres, de forma mais próxima da paridade.

Amosse Mucavele, em sua antologia poética A arqueologia da palavra e a anatomia da língua (2013), equipara as autorias feminina e masculinaao elencar 10 poetas de Cabo Verde, dentre outros de língua portuguesa.Silvino Lopes Évora, na I Antologia dos poetas de Tarrafal de Santiago (2014), ressalta 33 poetas, dos quais 5 mulheres; Érica Antunes Pereira, Maria de Fátima Fernandes e Simone Caputo Gomes, dos autores que figuram em Cabo Verde: 100 poemas escolhidos (2016), destacam 7autoras; Helena Carvalhão Buescu e Inocência Mata, no entanto, referem apenas Vera Duarte em seus 2 volumes de Literatura-mundo comparada: perspectivas em português (2017); Rui Guilherme Silva e António de Névada incluem, respectivamente, 10 e 13 autores em suas antologias de poesia DiVersos (2009) e Poesia CV – Hoje, séc. XXI ? (2018).Nenhuma mulher, num movimento de retração absoluta que nos faz retroceder à década de 1960.

No Brasil, em 2019, Anita de Moraes e Vima Lia Martín selecionam poemas africanos em língua portuguesa cujo tema é o Brasil, destacando 1 poeta de Cabo Verde: Vera Duarte.

O que observo, num rápido olhar sobre este panorama, é a dominância evidente de uma escritura de produção masculina para o que se tem considerado como canônico, além de uma retração crescente no século XXI no olhar seletivo dos/das organizadores/as de antologias, um dos instrumentos indicativos do que se considera qualitativo para ser canonizado.

É claro que todo recorte do antologiador é subjetivo, argumento que pode imediatamente ser evocado e que pode justificar as seleções apresentadas.Contudo, desde a década de 1990 e, sobretudo, nesta virada para a segunda década do século XXI, obras de autoria feminina como as de Dina Salústio (com relevo para a sua ficção) e Vera Duarte (tendo por foco maior a sua poesia) têm se destacado no panorama nacional e internacional, obtendo prêmios e visibilidade considerável em eventos, festivais, dissertações e teses e outros dispositivos legitimadores no campo literário. Vale, também por isso, relembrar alguns dados históricos dessa trajetória ascendente, que não repete o movimento de total retraçãoquanto à presença feminina observado nasantologias organizadas por Rui Guilherme Silva e António de Névada.

A ressalva do organizador da antologia Mirabilis (1991), quando da apresentação do volume, demonstra consciência da “disparidade” que “emerge da condição sexual dos antologiados” poetas (e aqui faço uma ressalva teórica ─ do gênero social dos antologiados e não de uma “condição”), resumindo o que buscamos evidenciar: “Com efeito, a masculinidade é uma das características fundamentais da poesia escrita cabo-verdiana. Contrariamente à poesia oral [...], a presença feminina na poesia cabo-verdiana é bastante escassa” (p. 22).

Fazendo um retrospecto histórico para afirmar a necessidade de dar visibilidade cada vez maior à produção feminina (não tão “escassa” quanto se propala) na área das chamadas Literaturas Africanas em Língua Portuguesa e, especialmente da Literatura Cabo-verdiana, trago à memória uma importante mulher nascida na ilha de São Nicolau, comumente esquecida da crítica, eque inaugura as chamadas publicações africanas(“ultramarinas”) em língua portuguesa, antes mesmo do surgimento do prelo (1842) nas colônias: Antónia Gertrudes Pusich (1805, S. Nicolau-1883, Lisboa). Cabo-verdiana,filha do Almirante António Pusich, de origem croata, primeira mulher a assumir a direção e propriedade de um periódico, fundando ainda três revistas, foi poeta colaboradora do Almanach de lembranças luso-brasileiro (a partir de 1854) e do Almanach luso-africano.

Frequentadora da galeria das senhoras na Câmara dos Deputados em Lisboa, Pusich interessava-se por participar na vida política, dedicando-se à luta para a erradicação do obscurantismo intelectual em que viviam as mulheres da segunda metade do século XIX, militando pela conveniência da instrução feminina e em prol das viúvas e desvalidos.

Uma investigação atenta à produção literária de cabo-verdianos espalhados pelas sete partidas do mundo deverá retomar, obrigatoriamente, o nome de Antónia Gertrudes Pusich porque, como ressalta o renomado investigador Manuel Ferreira, da lavra desta cabo-verdiana surge, provavelmente, “a mais antiga obra literária de um autor africano” (FERREIRA, 1977, p. 13), o poemeto “Elegia à memória das infelizes victimas assassinadas por Francisco de Mattos Lobo, na noute de 25 de junho de 1844 (sic)”, publicado em Lisboa. Ressalvamos que Ferreira data o poema de 1844, mas, na verdade, o texto se refere ao crime cometido por Francisco de Mattos Lobo em 25 de julho de 1841, sendo estes o mês e o ano prováveis da publicação da obra de Pusich.

Assim, embora se afirme nos manuais mais conhecidos de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa que a publicação, em 1849, de Espontaneidades da minha alma, do angolano José da Silva Maia Ferreira, seja a primeira produção africana em Língua Portuguesa, a menção do trabalho de Antónia Pusich, intelectual que iniciou seus escritos literários e políticos por volta de 1841 e com publicações em jornais e revistas portugueses, realizando ainda numerosas conferências e outras intervenções públicas, já nos incita a um resgate de textos invisíveis no cânone em seu atual estado da arte, publicados por cabo-verdianas dentro e fora do arquipélago.

É ainda Antónia Gertrudes Pusich que funda e dirige, em 1849, em Lisboa, A Assembleia literária, periódicovoltado para o sexo feminino e um marco na divulgação da escrita de mulheres, já que a partir dele os nomes das autoras (e não mais pseudônimos masculinos) passavam a constar regularmente junto aos respectivos artigos. Na senda de Pusich, numerosas mulheres vieram a destacar-se nos jornais literários, de moda, noticiosos ou políticos, o que representou o início de uma luta pela sua visibilidade e pelo seu reconhecimento para além do agregado familiar, no espaço público.

Se nos reportarmos ao século XIX, os “almanaques” constituíam um repositório ou “miscelânea” de estilos vários (literárias, científicas, recreativas, históricas, jornalísticas) e interessa-nos destacar aqui a presença de cabo-verdianas nestas miscelâneas.

No Almanaque de lembranças luso-brasileiro 1851-1900 (volume 1), por exemplo, figuram (por ordem cronológica de aparecimento) Antónia Gertrudes Pusich, Emília dos Martyres Aguiar, Africana (Maria Luísa de Sena Barcelos), Adelaide Maria das Neves, Ida Loff de Fonseca, Carlota Lopes, Adela Nobre Martins. Humilde Camponesa (Gertrudes Ferreira de Lima).A edição organizada por Gerald Moser, Almanach de lembranças 1854-1932 (1988), acrescenta a esses nomes“Uma desconhecida” e Maria Christina Rocha.

No Almanach luso-africano, dirigido pelo Cônego António Manuel da Costa Teixeira, volumes de 1895 e 1899 (TEIXEIRA, 2011 a, 2011 b), podemos verificar também a maioritária participação de Cabo Verde e o destaque à presença das “Collaboradoras” ou“Senhoras”,acrescentando-se ao painel até aqui recortado os nomes de Antónia da Costa, Maria da Costa, Esperança de Jesus, Obscura Paulense e “Uma Sertaneja”.

Pelo exposto, pode-se verificar que as escritoras acima elencadas são praticamente desconhecidas da crítica, mulheres invisíveis em seu labor, que merecem uma pesquisa aprofundada da significação de seus textos e de suas intervenções na formação da Literatura Cabo-verdiana e na constituição de seu cânone.

Na geração do Suplemento Cultural, Sílvia Crato Monteiro também não é referida pela crítica, apenas Yolanda Morazzo.

Mais próximas de nós, outras autoras despontam, algumas com tímidas tentativas na Revista Mujer (da OMCV), outras com textos antologiados em Canto liberto (1981) e Mirabilis: de veias ao sol (1991) ou com livro próprio: Alice Wahnon Ferro, Alícia Borges, Ana Julia Monteiro de Macedo Sança, Arcília Barreto, Dina Salústio (Bernardina Oliveira), Eleana Lima, Eunice Borges, Lara Araújo (ou Madalena Tavares), Lídia do Rosári), Luísa Chantre, MG’Nela, Manuela Fonseca, Margarida Moreira,Maria Guilhermina, Maria José da Cunha, Maria Lídia do Rosário, Nely, Paula Martins, Vera Duarte.

Assim, como sintetiza Benjamin Abdala Jr.:“À identidade da nação soma-se a do assim chamado gênero. Não se trata apenas de representar Cabo Verde, mas de construir a maneira de ser das mulheres cabo-verdianas”(ABDALA JR., 1999, p. 16). Sara Almeida, em Depois telefono (novela), também faz a sua opção de recorte da realidade: “Se eu quero conhecer o meu país, devo identificar o maior grupo a que pertenço – as mulheres” (ALMEIDA, 1993, p. 79).

Um dos temas preferidos de nossas pesquisas nas últimas décadas tem sido a emancipação da mulher cabo-verdiana, sua importância no desenvolvimento do país e sua contribuição para a inserção de um outro olhar sobre o cânone literário de hegemonia masculina, com a assunção/revelação das subjetividades femininas, apesar de inúmeros obstáculos.

Sabemos que a alfabetização chegou tarde ao acesso das cabo-verdianas, recebendo incremento no pós-independência; é fato conhecido que,no arquipélago, grande número de famílias tem por chefe uma mulher, o que lhe toma grande parte do tempo e cuidado, restringindo-a ao espaço privado. Fatores econômicos, sociais, culturais e a maciçaemigração masculina de longo histórico têm impactado a fragilidade da família, com consequente instabilidade da mulher (e dos filhos menores). Dados do último censo indicam que a maioria das famílias cabo-verdianas habita as zonas rurais, particularmente tocadas pela pobreza, apresentando ainda baixo nível de instrução, escolarização e formação profissional.

Por mais que se tenha empenho na promoção feminina, a situação de vantagem do homem em relação à mulher na sociedade crioula é patente, derivada das referências ideológicas e dos valores cultivados num passado histórico e num ordenamento jurídico não muito distante, que impunham a superioridade masculina.

Na mais recente publicação do Instituto Nacional de Estatística Mulheres e homens em Cabo Verde – factos e números (2017),o que os dados deixam perceber em relação às esferas do poder é que o desequilíbrio de gênero é ainda gritante, não se vislumbrando em nenhum setor algo que se aproxime da paridade.Observemos: 23.6% de mulheres para 76.4% de homens no parlamento; 29% de deputadas municipais para 71% de eleitos municipais; 0% de mulheres presidentes de Câmara Municipal para 100% de homens; 35% de mulheres líderes de empresas para 65% de homens chefes de empresas, ou 11.1% de dirigentes femininas de ONG e ACB contra 88.9% de masculinos.

Esse painel corrobora o que verificamos no campo literário no que se refere às aludidas antologias, quantidade de edições femininas, premiações, enfim, dispositivos legitimadores de um sistema: a vigência do discurso hegemônico de gênero (o masculino).

Cabe, então, darmos destaques a escritorasvivas e em plena produção1 (e visibilidade cada vez maior) como Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina, juíza desembargadora nascida no Mindelo, detentora de vários prêmios como o atribuído pela Organização das Mulheres de Cabo Verde (OMCV), o Norte-Sul dos Direitos Humanos do Conselho de Europa e o Tchicaya U Tam’Si de Poesia Africana, tendo poemas traduzidos em várias línguas como alemão, árabe, espanhol, francês, holandês, inglês, sueco (além de originais em língua cabo-verdiana e língua portuguesa), alguns musicados e também objeto de diálogo com jovens poetas de Cabo Verde e do Brasil, que lhe dedicaram os livros Dialogando com a escrita de Vera Duarte (2015, Escola Secundária do Salineiro) e Combinando palavras com Vera Duarte (2014, Escola Estadual Otoniel Mota, Ribeirão Preto).

Outras se somam a Vera na produção de obras poéticas, como Artemisa Ferreira, BernardinaR. Alves, Carlota de Barros, Inestefânia Nogueira, Leopoldina Barreto, Madalena Brito Neves, Maria Helena Sato, Margarida Fontes, algumas com produção bilíngue (em português e em cabo-verdiano).

A produção em língua cabo-verdiana tem revelado poetas do grupo Versus na Kriolu (antologia, 2013) como Analina Rocha, Amália Faustino, Arlete Alana, Clenira Varela, Edmeia Semedo, Francisca Gomes, Indira Monteiro, Sabina Miranda e Zany Cabral, além de Misá (pintora e poeta, com livro publicado, D’amor i disintimento, 2007).

Como facilmente se verifica desse apanhado histórico que ora elaboro, a invisibilidade da poesia ─ e, acrescento, da escritura ─de autoria feminina é patente e tal fato merece reflexão e reversão.

Na prosa, a par de Orlanda Amarílis, já lembrada no livro de entrevistas de Michel Laban (1992), considero a obra de Dina Salústio como o grande marco do sistema literário, sobretudo a partir de seu texto inicial, Mornas eram as noites (1994).

Bernardina Oliveira Salústio, natural da ilha de Santo Antão é detentora de vários prêmios como o de Cultura da Quinta edição da gala “Somos Cabo Verde”(2019),de Tradução do PEN Club England (2018), o Rosalia de Castro para a Literatura em Língua Portuguesa, Espanha (2016), o Prémio em Literatura Infanto-juvenil dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (2000), o 1º Prémio de Literatura Infanto-juvenil de Cabo Verde, (1994). Professora, assistente social e jornalista, iniciou seu percurso literário pela poesia, na antologia Mirabilis, de veias ao sol (1991), enveredando depois pela narrativa breve (Mornas eram as noites e Filhos de Deus,contos/crónicas, 2018) e pelo romance (A louca de Serrano, 1998; Filhas do vento, 2009; Veromar, 2019). Produziu ainda textos para crianças e jovens: Estrelinha Tlintlim (2000) e O que os olhos não veem (2002, como coautora).

Na estreia literária, já abordava um tema recorrente na história das mulheres de todo o mundo, a violência de gênero, no poema “Apanhar é ruim demais” (SALÚSTIO In: ALMADA, 1991, p. 157). Na prosa, textos pungentes, candentes e resistentes, que “chutam o balde” da dominação (hegemonia) masculina (BOURDIEU, 2012) e se propõem a “virar o jogo” (como quer Vera Duarte, 2018, p. 84), compõem o universo de Mornas eram as noites (SALÚSTIO, 1994,contos/crônicas), A louca de Serrano (1998,romance), Filhas do vento (2009, romance), Filhos de Deus (2018, contos e monólogos), Veromar (2019, romance).

O recorte das histórias de mulheres contadas por elas próprias, na subjetividade de perspectiva, tem por mote a epígrafe da coletânea de 1994: “De como elas se entregaram aos dias”; e por postura o recado do seguinte texto: “Sete mulheres. Nenhuma médica, nenhuma pianista, nenhuma atriz, nenhuma assunto de notícia. Possivelmente nenhuma delas mulher má. E se incendiassem a cidade?” (1994, p. 29).

Dina Salústio retrata situações-limite, em textos que falam de liberdade, do grito e da resistência femininos, do machismo e das novas masculinidades, do lugar ideológico reservado à Mãe, da maternidade precoce e das crianças abandonadas, das mulheres viciadas em bebida, da prostituição, da loucura feminina, da violência contra as mulheres, da pedofilia, entre outros temas, alguns bastante provocativos para o contexto de sua estreia na ficção na década de 1990.

Para Daniel Spínola (1998, p. 205) Salústio “inaugura uma nova forma de comunicar e um novo modo de percepção do mundo” na ficção cabo-verdiana.

Acompanham Dina Salústio nesse painel da prosa de autoria feminina ─ que considero muitas vezes relegada pela crítica ─Vera Duarte (A candidata, romance, 2004, Prémio Sonangol; A palavra e os dias, crônicas, 2013; A matriarca: uma estória de mestiçagens, romance, 2017;Cabo Verde, um roteiro sentimental: viajando pelas ilhas da sodad, do sol e da morabeza , 2019); e Fátima Bettencourt, detentora do prêmio Eugénio Tavares da Crónica jornalística, AEC, 2006 (Semear em pó, contos, 1994; Um certo olhar, crônicas, 2001; Mar – caminho adubado de esperança, contos, 2006;Lugar de suor, pão e alegria, crônicas, 2008; Prosas soltas, 2016; Sonhos & desvarios, contos, 2019).

Menciono ainda autoras que se têm dedicado à prosa, nas modalidades conto, crônica e romance: Maria Helena Spencer, Ivone Ramos (Ivone Aida), Ondina Ferreira/Camila Mont Rond, Leopoldina Barreto, Jaqueline Torres, Eileen Almeida Barbosa, Sara Almeida, Dionisia Velhinho Rodrigues, Yara dos Santos, Eurydice, Mana Guta.

Em suma, na contramão das inúmeras lacunas observadas que podemos denominar de “memoricídio”, afirmo, com Vera Duarte:

Sim
um outro mundo é possível
sem estupros mutilações ou sequestros
sem humilhações nem discriminações
sem açoites nem mortes prematuras. (DUARTE, 2013, p. 42)

Resgatar o memoricídio(discriminações/mutilações) operado com relação às produções literárias femininas é o meu objetivo há longo tempo, inserindo-me na construção deste “outro mundo possível”, inclusivo e não vitimizador das mulheres referido pela poeta. Por tal motivo, vale a pena proceder a uma verticalização da pesquisa do vasto material oferecido pelas escritoras cabo-verdianas, para aquilatar as denúncias de um patriarcalismo repressor e violento, além de inferir as refrações e resistências que suas perspectivas podem imprimir ao cânone marcadamente masculino.

O poema “Sinais”, de Vera Duarte, pode ser lido como uma proposta de olhar o cânone cabo-verdiano e a trajetória das mulheres de forma diversa com relação à hegemonia patriarcal:

Pelo tempo por que passei
deixei gravados os meus sinais
d’insurreição, revolta e rebeldia
e d’alegria para lá da dor [...]
d’escrava amarrada ao tronco
esperando a cruel chibata [...]
de triste esposa submissa
obedecendo ao rude senhor [...]
pelo tempo por que passar
deixarei gravados outros sinais.(DUARTE, 2001, p. 57-58, grifos nossos)

Num poema panfletário, a poeta dá voz ao coletivo de mulheres, ela acrescenta:

Vieram todas
e vêm gritar
porquê?

Elas escrevem
e ninguém nomeia
porquê?

Elas governam
e ninguém reconhece
porquê? [...]

Elas são mulheres
de todas as cores
de todos os credos
que sabem dizer ao poder
todos os poderes
o que querem

Chutando o balde
virando o jogo
cuidando das crias

buscando água
carregando a lenha
superando todas as tragédias

Mas também
parindo livros
sonhando poemas
construindo pontes
esculpindo artes.
(DUARTE, 2018, p. 83-85, grifos nossos)

Todas as escritoras referidas vão, portanto, demarcando os “sinais” da longa caminhada feminina desde a restrição ao espaço privado até a conquista do espaço público na liberdade da escrita. Constroem, ao mesmo tempo, sua história e seu futuro: “A poesia escrita por mulheres/É profecia” (FONTES, 2013, p. 59).

Ao texto que se fez longo, pois que aponta para ensaios futuros, imprimo aqui uma pausa para reiterar, em coro com Dina Salústio, Vera Duarte e outras tantas vozes femininas que compuseram esta viagem, que vale a pena imergir neste mundo ainda a desbravar que é a escritura literáriacabo-verdiana de autoria feminina, tendo por parâmetro o mote que preside esta produção: “busco um outro começo/construo um outro futuro” (DUARTE, 2018, p. 18).

Notas

1 Originalmente publicado em revista Interdisciplinar: revista de Estudos em Língua e Literatura, v. 30: Ano XIII - jul-dez de 2018 | Dossiê Literatura e cultura cabo-verdianas, UFES, organização Simone Caputo Gomes e Christina Ramalho.

Obras poéticas: Amanhã amadrugada (1993), O arquipélago da paixão (2001), Preces e súplicas ou os cânticos da desesperança (2005), Ejercicios poéticos. Exercícios poéticos. Exercicespoétiques (2010), De risos & lágrimas (2018), A reinvenção do mar: antologia poética (2018). Em prosa: A candidata (romance, 2004, Prémio Sonangol), A palavra e os dias (crônicas, 2013), A matriarca: uma estória de mestiçagens (romance, 2017), Cabo Verde, um roteiro sentimental: viajando pelas ilhas da sodad, do sol e da morabeza (2019).

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* Simone Caputo Gomes é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC-Rio e Professora Sênior de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP. Pós-Doutorados (4) realizados, respectivamente, na Universidade de Aveiro, na Universidade de Lisboa (2) e na Universidade de Coimbra, nas áreas de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (em especial, Literatura Cabo-verdiana e História da Literatura) e Poesia Portuguesa Contemporânea. Autora de Cabo Verde – Literatura em Chão de Cultura (2008), e coautora das publicações: 100 poemas escolhidos (2016), Literatura Cabo-Verdiana – Seleta de Poesia e Prosa em Língua Portuguesa (2015).

 

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