Entre o ficcional, o real e a história em
O dia das calças roladas, de Germano de Almeida1

 

Anna Maria Claus Motta*

Roberta Maria Ferreira Alves**

Parece haver sempre algo de histórico espiando pela fresta da memória do escritor à espera de mostrar-se, ou melhor dizendo, reinventar-se através da escritura literária. Ao que tudo indica, também parece ser este o caso do cabo-verdiano nascido em 1945, na ilha da Boa Vista; advogado radicado na pacata cidade do Mindelo, pertencente à outra ilha do arquipélago, chamada de São Vicente. Apresentado e reconhecido como escritor desde 1991, aos 70 anos esse cabo-verdiano é Germano Almeida. O autor representa esse tipo de memória histórica que brota madura e crítica e vem escorrendo intermitente pela frincha memorialista, nascente de um rio que já desperta conhecedor do seu curso. Como homem político utiliza-se das próprias vivências, observâncias, experiências e aprendizagens de um período singular e rico em Cabo Verde – o da independência e pós-independência – para retratar a vida pública e privada de seu país, pela via da ironia e da sátira. Germano Almeida vai além de registrar o testemunho da vitalidade da cultura mestiça do seu país; representa a enorme capacidade criadora de seu povo que aprendeu a ser feliz, apesar de todas as adversidades. Numa técnica de resgate da beleza da literatura oral, Germano Almeida exerce sua crioulidade na arte de contar. Assim o autor registra o episódio d’ O dia das calças roladas: entrelaçando história, memória, ficção e realidade. No rastro desse caminho apontado estruturamos nosso estudo.

Já na “introdução”, nos deparamos com a seguinte afirmação do autor:

Não obstante o título, esta história não é de ficção: é a contestação popular à discussão do projecto (sic) da lei de bases da reforma agrária em algumas zonas do concelho (sic) da Ribeira Grande, Santo Antão, especialmente nos dias 30 e 31 de Agosto de 1981, contada a partir das declarações prestadas durante a instrução do processo pelos réus e pelas testemunhas. (ALMEIDA, 1999, p. 7).

Além disso, nela encontramos: o local e a data – Mindelo, Junho de 1999 – (ALMEIDA, 1999, p. 10), onde está contido o relato dos métodos de tratamento “pouco ortodoxos” (ALMEIDA, 1999, p. 7) “dispensados pela Polícia de Ordem Pública aos cidadãos civis involuntariamente embarcados no navio Damão e transportados da Ilha de Santo Antão para a Ilha de São Vicente, na condição de “presos políticos”; a forma – “... a pontapés e coronhadas e tropas de arma em punho ...” (ALMEIDA, 1999, p. 8), e a situação em que os presos se encontravam, quando lhes foi dada “ordem de prisão” – estivessem todos onde e como estivessem – e, imediatamente, foram transferidos para uma área militar, o “quartel de Morro Branco”; descrição de situações esdrúxulas que o fato proporcionou, como a negação da prisão desses cidadãos da parte do ‘comandante da Polícia de Segurança’ que, indignado e obstinado exclamava: - “Deus livre”, [...] “mas que ideia mais louca militares andarem prendendo civis, não se estava em estado de sítio” (ALMEIDA, 1999, p. 7) e aquela outra em que um dos presos, por ter apenas três segundos para sair e se entregar , “esqueceu-se dos dentes que dentro de um copo d’água repousavam à cabeceira da cama” (ALMEIDA, 1999, p. 8); e, finalmente, a comprovação de que o acontecimento não havia sido “boato” quando o comandante da Segurança tranquilizava a esposa preocupada em entregar a dentadura ao marido, assegurando-lhe que eles, os presos, além de ‘pasta de dentes recebiam’ “...farda, ...toalha... artigos de higiene ... e até dentes se for preciso ...”. (ALMEIDA, 1999, p. 9), ou quando, traindo-se, o Ministro do Interior, ao ser indagado em audiência pelo advogado António Caldeira Marques sobre a autorização para falar com um seu constituinte (ALMEIDA, 1999, p. 9), responde que esta lhe fora negada pela circunstância de o homem estar incomunicável (ALMEIDA, 1999, p. 10), e que apenas o referido advogado poderia vê-lo.

Nessas passagens, sentimo-nos motivadas a adentrar por uma porta de antemão escancarada, a da “ironia”, a fim de saber tudo da “história” que o narrador, de forma inteligente, iria contar. Mas não só: surgiram já, a partir da leitura da ‘introdução’, alguns questionamentos, como “que espaço é esse?”, “quem são os cabo-verdianos personagens cujas identidades estão sendo antecipadas?”, “como a memorialística é evocada por Germano Almeida?”, “como se apresentam a contação do real”, “qual o lugar da ficção que forma a casuística?”, e ainda, “por que a escolha do autor em enveredar por esse caminho – o do “tom” que antecipa o humor – indicativo para o projeto narrativo?”.

Analisemos duas assertivas, a primeira de Newton (1999): hypotheses non fingo (minhas hipóteses não são inventadas), e a segunda de Wittgenstein (1966): “as ciências nada descobrem: inventam”. A oposição entre as duas sentenças revela uma profunda modificação do nosso conceito de realidade e ficção, de descoberta e invenção, do dado e do posto. Com efeito, desvenda a perda de uma fé em realidade dada e descoberta. E mostra a realidade como ficção posta por nós. A sensação do fictício de tudo que nos cerca e do fingir como ato que rege a nossa vida, é tema da atualidade, da atualidade do autor e de nossa reflexão ao comparar narrativa e História.

Entre Pesquisa, Teoria e Ficção

Com o objetivo de responder às questões anteriormente formuladas, partimos primeiramente para a resposta à pergunta sobre “será que existiu esse período histórico significativo para a comunidade cabo-verdiana de Santo Antão?” Há documentos? Alguém mais registrou os fatos? O que diz a Carta Magna Cabo-Verdiana? Oficialmente os acontecimentos estão registrados, o evento deu-se em 31 de agosto de 1981, como afirma Nascimento (2004), no II fragmento abaixo: “(...) Podemos destacar as resistências à reforma agrária em agosto de 1981...” Além da afirmativa, o autor desse estudo afirma ser “verdadeira” a história da contestação. Selecionamos somente os parágrafos que elucidam o modelo político que os cabo-verdianos estavam vivenciando naquele momento de Primeira Constituição (1980). Tal seleção mostra a acomodação ou não dos movimentos sociais, uma vez que a sociedade experimentava há muito pouco tempo, seis anos apenas (1976), o que significa uma Nação e o aprendizado mais profundo do significado de Independência. Para maior compreensão da obra, consideramos importante dar a conhecer apenas os contornos desse panorama social, político e econômico real, que envolveu a Nação Cabo Verde, a partir dos fragmentos oficiais que se seguem:

I fragmento

[... ] Com a lei eleitoral publicada no B.O. nº 36, Suplemento, de 9 de Setembro de 1980, a primazia de apresentar candidaturas em cada círculo eleitoral, para cada grupo de 300 cidadãos eleitores recenseados [...] para pertencer integralmente ao PAIGC1, de acordo com o artigo 4º “não era permitida mais de uma lista de candidatos no mesmo círculo eleitoral [...]. (13).

[...] A 1ª Constituição da República de Cabo Verde foi aprovada a 15 de setembro de 1980, sem nenhum voto contra [...] De acordo com a natureza e os fundamentos do Estado, Cabo Verde definia-se, no seu artigo 1º como uma “República soberana, democrática, laica, unitária, anticolonialista e antimperialista” (14); [...] no seu artigo 3º como um “estado de democracia nacional revolucionária”;

[...] no artigo 4º o PAIGC e, posteriormente PAICV2, “como força política dirigente da sociedade e do Estado”, cabendo-lhe designadamente “estabelecer as bases gerais do programa político, econômico, social, cultural, de defesa e segurança a realizar pelo Estado”, e, ainda, “definir as etapas de reconstrução nacional “. O Estado, regendo-se do princípio de direção e planificação estatais, monopolizava o solo e as suas riquezas, os meios básicos da produção industrial, os meios de informação e comunicação, os bancos, os seguros, as infra-estruturas e os meios fundamentais de transporte. [...] Segundo o artigo nº12, o estado controlava o comércio externo e detém o monopólio das operações sobre o ouro e as dívidas [...].

[...] Relativamente aos direitos, liberdades, garantias e deveres fundamentais, em conformidade com o artigo 26º, “os cidadãos eram considerados iguais perante a lei”; a constituição estipulava que nenhum dos direitos e liberdades garantidos aos cidadãos podiam ser exercidos contra a Independência da Nação, a integridade do território, a unidade nacional, as instituições da República e os princípios consagrados na carta.

A referida carta constitucional estabelece no seu artigo 34º que todos têm direito à vida e à integridade física e moral, e que ninguém podia ser submetido a tortura nem a penas de tratamentos cruéis, desumanas e degradantes, estando excluída no país a pena de morte [...].

[...] o parlamento era tido como o órgão supremo do poder, “cabendo-lhe decidir sobre questões fundamentais da política interna e externa, definidas pelo PAIGC, eleger o Presidente da República [...].

II fragmento

Transição política em Cabo Verde, quando no balanço de dez anos da reconstrução nacional e da edificação do Estado Pós-colonial, a que no momento do acesso da Independência os mais pessimistas reconheciam fracas possibilidades de sobrevivência. A necessidade da reforma econômica emergiu progressivamente não obstante as verdadeiras fissuras no sistema se ter registado primeiro no domínio político na sequência da Independência, logo a partida começou a dar sinais de crises. Esses sinais tornaram-se visíveis a partir de 1979 [...].

O golpe de estado de 14 de Novembro de 1980 na Guiné-Bissau foi, também, uma crise que teve repercussões directas no contexto político cabo-verdiano, pois representou o fim do projecto de Estado binacional e determinou a criação do partido Africano para a Independência (PAICV) que permaneceu como partido único, força política dirigente da sociedade e do Estado nos termos do artigo 4º da Constituição da república como demonstram os movimentos sociais que tiveram lugar nos anos subsequentes, as bases sociais são cada vez mais frágeis. Podemos destacar as resistências à reforma agrária em agosto de 1981[...].

À abertura política em Cabo Verde, a 17 de fevereiro de 1990, regressaram à política activa muitos antigos... (NASCIMENTO, 2004, p. 8)

Comparando-os documentos (fragmentos I e II) com a obra – O dia das calças roladas – existe a possibilidade de verificarmos que, em ambos, as verdades coincidem; as formas de narrar é que se distanciam, bem como seus propósitos. O resgate da memória da História pela literatura confirma, através da narrativa de Germano Almeida, a maneira de garantir o acesso ao discurso não oficial – “estórias” alternativas e revisionistas – e, assim, não deixar morrer a História. É que o

discurso da história... as suas estratégias, os seus protocolos [...] não permanecem os mesmos ao longo do tempo [...] as suas mutações entram em correlação com outras tradições e mutações no universo ‘histórico da cultura [...] como actividade de produção de sentido ou de atribuição de sentido à experiência humana no tempo, ela faz parte da história que se fez, e que se faz no presente que se escreve ... (GUSMÃO, 2001, p. 183 – grifos nossos).

Ao nosso objeto de estudo, na mira d’O dia das calças roladas, alude o próprio autor:

A inconsistência do projeto de colonização, o próprio atraso da metrópole, o prolongamento da empresa colonial estão na origem das difíceis condições de vida em Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe (ALMEIDA, 1999, p. 13).

A inconsistência e o atraso da nação portuguesa a que se refere Almeida marcam fundamentalmente uma das duas alternâncias a que o colonizador português, distante da metrópole, por séculos se submeteu: ora comportando-se como “dono” e utilizando a voz de “Próspero” nas colônias, seguindo o projeto de colônia de exploração, ora como “Caliban”, aceitando a cultura do colonizado, a ela integrando-se e sendo por ela absorvido – “africanizando-se”.

Referindo-se a esse momento de Portugal como “metrópole-Caliban”, encontramos vasta análise no texto “Ser e Estar”, de SANTOS (2001), que o justificam. Quando voltamos o foco para a “Educação”, é possível verificar que, ironicamente, uma contradição da colonização portuguesa é que, ao se estabelecer uma comparação com os países acima nomeados e apesar do escasso empenho na educação formal nas demais colônias, Cabo Verde destacava-se positivamente naquele momento, pois “que apresentava um quadro educacional menos constrangedor; por outro lado, a pluralidade linguística, que poderia ser vista como sintoma da riqueza cultural, tornava mais complexa a situação dos países” (CHAVES e MACEDO, 2007).

Tutikian (2006), ao se referir a Cabo Verde, além de citar Germano Almeida como o grande nome do póscolonialismo, situa o arquipélago numa particularidade política privilegiada “ainda colonial”, pois que aos poucos a administração

[...] vai passando para as mãos dos cabo-verdianos. [...] além disso, a Independência constitui-se numa verdadeira revolução para Cabo verde, de desenvolvimento. Entretanto, a falta de prática com a Independência e com a autogestão terminam levando à privatização dos bens, e a estrutura econômico-financeira, de alguma forma, retorna a Portugal, e os problemas continuam os mesmos: a fome, a miséria e a evasão (TUTIKIAN, 2006, p. 43).

A opção de Almeida por deixar nascer o projeto O dia das calças roladas, dezoito anos depois do fato ocorrido, não invalida o peso que esse passado colonial impôs. Assegura, antes, a possibilidade de o autor trazer a público, para conhecimento e reflexão, ao nível da literatura, as responsabilidades assumidas pelas elites que ocuparam o poder com o propósito de construção da Nação e que – naquele momento – tomavam para si, também como protagonistas, o papel que contribuiu para a desagregação, o descontentamento ou a incompreensão, por um lado e, por outro, a intolerância e a arbitrariedade, que se instalou no seio da população cabo-verdiana, “no dia 30 de Agosto de 1981 no sítio de Figueiral da vila de Ribeira Grande da ilha de Santo Antão” (ALMEIDA, 1999, p. 13).

Sobre a relação, presente, passado e futuro, reflete Gusmão (2001, p. 185): “O presente é a fronteira sempre móvel do que designamos como passado e a constante chegada e afastamento do futuro que virá sempre depois”. Na narrativa, as categorias “tempo e “espaço” emergem de forma tão contingentes de percepção historicamente enraizadas, que estão intimamente ligadas entre si de maneiras complexas.” (HUYSSEN, 2000, p. 10). A rememoração do acontecimento na Boca do Figueiral, mais tarde (re)conhecida como “ Campo de Batalha”, o lugar onde se deu o “encontro” (ALMEIDA, 1999, p. 14), “entre as tropas do governo que vinham da Vila da Ribeira Grande e os civis que estavam do outro lado da ribeira a caminho da vila.”(ALMEIDA, 1999, p. 14), o passado parece ser exorcizado no presente da narrativa, e reconstitui – no espaço e nos personagens – um outro tipo de relação, mais pensada, mais compreendida, mais aprofundada, mais distante e, ao mesmo tempo, mais próxima.

Entre o registro da história e a contação das estórias: Hoje é dia de festa de Calças Roladas

É com esta fala, “Hoje é dia de festa de calças roladas”, que o autor anuncia e confirma que vai contar, como narrador em primeira pessoa, uma história com “h” (ALMEIDA, 1999, p. 75), a prisão, seguida de espancamento, sevícia e privação dos direitos mais elementares de dezesseis cidadãos acusados de terem liderado a “revolta” do dia 30 de Agosto de 1981, que ficou registrada, na História de Cabo Verde, como as “resistências ao Projeto de Lei da Reforma Agrária em agosto de 1981”, e na literatura como O dia das calças roladas. Germano Almeida assegura ao leitor que obedecerá “[...] o mais estritamente possível os depoimentos e diversas versões, ainda que entre si contraditórias, das dezenas de pessoas que viriam a ser ouvidas durante a instrução do processo judicial relativo aos desacatos. ” (ALMEIDA, 1999, p.13)

Conhecedor de Leis que é, Almeida utiliza-se não só do vocabulário específico do Direito, sempre que necessário, como também da sua vivência na advocacia para contar, de forma o mais impessoal possível, lembrando sempre ao leitor, pela voz do narrador e a cada versão recontada, que ele se limita

a contar como aconteceu, ouvindo as razões de todas as partes, nada comentarei a respeito, cada um que conclua como quiser, nada tenho com isso, já bem me basta a responsabilidade de narrar ... Mas mesmo diante dessa brutalidade recuso em tomar sobre mim os fardos de contar e também concluir. (ALMEIDA, 1999, p. 17-18)

Com a declaração: – Li e ouvi e também vivi (ALMEIDA, 1999, p. 15), além de o texto fornecer marcas autobiográficas, num compromisso de deixar viver a história, o narrador justifica as muitas vozes, que nesses casos são muitas, e também muitas são as conclusões, “lindas e saborosas” (ALMEIDA, 1999, p. 18). Como afirma Gusmão (2001, p. 191), “a história não tem um sentido [...] Ela é antes o campo do confronto entre diferentes possíveis ou ‘diferentes possibilidades reais’”, pois

no meio de uma abundante trapalhada de informações, ninguém poderá, por capaz que seja, separar o milho da grama, o boato da notícia, o verdadeiro do falso, e apresentar a nua e crua e absolutamente incontestável toda a verdade sobre “os dias das calças roladas”... porque cada parte e cada um a seu modo, segundo a sua própria visão das coisas e, por que não dizê-lo!, segundo o seu próprio interesse, puxando a brasa para a sua sardinha, todos querendo ser defensores, todos querendo ser vítimas, todos querendo ser heróis (ALMEIDA, 1999, p.31).

Apesar de todo o esforço em tentar cumprir o propósito de atuar como narrador imparcial, ao narrar algumas versões das várias histórias, este não se contém, intervém como autor implícito e exclama – “Pobre Bibino!” (ALMEIDA, 1999, p. 35), referindo-se à personagem a quem fora atribuída ser “a alma danada de toda aquela conspiração ...” (ALMEIDA, 1999, p. 35) – “Pobre Bibino! Impendiam sobre ele duas não expressas acusações, qual delas mais grave que a outra: ser desertor das fileiras do PAIGC e posteriormente agente da PIDE2” (ALMEIDA, 1999, p. 37). Em outra ocasião, seu “eu interior” se denuncia: “Eu pessoalmente penso que qualquer coisa devia andar no ar.” (ALMEIDA, 1999, p. 60).

Ou, então, reforçando, quando em caso de dúvida, o narrador esclarece: “Eu disse a princípio que não queria comentar nem tomar posições, quero agradar gregos e troianos, não desejo ficar de mal com ninguém” (ALMEIDA, 1999, p. 54).

A estrutura narrativa de O dia das calças roladas constitui-se em oito capítulos, todos destinados a narrar as variantes conhecidas da história, fatos referentes ao título da obra, que se reduzem a duas fundamentais. A primeira, uma tentativa inglória de um grupo de cidadãos indignados pelo que consideravam injustiça do governo, buscando forçar a libertação dos três detidos da véspera, que depois viriam a ser julgados, eles e mais uns tantos, no tribunal popular de Coculi (ALMEIDA, 1999, p. 14): – “Queremos a libertação dos nossos presos!, gritavam [...]” (ALMEIDA, 1999, p. 133). A outra história que “se lhe seguiu foi a de ‘o julgamento da Reforma Agrária’ que se disse sua consequência, embora não tivesse ficado provado ter alguma coisa a ver com a outra, pelo menos directamente” (ALMEIDA, 1999, p. 14). Entre uma e outra, o real e o ficcional se entrelaçam nas muitas outras versões que vão surgindo no decorrer da contação, pois “quem conta um conto acrescenta um ponto.” esclarece o narrador (ALMEIDA, 1999, p. 37). Germano Almeida utiliza-se desse recurso para assumir no seu romance, além da documentação, os “embreantes de escuta, toda menção das fontes, dos testemunhos”, a que se refere Barthes (2004), em O rumor da língua.

No projeto, a forma encontrada por Germano de apresentar ambas as histórias foi a de não omitir os próprios nomes dos envolvidos, uma vez que o autor considera ser esta uma das características identitárias do povo cabo-verdiano, “conhece sua gente”; logo diriam: “sobre o quê? É que nós temos a mania dos nomes, os nomes como que nos situam, nos trazem à memória não apenas os locais, mas também datas e outros eventos. (ALMEIDA, 1999, p. 14).

Ao trazer à tona da narração os nomes próprios, esses passam a funcionar como alerta da memória adormecida do povo que passa a evocá-la, colocando em xeque não somente as verdades dos fatos e as contradições das declarações anteriores dos personagens, tanto do lado do governo como os do lado da Reforma Agrária, como o de Bibino, personagem tomado aqui como exemplo: anteriormente, Bibino “havia prometido” erigir no local da refrega um “monumento de cimento em memória do mártir”, de nome Adriano – jovem trabalhador que, entende-se no decorrer da narrativa, morrera de “bala perdida”. A tragédia, entretanto, naquela data histórica, fora aproveitada pelo Governo ou pelo partido político, o Partido Africano da Independência de Cabo Verde, PAICV, como “aquele” que se sacrificara pela causa. A promessa da construção do monumento sabe-se contradita durante o julgamento e justificada pelo próprio Bibino, uma vez que o declarante “se explica pelo fato de ter prestado estas[declarações] sob o peso de torturas físicas. ” (ALMEIDA, 1999, p. 15).

O “(re)encontro” ou “encontro”, como quer o narrador, além de servir para contar as histórias já mencionadas, é utilizado pela literatura para denunciar o “caso que profundamente abalou as bases do PAICV em Santo Antão e chegou a fazer tremer muito militante na sua fé política...” (ALMEIDA, 1999, p. 15). Partido político, o PAICV, era o único e, consequentemente, era governo na ocasião. Ainda com os rumores sobre a causa do “golpe de Estado” de 14 de Novembro de 1980 na Guiné” fervilhando (ALMEIDA, 1999, p. 21) os integrantes do Governo de Cabo Verde, ao perceberem o significado do “poder”, ‘tentaram iniciar um novo e diferente período muito mais a sério’ (ALMEIDA, 1999, p. 23). Assim manifestaram a indignação pelos maus tratos dedicados aos cidadãos cabo-verdianos que lá se encontravam, então, como “quase irmãos”; o impossível olvido da data que colocou por terra a (aparente) vontade de união entre Guiné Bissau e Cabo Verde, que desde a Independência de ambos vinham construindo, “obra que vínhamos pacientemente empreendendo há mais de vinte anos ...” (ALMEIDA, 1999, p. 21); Atuar como Governo impõe resoluções, e muitas, ao que o texto indica, foram tomadas com urgência. Primeiramente,

mudanças e grandes e profundas ... desde logo a necessidade de arranjar cargos para os sobrantes do golpe... que por serem importantes, não se lhes podia dar empregos de segunda classe... ou dirigindo uma empresa pública [...] como se sabe, empresa pública é panacéia para todos os males do desemprego[...] ou criar-se emprego para alguém. (ALMEIDA, 1999, p. 24-25).

Concomitantemente, foi tomada a decisão de comunicar à população, via Ministro, na Rádio,

que só existe uma única moral revolucionária, ...que é necessário dar atenção à segurança interna e à defesa nacional – todas as esperanças de liberalização esfumaram. Entendeu a população que “agora é preparar o lombo” [...] pela melhoria dos serviços prestados, especialmente na qualidade do pau distribuído. (ALMEIDA, 1999, p. 27 – grifos do autor).

Liberdades cerceadas, cidadãos avisados, inaugurou-se no país um período, segundo o narrador, de exacerbações, de abusos por parte das autoridades: “Agora prendia-se, levava-se ao quartel e coçava-se devidamente, por turnos, com eficiência e prontidão.” (ALMEIDA, 1999, p. 28).

Outra medida considerada pelo governo fundamental, em benefício da população, foi a tentativa de implantação da Reforma Agrária. A ideia do projeto vinha desagradando em muito a camada “beneficiária” que demonstrava insatisfação. “Diziam que é autêntico comunismo; que estamos ao serviço da Rússia [...]Queriam ainda apenas dizer não à Reforma Agrária [...] Porque é um dado que em Santo Antão a terra é como uma pessoa da família, quem ataca a terra está a minar a base da família”. (ALMEIDA, 1999, p. 56-57). Na ocasião, foram designados alguns funcionários do governo responsáveis por reverter a situação negativa, pela doutrina. Ao que tudo indica, essas pessoas simples e pouco instruídas, não se encontravam, naquele momento, preparadas para o diálogo, o convencimento ou a argumentação; perderam a paciência com o povo reunido, e escapou-se-lhes logo de início o controle das manifestações. Entre os homens escalados para tal missão, estava o “camarada Franklin Winston, agricultor e deputado” que gritara em meio à confusão formada, sem mais argumentos senão os do poder: [...] “faremos a Reforma Agrária porque temos armas, tropas, cadeias e cemitérios.” (ALMEIDA, 1999, p. 56)

O ambiente na sociedade encontrava-se propício para os tumultos que ocorreram. Apesar de os casos terem ocorrido de forma isolada, acabaram sendo reunidos em um só processo: cidadãos presos, julgados e condenados por quererem libertar os amigos, e a reação da população ao negar peremptoriamente a tentativa do governo de implantar pela força a Reforma Agrária. Em ambos os casos a voz da razão e da Justiça consagrou-se uma só: a do Governo. Nos autos do julgamento dos malfeitores condenados pela desordem promovida no Dia das calças roladas ficaram apenas registradas as “vozes da Justiça”, nunca as dos depoentes: “O acórdão do Supremo Tribunal Militar que julgou o recurso interposto confirmou a sentença e todas as penas.” (ALMEIDA, 1999, p. 36).

A proposta literária de Germano Almeida, calcada em dados históricos, apega-se à memória do vivenciado e presentifica fatos importantes que ocorreram num passado próximo. As personagens de ambos os lados ou ideologias opostas são retomadas, criam vida, movimento, graça e voz na oralidade, recurso presente em toda a narrativa, como observamos na declaração injusta e caluniosa a Joãozinho de Marcos, feita por Augusto, quando em tribunal denuncia: – “com alta probabilidade ex-agente [...] e que apanhou, para além de bastante pau e algum choque elétrico, 9 anos de prisão” (ALMEIDA,1999, p. 42). Ou quando, na praça da Igreja de Coculi, o topógrafo Delgado, na tentativa de convencer o povo ali reunido, para aceitar a Reforma Agrária, diz: – Camaradas! A palavra não soa bem aos ouvidos da comunidade, e é Carolino Fortes quem retruca: “ ‘camarada’ só se usa na Rússia e em Cuba; que isto é um autêntico comunismo; é a Rússia a mandar aqui...” (ALMEIDA, 1999, p. 57). Ou na humilhação sofrida por Augusto, membro do governo, responsável político da zona para explicar – sem saber - o que era a Reforma Agrária; como os outros membros não haviam comparecido, e sem saber mais o quê fazer, tenta fugir, “mas infelizmente foi logo perseguido, recapturado, preso pelas orelhas, devolvido ao seio da população aparentemente ávida de ser esclarecida” (ALMEIDA, 1999, p. 33). Ou ainda na crítica à fala do

senhor Ministro do Interior por ocasião da 1ª Conferência Nacional do sector Sindical dos Marítimos, Metalomecânicos e Correlativos: - a nossa Constituição reserva a cada cidadão o direito de ter a sua ideologia e até o direito de exprimi-la e até de a de discutir, porque há direito de expressão, há direito de discussão (ALMEIDA, 1999, p. 19).

A voz do narrador aparece como a “grande protagonista”. É ele quem “tempera” e “retempera”, com recursos da ironia, sons e entonações próprias da oralidade, sem pressa e com o gosto do riso – aquele Agosto já vai longe – os momentos efêmeros, mas significativos de 1981, e que podiam ter permanecido esquecidos pela história, ou terem passado desapercebidos. Esses acontecimentos são trazidos ao presente na forma de inteligente “denúncia literária”. Germano parece divertir-se com a rememoração das situações enunciadas. Diverte-se e diverte o leitor, como na crítica que faz o narrador aos “ministros”, ao comentar que:

[...] o cargo é chato e espinhoso e insone, para além de muito mal pago. Mas como na verdade o homem só deseja o mal para si próprio, todos almejam essas insônias e chatices e uma vez lá chegados fincam de pedra e cal, pior que cimento armado, e pelas boas ninguém quer sair (ALMEIDA, 1999, p. 25).

ou ainda, o narrador permite-se ressaltar a venalidade e arbitrariedade do

Supremo Tribunal Militar que julgou o recurso interposto confirmou a sentença e todas as penas. No entanto, e com cinismo pouco comum nos meios judiciais que sempre se preocupam em apresentar um ar de circunspecção (sic) e distanciamento, ressalvou com candura que “na aplicação concreta de pena os julgadores, no acórdão recorrido, usaram de uma certa benevolência” (ALMEIDA, 1999, p. 36).

Ao término da leitura de O dia das calças roladas, destacamos mais uma vez a voz do narrador como a responsável primordial pelo tom de leveza da narrativa, embora ela esteja permeada por humor implícito, ou declarado, pela sátira da situação, pela acidez na clareza da linguagem ao abordar temas tão graves e dramáticos. Finalmente ressaltamos, em todo o percurso da narrativa, a tensão entre o discurso da verdade histórica e a “verdade” da ficção, do discurso literário.

Notas

1 Publicado em: Claus Motta, A. M., & Ferreira Alves, R. M. (2018). Entre o ficcional, o real e a história em O dia das calças roladas, de Germano de Almeida. Cadernos CESPUC de Pesquisa. Série Ensaios, (32), 9-19. https://doi.org/10.5752/P.2358-3231.n32p9-19

2 PAIGCV - Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, também conhecido pela sigla PAIGC, foi o movimento que organizou a luta pela independência da Guiné Portuguesa (Guiné-Bissau) e de Cabo Verde, que eram colónias de Portugal.

3 A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) foi a polícia política portuguesa entre 1945 e 1969, responsável pela repressão de todas as formas de oposição ao regime político vigente. Para além das funções de polícia política, a sua atividade abrangia igualmente o serviço de estrangeiros e de fronteiras.

 

Referências

ALMEIDA, G. O dia das calças roladas. Lisboa: Caminho, 1999.

BARTES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 164- 165.

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¹Anna Maria Claus Motta é Mestre em Literatura de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Vínculo de trabalho: Professora de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, no Curso Superiore – Liceo Delle Scienze Umane., na Escola Internacional Fundação Tourino, em Belo Horizonte. Estudiosa das obras literárias de autores africanos de língua Portuguesa, cujas narrativas ressaltam conteúdos com as marcas da História, Identidade, Memória, Realidade, Ficção e da Oralidade, em diálogo com as obras literárias, de autores brasileiros e estrangeiros.

²Roberta Maria Ferreira Alves é professora da Universidade dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM. Pós-doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Doutora em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Coordenadora do Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas (GEED). Coorganizadora com Wellington Marçal de Carvalho do livro: Deslocamentos Estéticos (2020) e integrante da Comissão editorial do literÁfricas.

 

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