José Craveirinha: poesia com sonoridades africanas

 

Maria Nazareth Soares Fonseca*

       Para mim Craveirinha foi um mestre;
       foi ele que nos incentivou a ser moçambicano,
       a tocar música moçambicana
       porque nós tínhamos o hábito de tocar música estrangeira...
       ele disse não, não façam isso: toquem marrabenta!1

José Domingos – músico moçambicano

Quando escrevi este texto, em 2002, estávamos comemorando os oitenta anos do poeta moçambicano José Craveirinha sem imaginar que poucos meses depois seu corpo estaria repousando na cripta reservada aos heróis nacionais de Moçambique, em Maputo.

Nascido no dia 28 de maio de 1922, na ex-Lourenço Marques, atual Maputo, capital de Moçambique, José Craveirinha, cuja vida confunde-se com a história do seu país1, faleceu, em hospital da África do Sul, em 6 de fevereiro de 2003, em decorrência de um acidente vascular cerebral. Embora somente em 2010 seja publicada no Brasil uma antologia poética que cobre cinco livros do poeta moçambicano, publicados em vida, e duas coletâneas póstumas2, o poeta era bastante conhecido no Brasil, sobretudo, após a inclusão das literaturas africanas de língua portuguesa em vários currículos de Letras. Mesmo antes que alguns escritores africanos de língua portuguesa como Luandino Vieira, Agostinho Neto, Mia Couto e Pepetela começassem a ser lidos e pesquisados no Brasil, poemas de José Craveirinha circularam por aqui, motivados pelas lutas contra o colonialismo português e pela independência dos países africanos de língua portuguesa conquistada no ano de 1975. Alguns poemas como “Grito Negro” (“Eu sou carvão/Tenho que arder na exploração/Arder até as cinzas da maldição”) e “África”, em cujos ressoam os sons fortes dos tantãs tribais, ficaram conhecidos junto de experiências literárias de autores norte-americanos como Langston Hughes e Claude Mckay, dos poemas negritudinistas de Aimé Césaire e Léopold Senghor, mas principalmente da poesia de combate de Agostinho Neto, poeta conhecido em virtude de sua participação ativa na luta pela independência de Angola. Os poemas de intenção revolucionária, vindos da África portuguesa, propiciavam aos leitores brasileiros o contato com uma realidade político-social tensa, expressa em versos potentes de poetas e poetisas, em busca da definição de um espaço político e cultural com identidade própria.

As referências fornecidas pela biografia de José Craveirinha e as informações dadas por ele a seus entrevistadores elaboram uma história pessoal bem diferente da vivida pela maioria dos filhos de relações interétnicas em que o pai, português, indo para a África, amasia-se com uma africana, tem filhos com ela e os abandona. Craveirinha nos revela, em entrevista fornecida a Patrick Chabal (1994), que ele e o irmão foram exceção num quadro social em que o mais comum era que os filhos provenientes de relação não legitimada de portugueses com africanas ficassem com as mães e que não fossem registrados pelos pais brancos.

A história do escritor passa por outros caminhos. A ternura recebida da mãe africana e os cuidados do pai e da madrasta portuguesa, que o cria com educação severa, proibindo-o de falar a língua materna3, são referências que transitam por seus versos, biografemas que devem ser observados quando se considera o modo como o poeta recompõe suas lembranças “à maneira simples das profecias” (1995, p. 9). Sua condição de mestiço, seu lugar entre dois mundos - o do pai português com quem vai viver desde muito cedo e o da mãe ronga, de quem se afastou ainda criança, sem perder, todavia, o contato com ela - aparece em seus vários poemas seus. As lembranças da mãe, “tombosana de pés descalços” e das “baladas à volta da fogueira” (1995, p. 36) visitam o poema “Mãe” em que imagens calcadas em vivências e encantamentos de costumes ancestrais são retomadas para prestar homenagem à mãe, já falecida:

Sabes ou não sabes, Mãe
a resina das velhas árvores plantadas pelos espíritos
as blasfêmias dos mortos salgando as raízes virgens
e as grandes luas de ansiedade esticando
... as peles dos tambores enraivecidos
e dando às folhas das palmeiras
o brilho incandescente das catanas nuas?
                                               (CRAVEIRINHA, 1995, 36)

A afirmação da identidade mestiça do poeta está presente em vários poemas do escritor, particularmente, no poema “Ao meu belo pai ex-imigrante” (1995, p. 92-95) em que o poeta canta a união do pai português com a mãe africana como celebração do nascimento daquele que guarda lembranças nítidas de muitos momentos vividos com o pai português.

Ana Mafalda Leite (1991) observa que a figura do pai, nas lembranças poéticas convocadas por Craveirinha, é desvestida da violência característica da ação colonizadora e permite ao poeta a enxergar o pai português não como o inimigo, mas como parceiro de tradições misturadas. No gesto poético com que o escritor relembra o afeto vivido em contato com a cultura da mãe e com os costumes portugueses preservados pelo pai, esculpem-se os traços de “um mais novo moçambicano/semiclaro para não ser igual a um branco qualquer/seminegro para jamais renegar/ um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue” (1995, p. 92). Poeticamente, afirma-se a interrelação entre os diferentes signos identitários que fazem com que as heranças do pai sejam celebradas pelo eu poético que se afirma “UM Craveirinha moçambicano!” (1995, p. 95).

Na visão do poeta, a união da mãe ronga com o pai português, o fato de o pai nunca haver desprezado os filhos nascidos dessa relação e ter permanecido em Moçambique, habitando o meio humilde suburbano, são motivos para que sejam conclamados os gestos de ternura que constroem uma história pessoal marcada pelo amor do poeta às tradições populares de sua terra natal. Não é por acaso que, na obra poética de Craveirinha, a feição revolucionária de alguns de seus poemas conviva com os sentimentos de amor ao pai português e que os experimentos de linguagem nasçam da fértil convivência entre as línguas orais africanas com o português e da firmeza com que o poeta afirma o seu “não cicatrizado/ ronga-ibérico afro-puro-coração” (1995, p. 95).

A feição oralizante, perceptível em muitos textos de José Craveirinha, extrapola, portanto, a feição revolucionária marcante na época em que muitos dos poemas de seus primeiros livros foram escritos. É possível afirmar que Craveirinha, participante ativo da causa revolucionária do seu país, pratica via literatura um forte compromisso com a afirmação da moçambicanidade, com as feições de sua terra natal. Sua escrita, entremeada por sons e gestualidades, conclama as tradições sonoras de seu país, as batidas do tambor de pele curtida que promovem a “consumação da grande festa do batuque”, como expresso no poema “Quero ser tambor” (1995, p. 107-108). O aspecto fundacional é, portanto, uma característica marcante da poesia que coloca José Craveirinha, junto de Noémia de Souza, na tradição de uma poética transgressora, que distende a língua do colonizador para inscrevê-la, de fato, nos novos espaços para onde foi levada.

A poesia transgressora desenvolvida por José Craveirinha e por outros poetas moçambicanos, no final dos anos 1940 e início da década de 1950, em Moçambique, permite que se recorra ao que afirma Jacques Derrida (1996), quando cunha a expressão “passage de la limite” para caracterizar uma escrita que se faz como uma apropriação apaixonada e desesperada da língua, através de um trabalho que, ao mesmo tempo, deforma, reforma e transforma. Escrever literatura significa, portanto, para os poetas transgressores moçambicanos da geração de Craveirinha, africanizar as heranças ibéricas e domar a língua do colonizador com os ritmos que “tchaiam com gosto os queixos da terra”, como expressam os versos do poema “Tchaiam estes versos, tchaiam” (1995, p. 40).

Patrick Chabal, na introdução do seu livro Vozes moçambicanas (1994), define as principais características do que ele chamou de literatura da moçambicanidade, definindo-a como um conjunto de textos produzidos com a intenção de marcar a diferença entre a literatura produzida em Moçambique como extensão da européia e aquela em que as vozes da terra africana afloram no texto escrito. Para caracterizar algumas feições importantes dessa literatura, Chabal refere-se a alguns marcos identificadores do fazer literário dos poetas e poetisas transgressores. Um deles seria a consciência de pertencimento a uma cultura que tem suas próprias expressões; outro, a busca de formas específicas de uso da língua escrita que não interditam as interferências da oralidade. Essa insistência no uso de formas transgressoras de uso da língua do colonizador ressalta, ainda e inconscientemente, significantes da luta pela libertação do país das peias da colonização. Essa feição fica manifesta na rebeldia de inscrever na escrita os sotaques da oralidade, as sonoridades que habitam as línguas faladas pelo povo. Essa intenção está em muitos poemas de José Craveirinha, marcando “a intermitência dos sons que circundam o perímetro da palavra”, como expressa o verso de poema do poeta moçambicano, Luís Carlos Patraquim, publicado no livro Moção (1980, p. 13). Há também, no fazer poético de Craveirinha, a intenção de tomar a escrita com a mesma potência que habita o traço do pintor. A letra imita o pincel e pinta cenas na folha em branco, muitas vezes para acalmar o “vício obsceno de sonhos” (1995, p. 39) que contagia o poeta.

No livro Karingana ua karingana (1995), alguns poemas agrupados na parte Fabulários 1945 – 1950 conclamam recursos (sur)realistas para captar cenas do cotidiano colonial em Moçambique. Privilegia-se, nos poemas dessa parte, a economia verbal e a instigação à reflexão sugerida pelos temas dos poemas. Esse recurso está presente no poema “Machimbombos” (p. 26) em que os versos apreendem os ônibus que transitam pelas ruas de Lourenço Marques, captando imagens que exploram a concretude dos veículos e impressões que deles emanam. Detalhes dos ônibus misturam-se aos de mulheres africanas para compor uma cena em que se registram cores, formas e incômodos, na composição do poema:

Nas tépidas ilhargas
dos mchimbombos os frutos
silvestres aos cachos vão amadurecendo
ao mobiloil do desespero no estribo
enquanto o alcatrão
da rua em comissuras de saibro
plagia o azimute das mamanas
perplexas na paragem
radical.
                   (CRAVEIRINHA,1995, p. 26)

Importante observar a intencional mistura de impressões sensoriais que o poema realiza. A lotação excessiva dos ônibus está sugerida pela expressão “desespero do estribo” e, de forma indireta, pela referência ao “azimute das mamanas perplexas na paragem radical”. O desconforto da viagem atormentada pelo calor não impede que as cores dos frutos espalhem a beleza que o poema faz questão de registrar. São importantes ainda os deslocamentos sugeridos pela palavra “ilhargas”, que, ao se relacionar intencionalmente com os ônibus, também se refere às mamanas, fundindo numa mesma imagem aspectos dos veículos e das mulheres.

O tom irônico marca o poema “Civilização” (p. 20), que considera a exploração do trabalho humano em diferentes tempos.

Antigamente
(antes de Jesus Cristo)
os homens erguiam estádios e templos
e morriam na arena como cães.

Agora...
Também já constroem Cadillacs.
                (CRAVEIRINHA,1995, p. 20)

Os versos do poema registram um processo que se repete em diferentes épocas: o trabalho realizado nem sempre é revertido em benefício daquele que o executa. A visão social do poeta fica evidente no poema e faz com que o recurso da ironia destaque uma forma de exploração que se renova ( e se mantém) em cada época. Não deixa de ser bastante irônico o título “Civilização” dado ao poema. A civilização é descrita como cenário de exploração que determina que os que constroem “estádios”, “templos” e ”cadillacs” sejam sacrificados na arena “como cães”, pelo capital.

Patrick Chabal destaca como característica marcante das literaturas africanas de língua portuguesa a vertente social e a reflexão sobre a situação de submissão imposta aos africanos pelos colonizadores. A visão crítica sobre essa situação está presente em movimentos de conscientização do negro, como o Renascimento do Negro, surgido nos Estados Unidos no início dos anos 1920 e a Negritude, que surge em Paris, na década de 1930. Tais movimentos devem ser avaliados em sua repercussão direta ou indireta no continente africano. Intimamente relacionados com a redescoberta do continente africano, estimulada por publicações antropólogos, como Leo Frobenius, e historiadores, como Maurice Delafosse, tiveram importância reconhecida na formação do nacionalismo africano e das literaturas nacionais que se desenvolveram, seguindo as aspirações desses movimentos.

Os vários estudos que propiciaram um conhecimento mais amplo da diversidade de culturas africanas refletem-se na revista Présence Africaine, criada em 1947, que revelou ao mundo a produção teórica e literária dos escritores negros africanos, antes mesmo que muitos deles pudessem ter sua obra publicada em África4. É possível afirmar que Craveirinha, como tantos outros escritores africanos, mesmo não pertencendo efetivamente aos movimentos de conscientização do negro como a Négritude, através de seus poemas revelou ao mundo os cenários de uma África desconhecida, mitigada pela colonização. E nesse sentido, muitos dos poemas de José Craveirinha assumem a autovalorização como estratégia para contestar as diferentes formas de assimilação impostas pelo sistema colonial.

Refletindo sobre a importância da literatura na formação da nacionalidade africana, o teórico angolano, Mário Pinto de Andrade, considera passo importante para a conquista da África pelos africanos a produção de textos literários ou não que propiciassem a “autoconsciencialização da cultura africana na sua globalidade, da civilização africana e das diversas culturas no quadro continental” (1997, p. 71). Se entre os componentes da “Geração de Cabral”, a que pertenciam, além do próprio Amílcar Cabral, outros escritores africanos que estudavam ou viviam em Lisboa nos anos 50, a ordem era conhecer a África, afastando-se dos estereótipos e preconceitos disseminados pela colonização, em cada uma das ex-colônias portuguesas, o mesmo incentivo motivava os escritores a defender as expressões culturais de cada espaço. Moçambique não foge à regra e assim podem ser entendidos os esforços desenvolvidos por Craveirinha e por escritores e poetas que se manifestavam através dos jornais Itinerários, O Brado Africano e da iniciativa de Msaho, no primeiro (e único) número em busca de uma literatura de feição nacional. É essa característica que leva Chabal (1994) a afirmar que a moçambicanidade é um produto literário, uma vez que coube a escritores como José Craveirinha e Noémia de Souza e a artistas como Malangatana Valente, num primeiro momento, definir os passos a serem trilhados pela literatura e pelas artes plásticas, em Moçambique, na busca de uma identidade particular.

A experiência literária de feição negritudinista é, neste sentido, um caminho que assegura o contato dos escritores com as idéias que propiciavam um conhecimento mais profundo da África e a contestação de uma visão preconceituosa sobre os africanos e sua cultura. Essa experiência, mesmo de forma indireta, está na base do nacionalismo africano ainda que esse tenha assumido em diferentes momentos características peculiares. A volta simbólica à África, preconizada pela Négritude, valoriza a musicalidade presente na vida do africano, a flora, a fauna e os costumes ancestrais e incentiva o orgulho de ser negro, acolhendo as tradições étnicas africanas, absorvendo-as em novos arranjos criativos.

Um sentido forte de pertença passa, então, a caracterizar o modo como a literatura se alia aos projetos de construção da nação. José Craveirinha, mesmo não aderindo de fato aos pressupostos da Négritude de Aimé Césaire ou de Léopold Senghor, não desconheceu a produção teórica e literária desses autores, pois ela circulava pela África de língua francesa e de lá se expandia para outros espaços africanos. Os apelos negritudinistas que incentivavam os negros a se assumirem como africanos iam contaminando artistas, teóricos escritores e escritoras que buscaram, nas diferentes tradições étnicas do continente, uma forma de contestação aos valores impostos pelos diferentes sistemas de colonização dominantes em África

A observação de Patrick Chabal (1994) sobre a presença da Négritude no continente africano é importante:

Embora nas colônias africanas portuguesas a negritude nunca tenha tomado a forma amplificada e exaltada que assumiu no império francês, houve um processo semelhante, mesmo que não tenha havido “influência direta”. A negritude é dessa forma, a mais explícita e manifesta fase de nacionalismo cultural que se pode encontrar na literatura africana moderna (p. 55).

Seguindo direção apontada por Chabal, pode-se afirmar que José Craveirinha, sem ter sido negritudinista de fato, assumiu alguns dos pressupostos do movimento ao exaltar os valores das culturas africanas, deixando aflorar em seus poemas um eu que se orgulha de ser negro, nos sentidos que o termo assumia na época. Negro como o africano; negro como o colonizado.

No livro Xigubo (1980), dedicado a um teórico da negritude de língua francesa, Claude Couffon, o poema de mesmo nome exalta as manifestações guerreiras e a exuberância dos negros que “dançam as danças do tempo da guerra/ das velhas tribos da margem do rio” (p. 9). O ritmo do xigubo, a dança guerreira que o poema celebra, está também reiterado nos apelos onomatopaicos: “Dum-dum!/Tantã!”, na marcação do som do tambor e da cadência dos guerreiros que “rangem os dentes na volúpia do xigubo”. A intenção de associar a virilidade dos guerreiros que executam a dança milenar com a força de uma linguagem marcada pelo som dos tambores revela a intenção do poeta de assumir a musicalidade da dança como recurso poético. A força dos guerreiros se irmana ao ritmo dos tambores que marcam o ritmo da dança e do poema: “Xigubo estremece terra do mato!” (p. 9)

Em outro momento do mesmo livro, no poema “Grito negro”, já referido, a exploração intencional da imagética é a forma de o poeta explicitar a violência do trabalho imposto ao colonizado. A imagem do negro-carvão ressalta a transformação do homem em objeto, condenando o sistema de exploração levado à África pelos colonizadores europeus:

Eu sou carvão
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu Irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!
             (CRAVEIRINHA,1980, p. 13).

Ainda aqui, a imagem é o elemento que propicia uma maior visibilidade do negro, submetido à exploração desumana que o transforma em carvão retirado da mina. O corpo que se esfalfa no trabalho confunde-se com o produto que propicia a riqueza do patrão. No entanto, se saber-se explorado, num primeiro momento, não altera a situação do dominado –“Tenho que arder/E queimar tudo com o fogo de minha combustão” (p. 14), o ver-se como “negro-carvão” é, contudo, a afirmação da consciência da exploração a que o negro está submetido. Logo, um impulso à luta que poderá alterar a situação vivida. A consciência da perda da condição humana, substituída pelo produto que o explorado é obrigado a produzir, é motivação à luta para alterar a situação vivida. Os deslocamentos de sentido que podem ser alocados na palavra combustão, no verbo arder, e principalmente no verso: “Até não ser mais tua mina patrão” (p. 13) indicam, no poema, um processo de luta em construção.

No poema, “África”, os conflitos advindos da colonização, que despersonaliza o africano, impondo-lhe outros valores, outras crenças e uma outra história, percorrem os versos. A violência disseminada contra os africanos, contra os oprimidos é ressignificada por recursos acústicos mais uma vez buscados na referência aos tambores tribais, que insuflam os guerreiros:

E ao som másculo dos tantãs tribais o eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a tácita harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.
                                      (CRAVEIRINHA, 1980, p. 17).

Uma característica marcante da poesia negritudinista está registrada pelo erotismo com que o poeta ressignifica a natureza. Com freqüência, a natureza é descrita com apelos eróticos que sugerem fecundação, cio e a germinação constante de novos seres. No poema “África”, a força de uma beleza “rácico-cultural-linguística”, na feliz observação de Ana Mafalda Leite (1991, p. 32), procura marcar a semelhança entre o eu que se anuncia no poema, tendo ressaltados seus traços africanos: “Em meus lábios grossos fermenta/a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África” (p. 150 - a África, lugar de pertencimento desse sujeitoça. A contestação aos valores impostos pela colonização que o eu-poético rejeita é, paradoxalmente, a motivação para que o esplendor da África seja ressaltado no poema.

Outras tendências negritudinistas afloram em outros poemas do mesmo livro. No poema “Hino à minha terra”, as referências toponímicas reforçam a intenção de registrar os dados da terra. O recurso poético da nomeação é a forma de permitir que a força do dizer remarque espaços. Dentre os vários espaços que o eu-lírico saúda, está Michafutene, o lugar de origem da mãe ronga, a transmissora dos saberes que foram interditados ao poeta, ao substituir a língua materna pela língua do pai português. Para vincar no texto os espaços africanos, o sujeito-poético grita os nomes que “afluem doces e altivos na memória filial” (1980, p. 21), desnudados na exata pronúncia de sua beleza. Ao conclamar os nomes africanos, a voz-lírica de certo modo assume o poder mágico da nomeação e os lugares nomeados recuperam sua identidade num contexto em que foram apagados e negada a visibilidade de seus habitantes e de seus costumes. Mais que isso, ao gritar os nomes, reforçam-se os elos entre a letra com que o poeta escreve o poema e os sons articulados pelas línguas nativas conclamadas para compor o hino de amor à África, e a “todos os nomes que eu amo belos na língua ronga”(p. 22). A reiteração do adjetivo belo, aposto aos toponímicos do espaço moçambicano, reforça a intenção do poeta de tornar real o seu lugar de pertença:

Oh! As belas terras do meu áfrico País
e os belos animais astutos
ágeis e fortes dos matos do meu País
e os belos rios e os belos lagos e os belos peixes
e as belas aves dos céus do meu País
e todos os nomes eu amo belos na língua ronga
macua, suaíli, changana,
xítsua e bitonga
                               (CRAVEIRINHA,1980, p. 22)

O poema recorre à sonoridade dos nomes africanos para reiterar a intenção clara de nomear espaços africanos descritos por detalhes da fauna e da flora. Por outro lado, na interação entre a língua portuguesa, a língua do pai, mas imposta pela colonização, e as línguas nativas saudadas pelo grito poético que as conclama, pode-se observar a mesma estratégia de aproximação que aparece no poema “Ao meu belo pai ex-imigrante”. No espaço desse poema, como já acentuado, aproximam-se as diferenças sem que os conflitos advindos dessa aproximação sejam apagados, aliás são esses conflitos que legitimam a escrita do texto. A voz lírica nomeia as misturas, mas acentua o lugar cultural onde seu discurso é produzido: “eu um mais novo moçambicano”, gerado no ventre de uma tombasana, por um português puro, diz o poema. Como se percebe, no poema “Hino à minha terra”, as línguas nativas, como o ronga, habitam o espaço poético e confirmam uma tradição literária em que a “exacta pronúncia” dos nomes conclamados em línguas africanas legitima o uso possível da língua herdada da colonização.

Como afirma Rita Chaves, o poeta concretiza um texto poético

de coexistência entre elementos que podem coexisitir, abrigando em “belo português (...) as formas que vêm das línguas nacionais, não para fins de adorno, mas porque delas depende a expressão de certos sentidos (1999, p. 145).

A resistência, no nível da escrita literária, faz-se semelhante a experiências de linguagem, criadas em outros espaços colonizados. A subversão da língua do dominador é provocada por vários atos de contravenção que o escritor realiza. Um deles é a solapagem do sistema da escrita motivada pela incrustação de sons herdados da oralidade; um outro impõe os ritmos da fala à escrita poética, invadindo-a com sonoridades próprias dos lugares para onde as diferentes expressões culturais africanas foram levadas, junto com os escravizados, e foram ali ressignificadas por seus descendentes africanos.

Essa prática de desmonte da língua do colonizador foi incentivada pela proposta negritudinista como forma de demonstrar que a luta identitária não pode se furtar à dignificação do negro assujeitado pela violenta descaracterização imposta pelo sistema colonial. Durante a escravidão os africanos que foram escravizados significavam apenas a força necessária ao trabalho; na colonização imposta em África, os naturais da terra foram expurgados de seus direitos e submetidos a um processo de assimilação que visava apagar os traços africanos da cultura “com a única verdade dos seus evangelhos”, como afirma um verso do poema “Africa”. Daí que a ênfase no detalhamento da diferença seja vista como uma proposta de recuperação dos vínculos do homem africano com a sua terra. Em “Hino à minha terra”, Craveirinha opta por ressaltar os referentes sonoros: “a música da timbila e do xipendana” e o som da xipalapala” (p. 23); os gustativos: “o ácido sabor da nhantsuma doce/o sumo da mampsincha madura” (p. 23); os visuais :“o amarelo quente da mavúngua” (p. 23) e as tradições que legitimam as danças e os rituais. A terra africana é apreendida pelos componentes de suas riquezas naturais e humanas e pelo erotismo de suas formas soberbas:

E o som da xipalapala exprime
os caninos amarelos das quizimbas ainda
mordendo agudas glandes intusmescidas de África
antes da circuncisão ébria dos tambores incandescentes
da nossa maior Lua Nova.
                                           (CRAVEIRINHA, 1980, p. 23)

A descrição da terra se acentua pela exploração de detalhes que a tornam soberana e se faz, ainda que inconscientemente, próxima dos anseios da poesia negritudinista quando essa insiste na revigoração da identidade negro-africana pela retomada dos traços culturais agredidos pela colonização. A afirmação da identidade africana, moçambicana tem, portanto, em determinado momento histórico um sentido terapêutico. É preciso curar a apatia imposta pela assimilação. É necessário revigorar os vínculos que ligam os africanos ao seu espaço cultural.

Por isso é interessante observar, na poesia de José Craveirinha, a insistência com que os elementos da oralidade são conclamados para a composição do poema, criando um espaço de confluência entre as tradições orais africanas e a herança européia encaminhada pela escrita. O conflito entre esses sistemas fica exposto, mas não se desfaz, transforma-se em motivação poética. A escrita poética não silencia as vozes da oralidade, antes as recupera para produzir um texto sempre em dispersão, que não cala as sonoridades da fala, ainda quando os clamores sociais mostram-se na superfície do poema. Nesse processo, a insistência na nomeação de lugares moçambicanos, como em “Hino à minha terra”, na afirmação de dados da cultura africana é, talvez, o recurso mais evidente na poesia de José Craveirinha. Entretanto, importa também destacar, no seu processo poético, outros recursos que evidenciam a preocupação maior de reconfigurar espaços e situações que foram degradados pela imposição de valores que soterraram os significantes africanos.

Pires Laranjeira (1995) chama a atenção para os processos de nomeação presentes na poética de Craveirinha como forma de demarcar, na corporeidade do indivíduo - como se pode ver no poema “Manifesto”, e no corpo da nação, as peculiaridades negras que os caracterizam.

No poema “Manifesto”, largamente estudado pela crítica, o sujeito poético se anuncia detalhando os predicados que o configuram como negro: “Meus belos e curtos cabelos crespos/ e meus olhos negros como insurrectas/grandes luas de pasmo na noite mais bela”(1980, p. 33). A caracterização do eu-negro, “Oh! E meu peito da tonalidade mais bela do breu” (p. 34), aos poucos incorpora em si predicados que não são apenas do homem negro, mas da diversidade da cultura africana. Ser negro não é condição apenas do eu que se mostra no poema, pois distende-se para o coletivo. Na última estrofe do poema, o eu que liricamente se anuncia dispersa-se em outros, mostra-se em diferentes eus para assumir a diversidade etno-cultural moçambicana e africana.

Ah! Outra vez eu chefe zulo
eu azagaia banto
eu laçador de malefícios contra as insaciáveis
pragas de gafanhotos invasores
Eu tambor,
u suruma
Eu negro suaili
Eu Tchaca
Eu Mahazul e Dingana
(...)
                       (CRAVEIRINHA, 1980, p. 35).

Assim, o recurso da nomeação dos significantes africanos e os mecanismos de inserção das línguas orais na escrita do poema “Manifesto” estabelecem diálogos entre a escrita e os referentes culturais. Ao mesmo tempo, os elementos da oralidade são conclamados para que a escrita se realize, para que seja possível concretizar a “impoética poesia”(p. 52), anunciada no poema “Msaho de aniversário”, construída de letras e sons, de grafemas e recursos acústicos.

Nesse sentido, a poesia foi instrumento utilizado por José Craveirinha para traduzir o espaço cultural africano, moçambicano, e assim recuperar, em sua produção literária, os espaços e as paisagens descritas com recursos poéticos de excepcional sensibilidade.

Notas

1 - O artigo foi publicado, em 1ª. Versão, na revista Scripta, v. 6, do Programa de Pós-graduação da PUC Minas, em 2003. A versão atual apresenta pequenas interferências, correções e atualizações de dados.

2 - Depoimento do músico João Domingos publicado no Jornal Domingo, de Maputo, edição de 16/02/2003.

3 - Essa afirmação está presente em várias falas dos que homenagearam o poeta na cerimônia realizada no Conselho Municipal de Maputo, no dia 10 de fevereiro de 2003.

4 - Refiro-me à obra José Craveirinha – Antologia Poética (2010), organizada por Ana Mafalda Leite.

5 - Em entrevista dada pelo poeta a Omar Thomaz e Rita Chaves, publicada em 2003, Craveirinha confirma a interdição de falar ronga na casa do pai e da madrasta, dizendo: “Sim, tinha que falar português e a minha madrasta não admitia que falássemos na nossa língua africana. Até mesmo os empregados domésticos estavam proibidos de falar conosco em ronga” (2015).

6 - Ver a este respeito as informações dadas por Mário Pinto de Andrade em suas declarações a Michel Laban (1997).

Referências

CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas; literatura e nacionalidade. Lisboa: Vega, 1994.

CHAVES, Rita. José Craveirinha, da Mafalala, de Moçambique, do Mundo. Revista Via Atlântica, n. 3, 1999. P. 140 – 168.

CRAVEIRINHA, José. Xigubo. Lisboa: Edições 70. 1980.

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Doutora em Literatura Comparada pela UFMG, estágio na Université de La Sorbonne Nouvelle, Paris (1982/1983 e 1992). Professora Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995 – 2018. Autora dos livros: Brasil afro-brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas africanas de língua portuguesa: percursos da memória e  outros trânsitos (2008); Mia Couto: espaços ficcionais (2008); Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Co-organizadora da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Volume 4. (2011). Coordena, desde 2010, o Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas (GEED) que congrega pesquisadores de vários estados do Brasil e de várias cidades de Minas Gerais. A partir de 2021, coordena a seção literÁfricas, no literafro/UFMG, que tem como objetivo transformar-se em um canal de acervo, multiplicação e socialização de artigos críticos, resenhas, entrevistas e textos literários de escritores(as) africanos(as) e afrodiaspóricos(as).

 

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