As visitas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho,
 à luz do pensamento de Frantz Fanon

Wellington Marçal de Carvalho*

Introdução

Mas de qualquer modo, no meio da situação atroz em que vivemos

há perspectivas animadoras.
Antonio Candido

Há formas de resistência que podem se dar em suportes aparentemente não confeccionados para esse intento. Quando isso acontece, ilumina-se mais um traço da genialidade de seu criador. Obviamente a colaboração do receptor é requerida para acionar esses horizontes de significação e, assim sendo, toda proposta de leitura detêm alguma validade.

O campo da literatura oferece uma gama considerável de exemplos para essa reflexão. Sobretudo, nas literaturas africanas de língua portuguesa, podem ser verificados, em determinadas obras e mesmo perifericamente, indícios que sinalizam a intenção desses escritores, latente, de reposicionarem-se em face da “ordem natural” do mundo.

Nessa diligência, em demanda de um ajustamento nas relações entre diferentes culturas, em convivência direta em um mesmo espaço, os textos ficcionais contribuem de forma substantiva por viabilizar, através da materialização de estratégias construídas por seus autores, a projeção de novos arranjos sociais, alternativos às configurações das quais emanam.

Para nutrir o presente exercício interpretativo, recorrer-se-á ao romance As visitas do Dr. Valdez, do escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho, cuja obra extremamente desafiadora, já o integrou ao conjunto dos grandes autores africanos dos países de língua portuguesa.

João Paulo Constantino Borges Coelho nasceu na cidade do Porto em 1955, filho de pai português e mãe moçambicana. Transferiu-se com os pais para Moçambique e adquiriu a nacionalidade desse país. É membro do corpo docente da Universidade Eduardo Mondlane onde leciona História Contemporânea de Moçambique e África Austral. Sua primeira obra literária foi publicada em 2003, intitulada As duas sombras do rio. No ano seguinte, publicou As visitas do Dr. Valdez, pelo qual recebeu o Prêmio José Craveirinha. Nos anos seguintes lançou várias outras obras literárias.1

A obra As visitas do Dr. Valdez, narrada em terceira pessoa, acompanha a vida de duas irmãs, Amélia e Caetana que se mudam-se para a cidade da Beira, vindas da ilha do Ibo, juntamente com o criado Vicente (BRAUN, 2010, p. 180-181). A narrativa também foca, de um modo específico, a habilidade do criado, Vicente, em transgredir a ordem dos subalternos pela astúcia com que subverte os espaços compartimentados que remetem à ilha do Ibo (FONSECA, 2008, p. 89).

Com relação a esses três personagens, centrais no romance, Marçolla destaca:

Sá Caetana [e] Sá Amélia [...] velhas senhoras e patroas que trazem em si a ambigüidade de identidades nada simples, são filhas da mulata Ana Bessa com estrangeiros distintos e já entre si guardam uma relação de semelhança e diferença: são apenas meias-irmãs. Guardam também no corpo e na pele os sinais dessas ambigüidades, que parecem se dissolver apenas na relação que estabelecem com os criados. Assim, Sá Caetana transforma-se, por exemplo, na Grande Senhora. No que se refere aos criados, vemos a transmissão hereditária de um lugar também ambíguo, que significa subserviência, mas que também confere algum sentido à vida tal como foi aprendida. Aí nos deparamos com Cosme Paulino, que viveu e morreu sendo fiel a tal lugar, e também seu filho Vicente, herdeiro dessa ‘tradição’ mas que, mesmo em sua fidelidade canina, começa a questionar alguns lugares muito estabelecidos e, subvertendo a ordem, dá lugar a novos arranjos identitários. (MARÇOLLA, 2007, p. 144)

Em entrevista concedida a Rita Pablo, em 13 de abril de 2006, Borges Coelho, ao abordar o motivo que o inspirou a escrever esse romance relata:

Embora não sendo um livro autobiográfico, o tema foi-me sugerido por um episódio ocorrido dentro da minha própria família. Com ele quis simplesmente contar uma história e, ao mesmo tempo, questionar a interpretação maniqueísta que domina este período das vésperas da independência. Onde tudo costuma ser lido a preto-e-branco, quis introduzir cinzentos, matizes. Ao mesmo tempo, divertiu-me, digamos, experimentar uma técnica de narração fragmentada, uma espécie de puzzle duplo, no tempo e no espaço. Não parto para um livro com uma história feita. Pelo contrário, tinha um episódio muito breve, e a idéia de o explorar com base em questões que me parecem interessantes. (PABLO, 2006)

Sublinha Moreira (2010, p. 162) que os processos pessoais, experenciados por cada personagem, aludem aos mecanismos que envolvem o povo moçambicano e suas relações com os colonizadores, evidenciando uma tensão especial entre um passado definido por castas sociais e um presente devastado pela guerra, no qual a necessidade de sobrevivência forçosamente redefine o tom dos contatos do eu com o outro.

Nesse mesmo esteio, Ventura (2009, p. 49), aponta que, notadamente em As visitas do Dr. Valdez, o ‘território’ referenciado é Moçambique e o tempo tem ênfase na contemporaneidade, mas uma ‘contemporaneidade alargada’, uma vez que é retomado todo o período de ocupação mais efetiva dos portugueses, a partir da última década do século XIX. Nesse romance João Paulo Borges Coelho percorre o tempo devastador da guerra colonial conforme advertem Fonseca e Moreira (2007, p. 61).

Para Alves (2011, p. 10, 71), nessa obra de Borges Coelho, a relação entre a literatura e a história surge de forma complementar, na medida em que permite compreender a realidade cultural, social e política de Moçambique e, assim, entender as personagens desta história, que apesar de fictícia se inscreve com grande verossimilhança na realidade histórica. O autor combina vivências humanas no seu país com uma sociedade em mudança, e o resultado dessa mistura é uma ficção densa e bem construída que, ao mesmo tempo, retrata um painel da sociedade moçambicana procurando conjugar o antigo com o novo e sobrevivendo no meio de inúmeras contradições e dilemas.

Acredita-se que Vicente funciona como representante máximo desses conflitos e dilemas. De certo ponto de vista, essa personagem pode ser considerada transgressora do lugar tradicionalmente reservado ao ser colonizado. Defende-se que o papel por ele desempenhado, no decorrer da narrativa, em que prevalece a ousadia que se agiganta mais e mais, em seu trato com as duas irmãs, Sá Amélia e Sá Caetana, principalmente após o ato de assumir a personalidade do Dr. Valdez, torna plausível a retomada do pensamento combativo de Frantz Fanon.

Dito isto, serão apresentadas, a seguir, as linhas gerais da teoria elaborada por Fanon, desde aqueles fundadores do Movimento Negritude, até culminar no conceito de literatura de combate e suas especificidades. Esses elementos da teoria de Fanon nortearão a abordagem de trechos do romance em que Vicente assume, por vezes timidamente, o questionamento de seu ser/estar no mundo colonizado.

A palavra beligerante de Fanon

De pé, condenados da terra; de pé, forçados da fome.”

(Alice Cherki)

De acordo com o queniano Mazrui (2010, p. 684), a oposição à exploração, praticada por capitalistas locais ou estrangeiros, começava a inspirar os intelectuais africanos nas vésperas da independência. A ratificação desta idéia veio pouco mais tarde com escritores tais como Ousmane Sembene, Ayikwei Armah, Chinua Achebe ou Wole Soyinka, sem deixar de mencionar o precursor, Frantz Fanon2. De acordo com Harbi (2010, p. 371), autor do posfácio à obra Os condenados da terra, Fanon não se contenta em fazer uma análise puramente econômica do imperialismo. O médico e teórico da Martinica reflete sobre o conflito identitário e cultural característico dos espaços colonizados e tenta mostrar que os verdadeiros condenados da terra, os explorados absolutos, são os colonizados. Essa constatação fica clara nas palavras de Alice Cherki, autora do prefácio do mesmo livro:

Os condenados da terra é pois o último livro de Frantz Fanon. Em 1952, aos vinte e cinco anos, já escrevera Peau noire, masques blancs e, em 1959, L’na V de la Révolution algérienne, que foi um dos primeiros livros editados por François Maspero. Também produzira muitos artigos: “Le syndrome nord-africain”, já citado, contribuições de psiquiatria, e notadamente “Racisme et culture”, para o primeiro congresso de escritores negros de 1956, e “Culture et nation”, para o segundo congresso de escritores negros em Roma, em 1959. Em todos esses textos, o desenvolvimento da argumentação é fundado não sobre o teórico mas sobre o vivido, ponto de partida do desenvolvimento do seu pensamento [...] Em Os Condenados da terra, prossegue essa interrogação sobre a alienação por um mundo dominante, que subverte e altera tanto as coletividades quanto os sujeitos, em seu devir pessoal. O livro retoma, radicalizando-os no quadro do combate político, os dados das relações dominante/dominado e as condições de libertação, aliando ao político e à cultura a libertação do sujeito. Os dois últimos capítulos são consagrados, aliás, à cultura e sua relação com a construção da nação, e aos distúrbios psíquicos traumáticos gerados, de parte a parte, pela guerra da Argélia. (CHERKI, 2010, p. 12, 11)

A reflexão de Frantz Fanon sobre a relação dominante / dominado e sobre o processo de conscientização dos povos colonizados está na base de sua definição de literatura de combate. De acordo com o teórico martiniquense, essa literatura é resultante de um processo, no qual:

[...] o colonizado, depois de tentar perder-se no povo, com o povo, vai, ao contrário, sacudir o povo. Ao invés de privilegiar a letargia do povo, ele se transforma em despertador do povo. Literatura de combate, literatura revolucionária, literatura nacional. Durante essa fase, um grande número de homens e mulheres que, antes, nunca teriam pensado em fazer uma obra literária, agora que se encontram em situações excepcionais, na prisão, na resistência ou na véspera de sua execução, sentem a necessidade de dizer a sua nação, de compor a frase que expressa o povo, de tornar-se porta-voz de uma nova realidade em atos. O homem colonizado que escreve para o seu povo, quanto utiliza o passado, deve fazê-lo com a intenção de abrir o futuro, convidar para a ação, fundar a esperança. Mas para garantir a esperança, para lhe dar densidade, é preciso participar da ação, engajar-se de corpo e alma no combate nacional. [...] No nível da criação literária, há retomada e esclarecimento dos temas tipicamente nacionalistas. É a literatura de combate propriamente dita, no sentido em que ela convoca todo um povo à luta pela existência nacional. Literatura de combate, porque informa a consciência nacional, dá-lhe forma e contornos e lhe abre novas e ilimitadas perspectivas. Literatura de combate, porque assume, porque é vontade temporalizada. (FANON, 2010, p. 256, 267, 275)

A literatura de combate, explica Fonseca (2011), adere ao projeto de formação de identidade nacional, em cada espaço, daí a variedade de expressões que legitima em diferentes momentos e em cada um dos países africanos de língua portuguesa. Podem ser citadas, dentre as várias feições que essa literatura apresenta, as que se seguem:

i) literatura empenhada em mostrar a África para os africanos [que] encena as tradições africanas e os diferentes costumes dessas tradições; ii) literatura que se faz parceira com as lutas pela libertação, denunciando os horrores do colonialismo e a perda das liberdades básicas nos espaços colonizados; iii) literatura de denúncia de processos de alienação desenvolvidos nos espaços colonizados; iv) literatura que, ainda que se voltasse ao processo de conscientização, expressava-se, em alguns momentos, em linguagem menos dogmática, menos referencial. Em muitos textos, a preocupação com a conscientização política passa pela conscientização sobre a necessidade de se fortalecer o processo literário. (FONSECA, 2011)

Atesta Fonseca (2008, p. 206) que os poemas dos escritores antilhanos Aimé Césaire e René Depestre ativam vestígios de uma época em que, talvez, as produções literárias dos escritores africanos verdadeiramente comprometidos com a extirpação do colonialismo e com a conscientização dos marginalizados, dos ‘condenados da terra’, como os denominara Frantz Fanon. Como salienta Cherki (2010, p. 12), Fanon insiste nas conseqüências da submissão não só dos povos mas também dos sujeitos, e nas condições de sua libertação, que é, antes de tudo, uma libertação do indivíduo, uma “descolonização do ser”.

Muito embora fossem outros o momento histórico e as circunstâncias que deram guarida à consolidação das ideias propagadas por Fanon quando da publicação de sua obra, notadamente, em Os condenados da terra, o romance As visitas do Dr. Valdez, de Borges Coelho, ao focalizar atentamente a personagem Vicente, encena o processo em curso de um subalterno em vias de descolonização do ser. Este é objetivo que se pretende demonstrar.

Manifestações de Fanon em Dr. Valdez

É do lado da loucura que se encontram uma verdade e uma autenticidade

às quais é preciso deixar o seu livre exercício.” (Mohammed Harbi)

A personagem Vicente, no romance de Borges Coelho, em sua mudança de atitude, ilustra o ser humano em vias de descolonização e, nesse sentido, reverbera Fanon quando esse considera os distúrbios identitários vividos pelo colonizado:

Então o colonizado descobre que sua vida, sua respiração, as pulsações de seu coração são as mesmas do colono. Descobre que uma pele de colono não vale mais do que uma pele de indígena. Essa descoberta introduz um abalo essencial no mundo. Dela decorre toda a nova e revolucionária segurança do colonizado. Se, com efeito, minha vida tem o mesmo peso que a do colono, seu olhar não me fulmina, não me imobiliza mais, sua voz já não me petrifica. Não me perturbo mais em sua presença. Na verdade eu o contrario. Não somente sua presença deixa de me intimidar como também já estou pronto para lhe preparar tais emboscadas que dentro de pouco tempo não lhe restará outra saída senão a fuga. (FANON, 2010, p. 61)

As afirmações de Fanon sobre a conscientização do colono sobre si mesmo está encenada, no romance de Borges Coelho, no episódio em que o avião que traz as irmãs Sá Amélia e Sá Caetana e o criado Vicente chega à cidade de Beira. No aeroporto, moedas de tempos remotos, acumuladas por Sá Amélia, caem do seu corpete e “revelam a diversidade de um tempo que vai chegando ao fim.” (COELHO, 2004, p. 9) A cena indica a entrada das personagens no novo espaço, deslocadas do seu espaço de origem no qual as moedas, que se espalham no chão do aeroporto, são importante metonímia.

Para o criado Vicente, esse deslocamento anuncia um novo estágio em seu modo de vida. Ele que era “um criado sempre disponível, sempre ao serviço, e portanto sempre acompanhado, quase nunca só.” (COELHO, 2004, p. 37) “A nada se negava o rapaz, como não se negaria a fazer o que fosse ordenado pelo próprio pai.” (COELHO, 2004, p. 19).

A subserviência lhe fora transmitida como que geneticamente. Sendo herdada de seu pai e por ele ratificada quando da decisão de enviá-lo, com as duas irmãs, para a cidade de Beira, para em tudo ser-lhes caninamente fiel.

Vais com a Senhora Grande, entendes?”, dissera-lhe ele à partida. “Vais com ela para a cidade para servi-la e cuidar-lhe da irmã doente. E vais com juízo. Vais para fazer tudo o que ela te mandar, sem excepção. Se pudesse ia eu próprio porque esse é o meu dever. Fico porque tenho a Casa Grande, o coqueiral do Mucojo, a pesca e os teus irmãos mais novos para cuidar. Quando ela te ordenar alguma coisa será a mim que ordena. E se desobedeceres, serei também eu próprio quem desobedece. Entendes?”

Vicente entendia. Entendeu, porque jamais lhe ocorreria faltar ao respeito à Senhora Grande. (COELHO, 2004, p. 19)

Acontece que “com a viagem para a Beira tudo mudou. Esse grande mundo protector desabou e vai-se instalando no seu lugar um outro, mais pequeno, feito de fragmentos mal ligados, de pequenos sentidos separados entre si por um grande vazio.” (COELHO, 2004, p. 37).

Pois em um dia de ‘vento virado’ de Sá Amélia, esgotadas todas as tentativas da irmã para demovê-la daquele ataque de mau humor, torna-se propício o aparecimento do Dr. Valdez, o antigo médico da família, como única salvação para aquele imbróglio. É importante ressaltar a estratégia de que se vale o romance para trazer ao presente “O Dr. Valdez [que chegara] à ilha do Ibo em 1940 e [morrera] num dia vulgar de Dezembro de 1959.” (COELHO, 2004, p. 28).

O Dr. era uma espécie de médico da família, sempre presente “à mesa do pequeno-almoço onde habitualmente se enchia de comida antes de sair para as consultas, no hospital.” (COELHO, 2004, p. 28). Pela estima a ele devotada, era como se fosse mesmo da família. Indo mais a fundo, pairava certa dúvida sobre a existência de um sentimento enamorado de Sá Amélia para com ele. Mas isso é para outra investigação.

Na casa da Beira, Sá Caetana, tateante, informa à irmã: “_ Amanhã vem visitar-nos o Dr. Valdez e eu vou queixar-me de ti, minha irmã! Vou dizer-lhe como te comportas! – disse.” (COELHO, 2004, p. 28).

O fato é que Sá Caetana, , , na casa da Beira, precisa se valer de Vicente para que este desempenhe uma tarefa nada comum: encarnar o Dr.Valdez e apresentar-se como tal para a irmã velha e doente.

_ Amanhã serei eu o Dr. Valdez! – disse, após curta pausa, esforçando um ar inocente. Como se a proposta lhe tivesse saído espontânea.

Sá Caetana surpreendeu-se. Depois relutou. Como pode um jovem fazer de adulto? Como pode um criado fazer de doutor? Como pode, até, um preto fazer de branco?

[...]

_ A patroinha ficará zangada é se o doutor não chegar. O resto nós não sabemos.

_ Tens razão, rapaz – foi forçada Sá Caetana a concluir.

Na indisponibilidade do verdadeiro Dr. Valdez não parecia haver outro recurso a não ser esta farsa proposta por ela em momento de irreflexão, e que Vicente parecia querer concretizar.

Sá Caetana acabou assim por aceitar. (COELHO, 2004, p. 32)

A partir das negociações, aparentemente de fácil condução para Sá Caetana, acostumada ao comportamento submisso de Vicente que aprendera com o pai Cosme Paulino, que o herdara do pai, é que descarrila a locomotiva da existência do submisso Vicente e o possibilita ensaiar os primeiros movimentos rumo à descolonização de seu ser. Eis como se apresenta para as irmãs em sua primeira visita, um extravagante Dr. Valdez:

No umbral estava um Dr. Valdez muito mais baixo e magro, apesar dos conhecidos calções de sarja, das meias altas de sempre. Tufos de algodão colados à face faziam as vezes de uma farta barba, uns fofos bigodes, contrastando vivamente com o negro azeviche da pele e do cabelo crespo de Vicente, cortado rente. (COELHO, 2004, p. 39)

Sem entrar no mérito acerca de que em até que ponto Sá Amélia realmente acredita ser Vicente o verdadeiro Dr. Valdez, inquestionável é a destreza com a qual, aos poucos, o criado vai adquirindo ousadia e efetivando, aqui ali, atos impensáveis para alguém com seu estatuto de serviçal.

_ Sente-se aqui ao pé de mim, doutor [...]

Vicente acercou-se, obedecendo como sempre. Mas é já esta a diferente obediência do visitante obrigado às leis da cortesia, não a velha obediência do criado. [...]

Sentar-se ali no sofá e gozar uma promiscuidade nova com um mundo que tão bem conhece mas que até agora lhe estava vedado. (COELHO, 2004, p. 48)

Como se já não bastasse adentrar à sala, ainda é ‘obrigado’ a ser servido por Sá Caetana e, juntos, tomarem o chá:

Nas mãos traz um tabuleiro com o chá e um pratinho de deliciosos rebuçados de gergelim torrado, cedendo neste ponto para conquistar mais uns momentos de tranquilidade. Obsequiosa de um modo um pouco exagerado, como que dizendo a Vicente que só o serve dentro do jogo, não fora dele, Sá Caetana estende à visita uma chávena de chá fumegante.

O Dr. Valdez recebe-a com ambas as mãos mas afasta polidamente o açucareiro. (COELHO, 2004, p. 52)

É digno de nota o quanto se arrisca Vicente/Dr. Valdez, em suas quase confidências trocadas nos diálogos com Sá Amélia, durante as visitas, ao ponto de se valer do papel encenado para, muito a contragosto de Sá Caetana, reivindicar melhor trato das irmãs ao criado Vicente. Como pode ser visto nos dois excertos a seguir:

_ Desculpe... Se a senhora quiser eu falo com a sua irmã para que ela tenha mais cuidado, para que lhe dê mais atenção e seja mais humana com esse pobre miúdo, o tal Vicente.

_ Obrigado, Dr. Valdez – respondeu Sá Amélia. _ Sabia que podia contar consigo.

Sá Caetana ouviu e franze o sobrolho. “O atrevimento do rapaz”, pensa, “querendo aproveitar-se da situação. Agora até conselhos me quer dar sobre como tratar a minha própria irmã.” (COELHO, 2004, p. 63)

_ Também acho que está sendo demasiado severa com o rapaz – disse. _ Não o pode ter aqui fechado como se fosse uma coisa. Ele é um empregado, tem os seus direitos. A senhora exige e ele cumpre. A senhora paga-lhe por esse cumprimento e pronto, ficam conversados. (COELHO, 2004, p. 135)

Pelas passagens já apresentadas fica bem pontuado o estranhamento de Vicente, quando travestido em Dr. Valdez, das verdades até então imaculadas sobre o lugar de cada ser no mundo. O jogo proposto por Sá Caetana acaba por abalar essa construção social, tida como regular, intrínseca. Vicente, mesmo não o compreendendo em sua totalidade reconhece não ser mais o bom cumpridor das ordens do pai Cosme Paulino: “Vais com a Senhora Grande, entendes?”, dissera-lhe ele à partida. “Vais com ela para a cidade para servi-la e cuidar-lhe da irmã doente. E vais com juízo.” (COELHO, 2004, p. 19). Sá Amélia “notava-lhe até alguma mudança de atitude desde essa primeira visita, um modo novo de olhá-la que desafiava o respeito.” (COELHO, 2004, p. 77).

Inclusive é Vicente quem radiografa a fragilidade daquela família decadente, em toda a sua crueza:

Engana-se, Sá Caetana. Diz que vive para manter a sua irmã viva mas é Sá Amélia, sem o saber, quem mantém esta família funcionando.

Morresse ela e deixava de ser preciso o criado. Desaparecesse ela e Sá Caetana ficava só. Soava isto como uma definitiva conclusão. Uma ameaça. (COELHO, 2004, p. 99)

Por tudo que foi dito, é como se Vicente mostrasse, através de suas atitudes eivadas de rebeldia, que a reformatação do mundo só se faria com a batalha travada por cada um para fazer ruir a arquitetura desumana instituída pela mão do colonizador. Como prescrevera Fanon: “E preciso que os povos colonizados, é preciso que os povos que foram despojados percam a atitude mental que até agora os caracterizou.” (FANON, 2010, p. 166).

Palavras finais

Digo que estou decidido a ir mais longe.”
Frantz Fanon

A maior tarefa é compreender a todo instante o que acontece entre nós [...] Devemos erguer o povo, aumentar o cérebro do povo, mobiliá-lo, diferenciá-lo, torná-lo humano.” (FANON, 2010, p. 226). Ao percorrer As visitas do Dr. Valdez focando alguns traços do comportamento de uma de suas personagens principais, o criado Vicente, não seria uma estupidez considerar essa obra como uma prótese, sutilmente construída, para incutir mais um elemento do processo de conscientização do povo moçambicano. Como acertadamente Alves (2011, p. 13) salienta, Vicente é o rosto de um futuro autônomo e mais justo da nação moçambicana.

João Paulo Borges Coelho, ao escolher para epígrafe de seu romance um verso do poeta latino Persio, cujo aforismo torna sintomática a ideia de que nada surge do nada, ou, ex nihilo nihil, insiste no compromisso de cada um na construção de um novo tempo. Esse novo tempo, o da nação independente, se é possível o uso desse termo aqui, devido a gama de complicações vivenciadas por um povo que atravessa o período de transição entre regimes de poder, só se efetivará em uma ambiência mais justa, principalmente, sob a ótica dos verdadeiros donos daquela terra, os povos colonizados, se estes se conscientizarem e lutarem para tal.

Frantz Fanon, eternizando em seus escritos sua verve pugnaz, fez de sua experiência de colonizado inspiração para orquestrar o processo de descolonização do ser. No campo da literatura, o fascinante Vicente/Dr. Valdez encena arrojados passos nessa direção e demonstra ser possível a construção, no mundo, de uma outra via que não aquela sacramentada pelo colonizador.

Notas

Originalmente publicado como capítulo no livro Literaturas africanas: narrativas, identidades, diásporas, organizado por Franciane Conceição da Silva (Colatina/Chicago: Clock-Book, 2016), p. 67-77.

2 Índicos indícios I. Setentrião (2005); Índicos indícios II. Meridião (2005); Crônica da rua 513.2 (2006); Campo de trânsito (2007); Hinyambaan (2008); O olho de Hertzog (2010); Cidade dos espelhos (2011).

3 [Fanon] nascera em 1925, em Fort-de-France na Martinica, em uma família da pequena burguesia abastada. Entre seus muitos irmãos, evoluiu num ambiente da velha colônia, onde ainda não se pensava em questionar a escravidão. Entretanto, muito jovem, Fanon se engajou nas forças gaullistas, no batalhão V, que reunia os voluntários do Caribe. Foi durante esse engajamento que ele adquiriu a sua cultura de resistência, e também viveu a experiência do racismo banal, cotidiano. Desmobilizado, com a Cruz de Guerra (outorgada pelo futuro general Salan, única coisa que Fanon dizia ter em comum com o general), voltou para a Martinica em 1945, terminou os estudos secundários e freqüentou Aimé Césaire, por quem tinha grande admiração, mas cujas opções políticas já não compartilhava. Na época, Césaire decidiu considerar a Martinica como um departamento Francês [...] Mas em dezembro de 1960, durante um período em Túnis, Fanon descobriu que sofria de uma leucemia mielóide. Restava-lhe um ano de vida, durante o qual escreveu Os condenados da terra. (CHERKI, 2010, p. 8, 11)

Referências

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BRAUN, Ana Beatriz Matte. Presente, um tempo de transformações: uma leitura de As visitas do Dr. Valdez, de João Paulo Borges Coelho. Eletras. v. 20, n. 20, p. 180-182, jul. 2010.

CÂNDIDO, Antonio. Direito à literatura. In: ______. (Org.). Vários escritos. 4. ed. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2004. p. 169-191. Mimeografado.

CHERKI, Alice. Prefácio [de Os condenados da terra] à edição de 2002. In.: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2010. p. 7-21.

COELHO, João Paulo Borges. As visitas do Dr. Valdez. Maputo: Ndjira, 2004. 221 p.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2010. 373 p.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos. Belo Horizonte: Veredas e Cenários, 2008. 238 p.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literatura de combate na África de língua portuguesa: movimento, idéias e movimentos que estruturam a “literatura de combate”. Belo Horizonte: [s.n.], 2011. (Mimeografado).

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HARBI, Mohammed. Posfácio [de Os condenados da terra] à edição de 2002. In.: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2010. p. 367-373.

MARÇOLLA, Bernardo Andrade. Identidade, alteridade e memória em As visitas do Dr. Valdez, de Borges Coelho. Cadernos CESPUC de Pesquisa. Belo Horizonte, n. 16, p. 141-151, set. 2007.

MAZRUI, Ali Al’amin. O desenvolvimento da literatura moderna. In: MAZRUI, Ali Al’amin; WONDJI (Ed.). História geral da África. Brasília: UNESCO, 2010. v. 8, cap. 19, p. 663-696.

MOREIRA, Terezinha Taborda. Identidade e “intermediaridade” na escrita de João Paulo Borges Coelho. In: SECCO, Carmen Tindó; SEPÚLVEDA, Maria do Carmo; SALGADO, Maria Teresa. África & Brasil: letras em laços. São Caetano do Sul, SP: Yendis, 2010. v. 2, p. 155-176.

PABLO, Rita. “É através de Moçambique que eu vejo o mundo”: entrevista com João Paulo Borges Coelho. Expresso África. Lisboa, 13. abr. 2006. Disponível em: <http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/files/joo_paulo>. Acesso em: 08 mar. 2012.

VENTURA, Susana Ramos. Considerações sobre a obra ficcional de João Paulo Borges Coelho. Navegações. v. 2, n. 1, p. 49-52, jan./jun. 2009.

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* Wellington Marçal de Carvalho é Pós-Doutorando em Estudos Literários na FALE/UFMG. Doutor e Mestre em Letras pela PUC Minas. Graduado em Letras (Newton Paiva). Bibliotecário coordenador da Biblioteca da Escola de Veterinária UFMG. Integrante do Grupo de Estudo Estéticas Diaspóricas (GEED). Autor de: Aquele canto sem razão: espaço e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso (2014) e A defesa incansável da esperança: feições da guineidade na prosa de Odete Semedo e Abdulai Sila (2018). Coorganizador de Deslocamentos estéticos (2020). Integrante da Comissão editorial do literÁfricas. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

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