Sob a Égide de Antígona:
a dimensão trágica do lirismo de Vera Duarte em O Arquipélago da paixão1

 

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Seccoi


Não nasci para o ódio, apenas para o amor.
(ANTÍGONA. Apud: LESKY, 1971, p. 132)

 

1. O Fervilhar das Paixões...

Fechemos as cloacas fétidas da cidade e deixemos inebriarem-se os ares de recendidos perfumes estivais. É o preço da liberdade. Palmeiras ao sol e longas praias de areia molhada a manterem desperto o fervilhar anímico das paixões. A voz da libido. Em toda a sua violência incontrolável. (DUARTE, 1993, p. 55).

No belo prefácio ao livro O Arquipélago da paixão, de Vera Duarte, a estudiosa brasileira da literatura caboverdiana Simone Caputo Gomes afirma que a obra realiza um "projeto que contempla os níveis existencial, nacional e universal, sob o signo da Paixão. Paixão que domina e liberta, paixão do eu, paixão do outro, paixão-mulher; Paixão do Arquipélago, Arquipélago de Paixão". (GOMES, 2001, p.7).

Nossa leitura também irá estudar, no discurso poético de Vera Duarte, as múltiplas faces e os sentidos da paixão, privilegiando a análise desta a partir de sua dimensão trágica, ou seja, daquilo que "coloca o ser humano em questão".

Desde seu primeiro livro Amanhã amadrugada (1993), Vera Duarte penetra nas profundezas interiores do universo feminino, buscando libertar as paixões reprimidas no inconsciente da maioria das mulheres de Cabo Verde. A poesia da autora se insere no conjunto da produção literária caboverdiana dos anos 1990 e 2000, marcada por um certo desencanto. Integra a antologia Mirabilis: de veias ao sol[ii], organizada por José Luís Hopffer Almada, que reúne a “poética caboverdiana” produzida após o 25 de Abril. O não cumprimento das promessas de justiça social, depois da Independência, havia gerado no contexto social caboverdiano um desalento que se infiltrara também nos meios literários. Contudo, inspirando-se na mirabilis, planta que resiste à secura dos desertos, uma nova geração chamada "mirabílica" surgiu, nos anos 1990, com a proposta poética de resistir "aos maus ventos literários", efetuando reflexões críticas acerca do presente do Arquipélago:

Fustigada pelos ventos (da incompreensão!), pelo sol (da hipocrisia!), pelos tempos vários do mau tempo literário, desse tempo querendo-se vegetação literária. No deserto, cresce a geração mirabílica, feita signo na margem desértica do mar. De veias ao sol. As veias da indagação. As veias alagadas da terra das estradas, da poeira do dia-a-dia, do massapé dos campos, do lixo dos caminhos suburbanos, do desespero recoberto de moscas, baratas e outros vermes. As veias loucas do mar, do marítimo lirismo dos dias afogados nos ciúmes dos montes. As veias, veias de vida, de morte, de desespero, das quatro estações místicas do que se medita no refúgio do silêncio. Veias do camponês e da enxada neste coito de séculos com a terra. Ao sol, hipócrita por entre a bruma e os cerros. Sol, signo de luz. Sol que ilumina. Sol que queima e ofusca o caminhar. Sol dependurado da perseverança secular. Mirabilis _ de veias ao sol. Geração mirabílica indagando o sol. “No Deserto cresce a Mirabilis". (ALMADA, 1991, p. 26-27).

Entre as vozes poéticas dessa geração, destaca-se, entre outras, a de Vera Duarte, reivindicando o direito das mulheres à eroticidade do corpo e do discurso, fundando, assim, um universo lírico marcado pela “cumplicidade das fêmeas” (GOMES, 1993, p. 63), no qual a mulher almeja ser sujeito de seu próprio desejo:

(...) choro da dor de me saber mulher feita não para amar mas para ser amada. Choro porque sou e amo. (...) Sinto-me escravizada, tiranizada, violentada. E meu ser nascido livre se revolta. (..) Por isso quero desvendar os universos proibidos e purificar-me. (DUARTE, 1993, p. 40).

Com essa poiesis de contestação da submissão feminina, o eu-lírico rompe com a idéia do “cais da saudade” (“cais da sôdade”, em crioulo) que sempre cingiu as mulheres caboverdianas ao espaço circunscrito das ilhas. Assumindo um tom narrativo, o sujeito-poético mergulha em uma poesia confessional e autobiográfica que instaura uma “escrita de mulher”. Escrita que se rebela contra a longa espera das “mulheres-sós de Cabo Verde” (SANTILLI, 1995, p. 107) a que se referiu a Profa. Maria Aparecida Santilli ao fazer uma crítica ao machismo caboverdiano.

Nos poemas de Amanhã, amadrugada, a voz lírica no feminino não se encontra na terra, mas flutuando no imenso mar, símbolo de sua memória e do imaginário coletivo de seu povo:

(...) eu penetrava no mar, um mar verde e lodento que se me escorregava debaixo dos pés e me causava náuseas. com a água pela cintura e os braços em arco, passava por entre os barcos de minhas viagens de antanho, marinheiro descobridor do mundo (...) (DUARTE, 1993, p. 54).

Realiza, desse modo, uma travessia em relação às próprias origens. O mar é o local da busca da identidade caboverdiana, mas é também o espaço da liberdade existencial onde a poesia feminina se descobre. Uma poesia dialógica, à procura do amante e do leitor, em que os versos, em cópula constante, fazem a libido se derramar e brotar do próprio ato de produção da leitura que se abre a reflexões metalinguísticas: “Para que servem as palavras? Para flutuar, perdida à mercê delas?” (DUARTE, 1993, p. 38). A mulher-poeta se quer senhora não só de seu corpo, mas também de sua linguagem, porque toma consciência de que só pode pensar o mundo e a si com o domínio das palavras.

Neste primeiro livro de Vera, a mulher-poeta ainda se encontra sob os efeitos da descoberta incontrolável de seus próprios desejos, sob as pulsões do "fervilhar anímico das paixões", à espera de um amanhã prenhe da liberdade das sonhadas madrugadas...

Já, em O Arquipélago da paixão, embora o sujeito lírico no feminino continue seu cântico de libertação da mulher, reflete, com mais maturidade, sobre as próprias paixões e as do Arquipélago, buscando não o "fervilhar anímico" destas, mas a plenitude de Eros. Como Antígona, procura, assim, o Amor e não o ódio.

2. Nas Malhas de "Páthos"...

Castração é perda, é falta, é limite imposto à onipotência do desejo. (KEHL, 1987, p. 477).

Acumpliciando-se, de início, à figura de Antígona, a voz poética feminina de O Arquipélago da paixão, desde a dedicatória escolhida para pórtico do livro, adota a emblemática rebeldia dessa personagem grega de Sófocles, inserindo sua poiesis na dimensão das paixões. Nutrindo-se do "páthos", essência da atitude trágica face à existência, o eu-lírico põe em questão não só os desejos e sofrimentos amorosos da mulher-poeta, mas também as amarguras das mulheres caboverdianas em geral e as dores sociais do povo do Arquipélago.

Iniciamos nossa análise, lembrando que as paixões se encontram intimamente relacionadas ao trágico. Etimologicamente, a palavra paixão vem do latim passio, passionis, significando tanto suplício (Paixão de Cristo), como affectus (TORRINHA, 1945, p. 609). No mesmo campo semântico do páthos grego, refere-se tanto às aflições morais mobilizadoras das tragédias, como aos padecimentos amorosos[2] que tornam os amantes cativos dos próprios sentimentos.

Desde a Antigüidade Clássica, sempre houve uma grande oposição entre duas filosofias da paixão (NASCENTES, 1966, p. 544): a de Aristóteles, aparentemente mais condescendente, que tratava a paixão como impulso, como um elemento inerente ao ser humano e à sua práxis; a do estoicismo platônico que concebia a paixão como uma forma de ascese, através da qual os homens podiam purificar-se. É clara nessa última concepção a cisão entre a razão e a paixão, sendo esta considerada como "desvario", "cegueira", "loucura". Ao impulsionarem os seres em direção a conflitos existenciais ou sociais irreconciliáveis, as paixões se apresentam como o fundamento das tragédias. Não foi à toa que Platão, considerando estas por demais perigosas, as baniu de sua República ideal (LESKY, 1971, p. 23). E, durante muito tempo, o passional foi associado ao patológico, ao vício e ao pecado. O trágico, condicionado pela visão do estoicismo, foi, então, convertido em exemplo moral de expiação de culpas humanas que infringiam o mundo dos deuses.

Com as tragédias de Sófocles, entretanto, emerge um novo conceito de trágico. Este passa a dizer respeito à solidão do homem consigo mesmo. Os heróis do teatro de Sófocles não mais se encontram submetidos aos ditames divinos. As ações e comportamento deles não mais se explicam pelo determinismo de um destino comandado pelos deuses. O Agon, o Páthos – a essência dessa nova forma de tragicidade – se faz expressão do conflito entre personalidades, humanamente assumidas em seus vícios e virtudes. Embora os deuses ainda estejam presentes, eles não intervêm nas atitudes e sentimentos humanos. Os homens estão sozinhos com suas paixões e precisam demonstrar sua força e coragem para enfrentarem a própria existência. Antígona, de Sófocles, é exemplo de uma dessas personagens fortes. Mesmo como mulher, ser considerado inferior para a sociedade grega da época, luta com altivez para preservar os sagrados valores de sua dinastia, preferindo ser sepultada viva a ter de deixar o cadáver do irmão sem um túmulo digno. Indo contra as leis do Estado, Antígona erige-se como símbolo de uma oratória rebelde, feminina, numa Grécia, cujo Logus era eminentemente masculino.

Inspirando-se na força dessa heroína grega, alegoria da incomensurável dimensão trágica de que pode ser também capaz uma fêmea, a poiesis de Vera Duarte, concedendo voz, o tempo todo, a um sujeito lírico no feminino, procede a um inventário crítico das paixões, dos dramas, dos embates vivenciados não só pelas mulheres, mas pelos poetas e pelo povo de Cabo Verde.

A travessia poética de O Arquipélago da paixão inicia-se pela tomada de consciência de um páthos que cerceia, que coloca a mulher na passividade de uma paixão que a desespera, cega e a faz dependente do amado. O paratexto da epígrafe que ilumina esse percurso do sujeito lírico intertextualiza a poética de Vera com a herança claridosa da insularidade cantada por Jorge Barbosa: "Eu trago dentro de mim um pássaro fechado... Bate asas _ quer voar! _ em ânsias desmedidas..." (DUARTE, 2001, p. 33). O desejo de evasão esbarra com a impossibilidade de emigrar livre para o Amor. Sob o viés do desassossego, a mulher-poeta não alça voo próprio, mantendo-se prisioneira da espera, do gosto amargo da traição: "ai pobre de mim traída/ ai pobre de mim deixada". Inferiorizada, se compadece de si mesma, como nos coros das tragédias gregas. Mas ao se defrontar com o desamparo da própria solidão, assume o sentido trágico de sua condição humana, feminina, questionando a insensatez desse tipo de paixão que lhe exaure as forças e lhe rouba a felicidade:

Mas cansei-me de meus gemidos
E de meus olhos consumidos pela mágoa
Deuses, ouvi a minha súplica
Arrebatai a minha alma
Para que despedaçada ela se liberte (DUARTE, 2001, p. 38). 

Ao questionar a "sôdade" imputada, durante séculos, às mulheres caboverdianas que ficaram amarradas ao cais, aguardando seus companheiros sempre em viagens por terras longínquas, a voz lírica do Primeiro Caderno ganha a lúcida compreensão de que a ausência do amado acabou por fissurar sua alma. A clareza em relação a essa cisão, a essa distância gera um estranhamento que põe em questão sua passiva espera. Subvertendo o tema do "terralongismo" tão frequente na poesia anterior, a mulher-poeta almeja 

(...) que este longe sem regresso
possa varrer a dor
e trazer de novo a vida
no sorriso de outro amor (DUARTE, 2001, p. 39). 

A par dessas novas aspirações, o eu-lírico ainda se encontra sitiado nos meandros de uma paixão castradora da própria identidade feminina. Invoca, então, "um coração guerreiro", clamando pelo exemplo de outras mulheres fortes – Safo, rainha Ginga, madre Teresa (DUARTE, 2001, p 42) –, que, como Antígona, souberam dizer não à humilhação. Desse modo, a mulher-poeta toma conhecimento das perdas e frustrações a que "a paixão insensata" a submetera. Contudo, mesmo as paixões "desvairadas" podem tornar-se fonte de libertação, pois as angústias, as dores, as inquietações provocadas acabam por se transformar em agentes instigantes de profundo questionamento existencial. É o que ocorre com esse sujeito lírico no feminino, cujo envolvimento passional, ao mesmo tempo que o dilacera, o impulsiona para o conhecimento de si e para a procura de um amor que liberta.

3. A Plenitude de Eros... 

(...) o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser(...) (RILKE. Apud: NOVAES, 1987, p. 371).

No Segundo Caderno, o sujeito lírico ultrapassa a condição de mulher submissa, subjugada pelas desditas amorosas. Supera os sentimentos de autocompaixão e desabrocha a sensualidade reprimida. Não mais se sentindo inferior ao amado, se torna senhora de si e declara:

Mas hoje
Dona dos meus jardins
Livre e insubmissa
Ajoelho-me a teus pés
Em sinal d´amor e liberdade (DUARTE, 2001, p. 58). 

Liberta da paixão narcísica, a mulher-poeta ingressa na esfera de Eros, buscando a plenitude de um amor gerador de possibilidades de poesia no encontro com o outro. Não mais "a poesia produzida pelas frustrações da paixão, mas a poesia da paixão. A transformação dos desejos que não podem se concretizar na paixão amorosa no desejo de outra coisa que a poesia (no sentido lato, não apenas no sentido da produção de poemas) pode realizar" (KEHL, 1987, p. 484). O eu-lírico toma ciência, então, de que suas mágoas e decepções não são maiores do que as de seu povo. Olha para o que está à sua volta e percebe a crise dos paradigmas sociais. Com a clareza de que a Madrugada anunciada com a Independência não foi plena, pois, após a euforia, o que restou "foi o gosto amargo das desilusões" (DUARTE, 2001, p. 61), traz a reflexão política para os domínios da arte e da poesia. Passa, então, ao inventário de outras paixões: a dos sofrimentos sociais existentes não só em Cabo Verde, mas em outras partes do mundo. Consciente do vazio atual de utopias, da carência das antigas esperanças que inflamaram os movimentos revolucionários em prol da Liberdade, o eu-lírico invoca a memória desses tempos e dos heróis da resistência que lutaram contra diversas formas de opressão:

Quero poder ouvir
para sempre
as canções heróicas
1eu deram som às revoluções
(...)
quero poder
por meus pés
cruzar ares
cruzar mares
conhecer gentes
e tudo que cheirar liberdade
(...)
Que me importa se
_ no fim_
ela (ainda) não foi possível
o que quero ter nos braços
é a idéia de a Ter
e poder cantar abril
(...)
quando tudo o que restou
foi o gosto amargo das desilusões (DUARTE, 2001, p. 60-61). 

Na clave da paixão, a mulher assume o prazer. Torna-se, então, dona não só de seu próprio corpo, mas do de seu amado, comandando os jogos amorosos num "corpoamor" com a própria linguagem poética. E é dessa febre desesperada que lhe vem um maior conhecimento de si e do mundo. Enlaçam-se, desse modo, os corpos amantes e é dissolvida a distância objetiva que a história positivista sempre estabeleceu entre razão e paixão. Estas, fundidas em um só corpo, comprovam que o sujeito passional também pode ser racional, uma vez que o ser humano só está inteiro nas suas paixões:

O amor sublime não abre mão da paixão, mas sabe transformar o impossível da paixão em possibilidade de troca simbólica. É quando o outro fala comigo, é quando dois universos simbólicos se tocam, se interpenetram, frutificam, se potencializam, é nesse caso que a paixão pode se tornar aliada do amor. (KEHL, 1987, p. 484).

É essa descoberta que direciona o eu-lírico à reflexão acerca de outras formas de paixões, entre as quais as que envolvem os padecimentos sociais do povo de Cabo Verde:

Quero sim
que um ódio desmesurado se acumule
e meu coração bata descompassado
a cada genocídio acontecido
pela guerra, pela fome, pela sida
 

Quero sim
que a solidariedade me chame
imperativa
quando as crianças
mancas
aleijadas
famintas
esfarrapadas
despojos de guerras sem glória
barrarem todos os caminhos (DUARTE, 2001, p. 62-63).
 

A par das desilusões e desencantos, o sujeito-poético, embora tenha consciência de que tudo mudou socialmente, ainda crê na justiça e na bravura de que Antígona e a rainha Ginga, respectivamente, se fazem representantes. Em intertextualidade com conhecidos versos do poeta Ovídio Martins que se rebelou contra a evasão, também diz não mais querer emigrar, rompendo com a ideia da insularidade que sempre aprisionou os caboverdianos:

Desvendando o segredo do amor
quero permanecer na ilha
(...)
Não quero mais partir!
 

De malas desfeitas
quebrarei na ilha
a prisão das ilhas
e voarei para lá do horizonte
com os pés fincados na areia (...) (DUARTE, 2001, p. 64-65).
 

A conquista desse amor pleno e livre dá condições ao sujeito lírico de refletir política e poeticamente não só sobre seu papel feminino, mas sobre as condições sub-humanas de vida da gente pobre do Arquipélago.                    

4. O Inventário Crítico das Paixões

Pensar a paixão é, pois, uma exigência. (...) Sendo fonte de prazer ou angústia, alegria ou tristeza, desejo ou padecimento, as paixões, em qualquer uma dessas formas, pode ser sempre uma afirmação de liberdade. (NOVAES, 1987, p. 11-12).

No Terceiro Caderno, usando uma forma lírica mais distensa que se aproxima visualmente da prosa, o discurso poético enunciador procede ao inventário das tristezas e agruras do povo de Cabo Verde. Começa focalizando o cotidiano miserável dos meninos da pobreza, envoltos no cheiro acre da maresia e da desesperança. Solidarizando-se com esses miúdos, em intertextualidade com o poeta brasileiro Manuel Bandeira, oferece-lhes a "Estrela da Manhã" (DUARTE, 2001, p. 81), metáfora de sonhos ainda por amanhecer. Dialogando também com autores da Literatura de Cabo Verde, entre os quais Manuel Lopes, Jorge Barbosa, Baltazar Lopes, António Aurélio Gonçalves, entre outros, repensa a dialética "do partir e do ficar" que marcou a alma caboverdiana; questiona a faina sofrida das mulheres de rosto queimado que vendem peixes para o sustento de inúmeros filhos de pais incógnitos; discute acerca da importância da chuva para o ressequido universo das secas que assolam periodicamente o Arquipélago. Convocando a consciência política do poeta Manuel Alegre e a sensibilidade de Florbela Espanca, sonha com um "mundo ao avesso" (DUARTE, 2001, p. 86), onde possa saciar sua "sede de infinito" (DUARTE, 2001, p. 87), justiça e liberdade.

5. Navegando afetos: fragmentos de uma cartografia amorosa...

Dialogando com a razão, as paixões não se extinguem, mas se tornam por assim dizer menos nebulosas, mais sólidas, mais materiais: chegam à consciência de si enquanto paixões. (ROUANET, 1987, p. 448).

No Quarto Caderno, o sujeito lírico no feminino, tendo encontrado o equilíbrio de sua subjetividade tecida pelo diálogo entre razão e paixão, navega por vários afetos e desafetos, amores e ódios, fazendo um balanço tanto das culpas individuais, como das coletivas. Efetua, assim, uma crítica ao moralismo com que, em geral, o mundo cerca as paixões. Desvendando os fios dos preconceitos que enredam as emoções humanas, problematiza a opressão que engaiola os homens como se fossem pássaros cativos. Focaliza crimes passionais que ceifam vidas agrilhoadas por laços de submissão. Destecendo as malhas das paixões, questiona também o ciúme, o despeito, a inveja em relação "à outra" que, nos triângulos amorosos, é sempre discriminada, condenada socialmente como a que usurpou o lugar da esposa. Discute ainda sentimentos sublimes como a amizade e o amor. Por último, no "Juízo Final", compreende que a vida e as paixões são fugazes, feitas de "material incandescente e precário" (DUARTE, 2001, p. 99). Pelo aprendizado do amor e pelas constantes indagações existenciais e sociais, se reconhece caboverdiana e mulher, como tantas outras do Arquipélago. A imagem do "pássaro vermelho" (DUARTE, 2001, p. 98) que voa dela para o ser amado metaforiza a plenitude de um amor, que, sabedor da fadiga causada pela intensidade das paixões, busca seguir apenas as rotas amenas traçadas pelo coração. Libertando-se da angústia, da solidão e dos lamentos que geram ciúmes, das emoções e dos ressentimentos mesquinhos, a mulher-poeta se completa e alcança um perfil libertário como o de Antígona. Compreende, então, como esta, que não nascera para o ódio, mas para o amor. Um amor despojado e livre, cuja dimensão trágica a insere nos domínios de Eros e no âmago da poesia da paixão.

NOTAS

[1] SECCO, Carmen Tindó. Artigo publicado na Revista Scripta, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 215-225, 2º sem. 2004

Referências

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GOMES, Simone Caputo. _. Percurso da poesia de Cabo Verde até a atualidade. Atas do I Seminário das Literaturas Africanas. Org. SECCO, Carmen Lucia Tindó. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1996. pp. 61-71.

KEHL, Maria Rita. "A psicanálise e o domínio das paixões". In: Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. pp. 469-496.

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LEITE, Ana Mafalda. Posfácio. In: FORTES, Corsino. A Cabeça calva de Deus. Lisboa: Dom Quixote, 2001. pp. 293-302.

LEITE, Ana Mafalda. A Modalização épica nas literaturas africanas. Lisboa: Vega, 1996. pp. 120-180.

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MARIANO, Gabriel. Cultura caboverdeana. Ensaios. Lisboa: Vega, 1991. 182 p.

MIRABILIS de veias ao sol: antologia dos novíssimos poetas caboverdianos. Seleção e apresentação de José Luís Hopffer Almada. Lisboa: Caminho e Instituto Caboverdiano do Livro, 1991. 523 p.

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico resumido. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro - INL; Ministério da Educação e Cultura - MEC, 1966. 791 p.

NOVAES, Adauto (Org). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 511 p.

ROUANET, Sérgio Paulo. "Razão e paixão". In: Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. pp. 437-467.

TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. 3. ed. Porto: Ed. Maránus, 1945. pp.609-611.

VEIGA, Manuel. Cabo Verde: insularidade e literatura. Paris: Ed. Karthala, 1998. 256 p.

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[i] Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco é Professora Titular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora 1B do CNPq e da FAPERJ. Tem doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Pós-Doutorado pela Universidade Federal Fluminense, com estágio na Universidade Politécnica de Moçambique (2009-2010). Publicações: A magia das Letras Africanas (2003); Paulina Chiziane: Vozes e rostos femininos de Moçambique (2013) em coautoria com Maria Geralda Miranda, Afeto& poesia (2014), Pensando o cinema moçambicano (2018), CineGrafias moçambicanas (2019), dentre outros.

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