Realismo afetivo em Predadores

Alice Botelho Peixoto*

 

Na história da literatura angolana, Pepetela tem seu projeto literário consolidado por romances que exploram, de forma contundente, a temática da construção nacional. O autor Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos participou de muitos dos eventos que marcaram a história recente do país, inclusive lutando ao lado do Movimento pela Libertação de Angola (MPLA) pela independência e consolidação da república angolana. Sua formação acadêmica em sociologia e sua experiência no terreno da luta armada lhe conferem um lugar privilegiado como observador das profundas mudanças que o país atravessa nas últimas décadas. No entanto, suas obras não são relatos, testemunhos nem escritas protagonizadas pelo eu. Seus romances, apesar de terem Angola como assunto incontornável, apresentam questionamentos humanos essenciais. A moral, a ética e a política, como condutas que organizam a vida em sociedade, são as temáticas que fundamentam o grande tema que é história nacional de Angola. Assim, colonialismo, independência, guerras e utopias servem de mote ficcional, aproximando a obra da realidade histórica e cotidiana do país.

O romance Predadores, nosso corpus, conta a história de Vladimiro Caposso, que de filho de um praticante de enfermagem chega a empresário de sucesso, de muito dinheiro e poder. A história recente do país faz parte da trama, Angola conquista a independência, enfrenta a guerra civil e tenta se construir alinhada ao bloco soviético. Esse contexto marca ironicamente a história de Vladimiro, pois seu sucesso é contra os princípios políticos e econômicos pregados pelo Estado socialista. O romance é dividido em vinte capítulos, datados de 1978 a 2004, que não se sucedem na cronologia. Enquanto Vladimiro galga seu caminho, conhecemos outras histórias que compõem o cenário de uma sociedade profundamente desigual. A intimidade da ficção com a realidade, nesse romance, suscita questionamentos acerca da persistência de uma estética de aspectos realistas.

Assim, observamos, nessa obra, a manifestação de uma “intenção realista”, segundo a abordagem da pesquisadora de literatura Tânia Pellegrini, que investiga “a persistência do realismo como técnica expressiva”, que esteticamente opera “uma refração da realidade e não uma cópia, uma ‘imitação’ ou mesmo uma ‘interpretação’.” (PELLEGRINI, 2009, p. 11). Pellegrini destaca a confluência entre a temática nacional e a técnica realista especificamente na literatura brasileira, mas também em “outros Estados em formação ou em transformação” (PELLEGRINI, 2012, p. 11), como um “caráter interessado” das manifestações literárias.

A encenação crítica que o romance Predadores faz do desencanto nacional mostra que, como discute Pellegrini,

As intenções realistas, mescladas a esse caráter interessado, em sua maioria sempre foram — e ainda são — miméticas e documentais, revelando-se como possibilidade não apenas de representação estética, mas também de intervenção ética e política no mundo real. (PELLEGRINI, 2012, p. 11).

Seguindo o pensamento de Pellegrini, interpretamos a crítica social, como será explicado, como sendo uma manifestação dessa “intervenção ética e política no mundo real”, realizada pelo romance Predadores. Dessa forma, analisando algumas estratégias narrativas do romance, interpretamos a feição realista da trama de acordo com o efeito de igualdade, segundo Rancière (2010). Mas observamos principalmente que dessa encenação crítica surte um efeito de um realismo denominado afetivo, segundo estudo de Schøllhammer (2012). Para tanto, analisaremos algumas questões relativas à guerra civil angolana e seus reflexos na literatura.

Embora Predadores não encene o campo de batalha das guerras angolanas como nas obras do mesmo autor, Mayombe e A Geração da Utopia, a guerra e a violência estão nele presentes. Inocência Mata alude às referências explícitas “ao contexto exterior ao texto nessa escrita da nação” (MATA, 2008, p. 75), o que possibilita levar em consideração as indicações das datas que marcam o início de cada capítulo, numa espécie de diário desordenado. As histórias se passam entre 1978 e 2004, portanto a maior parte delas acontece no período da guerra civil angolana. Sabemos que a independência de Angola foi proclamada oficialmente em 11 de novembro de 1975 e que a guerra civil, entre os vários tipos de conflitos armados ocorridos após a independência, se estendeu por décadas, só terminando em 2002.

Na trama, é recorrente a preocupação de Bebiana, esposa do protagonista Vladimiro Caposso, com os filhos para que esses não sejam obrigados a se alistar e participar diretamente na guerra. Os capítulos oito e nove, ambos datados de junho de 1998, explicitam a violência da guerra civil, como a narração sobre Simão Kapiangala, aqui estudado como um exemplo do realismo afetivo. A mutilação, o abandono e o fim trágico desse personagem demonstram o compromisso do texto literário com a encenação de situações que mostram a decepção do narrador com o que se tornou a nação angolana. Simão pode ser visto como a imagem da derrota de um povo por quem e em nome de quem tantas batalhas foram travadas. Mata explica:

Com o labor implosivo da actual produção angolana, a nação está a emergir como corpo fracturado, dilacerado por ‘dissensos’, crises e guerras, porém mostrando as suas várias vozes e margens e diferenças de que as suas diversas agências já não abdicam. (MATA, 2008, p. 82).

Simão é atropelado fatalmente por Ivan, filho de Caposso. Além das malandragens do pai para safar o filho da prisão, o ambiente violento da guerra ganha destaque com a representação dos veteranos mutilados e da profunda miséria urbana de Luanda. Para Ivan, que foge do local do atropelamento sem prestar socorro, a justificativa foi: “- Juro, julguei ser um cão, foi tudo tão rápido – disse Ivan, quando o inspector fechava a porta da cela. - Acredito, mas era um mutilado de guerra muito conhecido aqui em Luanda, Simão Kapiangala” (PEPETELA, [2005]/2008, p. 163), responde o inspetor. Ao que o narrador friamente acrescenta:

Ivan disse não vi julguei era um cão, e acredito foi sincero mas estava enganado, Simão Kapiangala nem cão era para a maior parte dos que passavam ali. Para um cão olha-se, pode se pensar é um rafeiro cheio de sarna, mas vê-se, faz-se notar, ao passo que com ele as pessoas pressentindo a presença e incomodados por ela, desviando logo a vista para o lado, fazendo esforço para não terem visto. (PEPETELA, 2008, p. 173).

Friamente, mas não de forma isenta, o narrador posiciona-se claramente ao dizer “acredito” e emite sua opinião ao desfazer a comparação sugerida por Ivan, quando este diz ter confundido o mutilado com um cão. O narrador desfaz essa comparação ao assumir o ponto de vista dos que passam pela rua, indiferentes ao estado de Simão. Nessa situação de pedinte, ignorado pelos olhares, o mutilado é menos que um cão, “nem cão era”, pois “para um cão olha-se”. Nessa descrição, o narrador faz uma dura crítica à sociedade, explicitando o descaso social para com o veterano mutilado. Ao expressar-se tão crua e cruelmente, o narrador assume uma crítica sobre uma conjuntura social que ultrapassa os limites da narrativa. O romance demonstra assim estar comprometido com a sociedade da qual ele faz parte.

A crítica ganha peso se interpretamos o relato anterior como uma conclusão para a narração do caso de Simão Kapiangala. No início do caso, ficamos sabendo, pelo inspetor, que o atropelado era um:

antigo militar, mutilado de guerra, vivendo da mendicidade nas ruas de Luanda […] onde se punha no meio do trânsito, sem pernas, só um braço no ar, me ajuda irmão, [...] alguns mesmo parando para lhe atirar uma nota, ele sem pernas e sentado no chão nem que podia chegar à nota com o braço válido (p. 160).

Quando Ivan, expressando a frieza do jovem irresponsável que é, compara o antigo militar com um cão, ratifica a situação precária do mutilado. Mais adiante, somos informados de que foi em treinamento militar que Simão foi atingido por uma mina e que “o médico cubano fez milagres […] lhe amputou os restos de pernas que tinha e mais os fragmentos de braço direito […]. Ficou com dois pequenos cotos de coxa e sem coto nenhum no braço, foi mesmo amputado pelo ombro.” (PEPETELA, 2008, p. 165). Na passagem em que descreve o drama do personagem, o narrador nos coloca na perspectiva do médico a quem Simão culpava pelo seu estado: “[...] o médico ficou chocado, não pela ingratidão evidentemente desculpável mas pelo absoluto sofrimento que revelava.” (PEPETELA, 2008, p. 166). O narrador, como um fotógrafo abre a objetiva para melhor enquadrar a realidade, deixa-nos perceber que Simão não era o único mutilado abandonado pelo Estado, quando relata que:

E vinham polícias militares, apanhavam-no e aos outros mutilados que proliferavam nas ruas da cidade, os levavam como lixo para umas barracas longe do centro, onde davam rações de combate para comerem durante dois dias e depois os esqueciam para morrerem mais depressa. (PEPETELA, 2008, p. 167).

Mais adiante, o narrador acentua ainda mais o sofrimento do mutilado ao descrevê-lo sem as duas pernas, sendo o último a chegar de volta à rua onde era pedinte: “enrolando para rebolar sobre o asfalto incandescente, […] era sempre o último a chegar ao sítio do emprego, como dizia.” (PEPETELA, 2008, p. 168).

O panorama da vida de Simão fica completo com a descrição de sua moradia. O mutilado dormia num jazigo abandonado dentro do cemitério não muito distante de onde mendigava, local onde, às vezes, se escondia e ficava dias sem sair. Num episódio em que Simão se isola dentro de seu jazigo, o narrador dá espaço para a intromissão da consciência do personagem que se questiona sobre sua condição, refletindo que “essa vida de mutilado não tinha sentido” (PEPETELA, 2008, p. 172). Entretanto, ao pensar em se matar, Simão questiona sobre a situação de outros em estado ainda pior: “Mas como faz um tipo que não tem braços nem pernas?” (PEPETELA, 2008, p. 172). Dessa forma, descrevendo a situação dos miseráveis em diferentes momentos, usando do ponto de vista de outros personagens e incluindo a perspectiva de Simão sobre si mesmo, o narrador explicita a crueldade de uma sociedade desigual, onde destinos tão díspares como os dos contemporâneos Simão e Vladimiro são possíveis de acontecer. O narrador evidencia o espaço democrático que é Predadores ao incluir na trama esses dois personagens.1 Embora não tenham igual destaque, pois Vladimiro Caposso é o protagonista, podemos dizer que há igual dedicação narrativa, pois Simão Kapiangala acrescenta uma dimensão existencial à trama.

A densidade que tem a maneira como a história de Simão é narrada nos desperta para o efeito sensitivo que a obra produz, mostrando uma das facetas da “intenção realista” que perpassa o romance. Destacamos a força imagética da descrição do mutilado pedindo com seu único braço ao ar e rebolando, ao andar sem pernas, para voltar à rua onde mendigava. Essa potência da descrição narrativa desperta os sentidos do leitor. Embora seja possível pensar nos termos de uma “realidade refratada” e de um “efeito de igualdade” como expressão da democracia literária, que tem suas origens no realismo de Flaubert, ainda falta algo que nos explique mais sobre a “intenção realista” expressa no romance, quando os sentidos são despertados por tais descrições.

Assim, refletimos com Schøllhammer que, em seu artigo sobre o “Realismo afetivo”, investiga as expressões realistas nas artes e teoriza, com Hal Foster (1996), sobre um realismo do choque ou “extremo”, definindo uma estética:

que procura expressar os eventos com a menor intervenção e mediação simbólica e provoca fortes efeitos estéticos de repulsa, desgosto, e horror. Ou seja, a obra se torna referencial ou “real” nesta perspectiva na medida em que consiga provocar efeitos sensuais e afetivos parecidos ou idênticos aos encontros extremos e chocantes com os limites da realidade, em que o próprio sujeito é colocado em questão. A antiga utopia romântica de uma obra que se torna vida e uma vida que se converte em obra reaparece aqui em seu aspecto sinistro tocando no limite entre vida e morte. (SCHØLLHAMMER, 2012, p. 133).

A crítica social explícita, na história de Simão, a narração seca de sua mutilação e de seu atropelamento, choca o leitor pela forma crua como os fatos são colocados em cena do mesmo modo que choca o médico cubano: “o médico ficou chocado [...] pelo absoluto sofrimento que revelava” (SCHØLLHAMMER, 2012, p. 166). Nesse encontro extremo com os limites da realidade, aparece na obra o autoquestionamento do sujeito que reflete sobre sua existência. Quando Simão pensa em suicídio, revelando seus questionamentos existenciais, aparece sua profunda dor de existir. Nesse momento, a obra expõe o limite entre a vida e a morte, colocando-se no seu próprio limite, que é representar o irrepresentável, ou seja, representar ou encenar a impossibilidade da experiência da “coisa em Si”. Essa situação extrema experimentada pelo personagem evidencia a impossibilidade do encontro do sujeito de simbolizar certas experiências, pois seria ao simbolizá-las que o sujeito as experimentaria como reais e possíveis de superação. Por sua vez, o realismo se torna extremo quando a própria narrativa não consegue resolver, enquanto representação literária, aquilo que não pode ser simbolizado, no caso, a dor profunda do personagem que por um instante é capaz de atentar contra a própria vida. Por isso, “o Realismo extremo evoca a derrota da representação” (SCHØLLHAMMER, 2012, p. 136), ao mesmo tempo que através da representação ou da encenação literária, no caso do romance, procura reproduzir o que é o trauma do impossível encontro com o real.2

Ao questionar sua existência, Simão constata que sua condição podia ser ainda pior. A narrativa atinge um ponto delicado que seria a representação do limite entre a vida e a morte, ao encenar a dúvida do personagem que procura dar sentido a sua miserabilidade e, por fim, sua reconciliação com a vida. Não se trata de narrar um atropelamento ou a morte do personagem, como acontece, mas de buscar a representação do aniquilamento do sujeito. O “aspecto sinistro”, no caso, está na aproximação desse limiar entre existência e não existência. O relato da história do mutilado inclui alguns pontos que poderiam ser considerados como um clímax. Esses momentos de máxima tensão são, por exemplo, precisamente o “absoluto sofrimento” (PEPETELA, 2008, p. 166), “para morrerem mais depressa” (PEPETELA, 2008, p. 167) e a dúvida existencial relatada (PEPETELA, 2008, p. 172). O que se desprende da narrativa nesses instantes são experiências de sensações, por isso a obra provoca “efeitos sensuais e afetivos”. Finalmente, Schøllhammer dirá que esses efeitos afetivos correspondem a estímulos imaginativos. Ou seja, a obra se propõe como uma forma de experimentação possível da realidade na medida em que provoca sensações e estímulos imaginativos, pela imaginação e/ou pela representação.

Com as passagens narrativas que relatam os casos de Simão Kapiangala, como vimos, e de Kasseke, a seguir, percebemos possibilidades da manifestação literária do que Schøllhammer denomina de “realismo afetivo”. Como uma estética que vai “além da representação”, entendemos o aspecto sensorial que ressoa além do texto e o aspecto ético, como ressaltado por Pellegrini anteriormente, que demostra o compromisso do texto com algo além dele.

A situação em que vive Kasseke, menino de rua, amigo de Nacib, também denuncia a miséria urbana de Luanda, como expressa o sofrimento de Simão Kapiangala. Kasseke descreve a carência do seu “local de dormir” ao amigo:

O meu buraco não é de esgoto, quer dizer... Cheira mal, tem ratos e baratas, mas não é de esgoto de casas, é para a água da chuva. Está seco quase sempre. Só quando chove é que tem problema. Preciso dormir fora, na chuva mesmo, é melhor, lá dentro fica cheio de água (PEPETELA, 2008, p. 254).

Simão Kapiangala pode ser entendido como a encarnação da distopia nacional, configurada por um projeto de escrita da nação que não mais se filia à perspectiva nacionalista, mas à histórica, como diz Mata (2008, p. 75). Se acreditamos que o personagem Simão se relaciona com as guerras que de fato ocorreram em Angola, o caso de Kasseke comprova-se com uma notícia do jornal online Rede Angola, de 22 setembro de 2015, onde lemos o relato de um caso verídico. A manchete destaca: “Ritual de iniciação mata 32 rapazes. Mais de 150 pessoas foram hospitalizadas, a maior parte com infecções devido a circuncisão mal feita.” Entre esses 150 rapazes, temos “num caso, um pênis parcialmente amputado”. É também o que aconteceu com o menino Kasseke. Levado pelo pai para ser circuncidado de acordo com o costume tradicional, “no mato” (PEPETELA, 2008, p. 260), ele teve metade do membro amputado nesse ritual que já nem seguia tanto a tradição, com os adultos bebendo do “garrafão de vinho para as ofertas” (PEPETELA, 2008, p. 261). Ao relatar os detalhes da circuncisão mal feita, o romance alude a uma situação que parece ser comum em alguns países africanos onde ainda se mantém essa prática. Percebemos, nesse sentido, o aspecto de crônica de costumes que traz o romance. Vale trazer a confidência do menino ao amigo:

Quando estavam bem ganzados, mal que podiam andar, se lembraram eu tinha ido lá não era para ficar a ver eles a beber, mas para a circuncisão. Aí o outro foi buscar uma faca, disse põe aí a kinhunga em cima dessa tábua [...] Aí ele pegou na ponta esticou, assim é que se faz aqui no Dombe Grande, terra de muitos espíritos poderosos e zás, cortou. Só que em vez de cortar a pele da ponta, como se deve fazer, cortou mesmo pelo meio. Olha o sangue a escorrer. [..] Quando me curei, só ficou esse coto. (PEPETELA, 2008, p. 261).

Também nessa passagem, identificamos a expressão do “realismo afetivo”. Entendemos que, na experiência dessa feição realista, há uma experimentação sensorial e a fronteira entre real e representação desaparece. A narração produz uma experiência de realidade, por exemplo, Kasseke contando sobre o momento em que a faca cortou o seu pênis pelo meio. A passagem, em sua crueza, acentua características do que Schøllhammer denomina de realismo afetivo. O teórico explica o sentido de afetivo na denominação:

Na prosa contemporânea o impacto afetivo não surge em decorrência do supérfluo dentro da descrição representativa, senão em consequência de uma redução radical do descritivo, de uma subtração na estrutura narrativa da construção sintática de ação e da preeminência da oralidade contundente do discurso em procura do impacto cruel da palavra-corpo. (SCHØLLHAMMER, 2012, p. 139).

É o que percebemos nesse relato de Kasseke, de descrição enxuta, mas com alto poder evocativo que se dá a ver na cena. O recurso da oralidade é indiscutível, já que o discurso sai diretamente da boca do personagem, modulado pela sintaxe das frases no registro oral, assim como o léxico. O relato ganha em expressividade com a escolha da palavra kinhunga.

Considerando que Rancière, com base em uma consideração positiva dos excessos descritivos produzidos pelo estilo realista do século XIX, construiu sua teoria sobre o “efeito de realidade” como sendo “efeito de igualdade”, que permitiu a existência, no romance, de diversidade de personagens dotados de sentimentos e complexidade psicológica, é possível ver no romance de Pepetela o que o teórico denomina de democracia literária, em que “qualquer um pode sentir qualquer coisa” (RANCIÈRE, 2010). Ao expor as desigualdades da sociedade angolana, Predadores cria, no espaço da literatura, essa democracia literária sobre a qual teoriza Rancière, ao dar espaço a diversas histórias e personagens de diferentes extratos sociais. Por outro lado, entendemos que o “realismo afetivo”, teorizado por Schøllhammer (2012), se expressa numa forma de economia descritiva, ou de “redução radical do descritivo”, o que se adapta mais ao romance de Pepetela. Consideramos que os efeitos sensitivos só são produzidos em Predadores por essa ser uma obra de verdadeira democracia literária, no sentido dado por Rancière. O encontro de um “efeito de igualdade” que se expressa como um “realismo sensitivo” acontece quando entendemos que Predadores é um romance de caráter metarreflexivo, em que história e ficção estão uma dentro da outra. O pesquisador Robson Dutra, em sua tese de doutoramento, considera um efeito de espelhamento na obra de Pepetela, como uma metaficção historiográfica. Dutra explica:

Pelo espelhamento entre facto e ficto, este autor revisa e questiona ficcionalmente os anos que antecederam e sucederam a guerra colonial. Esta revisão se dá com o suporte da metaficção historiográfica que expõe as fissuras existentes no tecido histórico para que se evidenciem os fatos postos em questão face à realidade histórica de Angola. Pepetela o faz opondo a construção de uma ilusão ficcional à sua posterior desconstrução, que, por sua vez, revela ao leitor como a obra é engendrada, apoiando-se em sua memória em registros de uma História de que ele mesmo participou. (DUTRA, 2007, p. 98).

Quando, como expõe Dutra, é revelado ao leitor sobre a feitura da obra, há a encenação da escrita no texto literário. O próprio narrador atua na fronteira desse discurso que mescla ficção e história, a favor da literatura.

Assim, Schøllhammer destaca que a reflexibilidade da arte e da literatura no século XX expressa a realidade da própria obra que volta para si mesma e a cisão que existe entre a realidade e sua representação.

A “brecha entre o real e sua representação, canalizando e expressando assim sua realidade” (SCHØLLHAMMER, 2012, p. 130) caracteriza a história de Simão Kapiangala, por exemplo, por lidar com o extremo da representação, como visto neste texto, revelando uma experiência de realidade possibilitada pelo texto. Não se trata mais de discutir o que é real ou realidade ou verdadeiro, mas do que pode ser experimentado como tal.

É isto que Predadores possibilita. O romance é uma interface com a realidade.

Referências

DUTRA, Robson Lacerda. Pepetela e a elipse do herói. 210f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Coordenação de Pós-Graduação em Letras Vernáculos, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: <http://www.letras.ufrj.br/posverna/doutorado/DutraRL.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2015.

FOSTER, Hall. The return of the real. Cambridge: MIT, 1996.

LACAN, Jaques. Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Le Séminaire. Livre XI. Texte établi par Jacques-Alain Miller. Éditions du Seuil, 1973. Collection Essais – Points.

MATA, Inocência. Narrando a nação: da retórica anticolonial à escrita da história. In: PADILHA, Laura Cavalcante; RIBEIRO, Margarida Calafate (Orgs.). Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento, 2008.

PEIXOTO, Alice Botelho. Predadores: a crônica de uma nação. 2016 76 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Letras. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Letras_PeixotoAB.pdf> Acesso em: 9 ago. 2017.

PELLEGRINI, Tânia. Apresentação. Realismos: modos de usar. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 39, p. 11-17, jan./jun. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2316-40182012000100001&lng=pt&nrm=iso> Acesso em: 15 dez. 2015.

PELLEGRINI, Tânia. Realismo: a persistência de um mundo hostil. Revista brasileira de literatura comparada. n. 14, p. 11-36, 2009. Disponível em: <http://www.abralic.org.br/revista/2009/14/63/download> Acesso em: 10 jul. 2014.

PEPETELA, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008.

RANCIÈRE, Jacques. O efeito de realidade e a política da ficção. Tradução de Carolina Santos. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 86, p. 75-90, mar. 2010.

RITUAL de iniciação mata 32 rapazes: mais de 150 pessoas foram hospitalizadas, a maior parte com infecções devido a circuncisões mal feitas. Rede Angola, Agência Lusa, 22 set. 2015. Internacional. Disponível em: <http://www.redeangola.info/ritual-de-iniciacao-mata-32-rapazes/> Acesso em: 22 set. 2015.

SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 39, jan./jun. 2012, p. 129-148.
 

Notas

[1] O teor político do romance, assim como o comprometimento ético de seu narrador são elementos considerados, nesse estudo, como integrantes dessa faceta realista de que Predadores é exemplo. Em linhas gerais, o filósofo Jaques Rancière chama “de ‘democracia’ literária” uma organização literária em que “qualquer um pode sentir qualquer coisa” (RANCIÈRE, p. 2010, p. 79), ou seja, quando a personagens de diversos extratos sociais é concedido o direito de ter sentimentos.

[2] “O desafio, segundo Foster, é pensar a representação contemporânea como ao mesmo tempo “referencial” e “simulacral”, pois ela cria imagens literárias que são conectadas à realidade, mas também desconectadas, são simultaneamente reais e artificiais, afetivas e frias, críticas e complacentes. Para Hal Foster é essa mesma possibilidade de coexistência simultânea dos dois modos de representação que constitui o que denomina o “Realismo traumático”, uma imagem marcada pelo limite do que pode ser representado e ao mesmo tempo índice e arquivo dessa mesma impossibilidade. (SCHØLLHAMMER, 2012, p. 135).

* Alice Botelho Peixoto é professora, Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas. Artigo primeiramente publicado em CADERNO CESPUC DE PESQUISA. SÉRIE ENSAIOS, v. Ensaios, p. 35-43, 2018.


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