A Literatura Angolana

Maria Nazareth Soares Fonseca*

Carlos Ervedosa, no livro Roteiro da Literatura Angolana (1979), inicia suas considerações sobre a literatura de Angola, com o registro de expressões literárias que, “pelo desconhecimento da escrita, se tem transmitido, perpetuado e enriquecido oralmente ao longo de sucessivas gerações, sob a forma de contos, lendas, fábulas, provérbios e adivinhas”.1 Segundo o crítico angolano, a literatura oral, a oratura, interessou a vários pesquisadores desde o século XIX, quando surgem as primeiras publicações sobre pesquisas realizadas sobre expressões literárias orais características de regiões de Angola. Ervedosa destaca o livro de Manuel Alves de Castro Francina e Saturnino de Sousa e Oliveira, Elementos Grammaticais da Língua Nbundu, de 1864, que publicou provérbios na língua quimbundo, além de informar sobre as pesquisas realizadas por Héli Chatelain, no século XIX, que resultou na publicação das obras Gramática Elementar de Kimbundu ou Língua de Angola, que reuniu provérbios adivinhas e pequenos contos da literatura oral, chamada por Erverdosa de “literatura tradicional”, e a obra Folk-tales of Angola, com cinquenta contos populares de Angola. A obra foi publicada em 1894, em Nova Iorque, e vertida para o português e quimbundo, em 1964, com a inclusão de interpretação, anotações, além de ser comparada com contos orais de outras regiões da África.

Por outro lado, o crítico angolano Luiz Kandjimbo dá ênfase, em “Por uma breve história da ficção narrativa angolana nos últimos cinquenta anos”2, ao surgimento dos primeiros textos romanescos de autoria de naturais de Angola, integrantes da Geração de 1890, destacando Scenas de África3 e O Filho Adulterino, ambos de autoria de Pedro Félix Machado, filho de pai açoriano e mãe angolana. As obras de Félix Machado, referidas por Kandjimbo, foram publicadas na segunda metade do século XIX. O crítico informa ainda ter encontrado, em suas pesquisas, referências a textos narrativos produzidos por Joaquim Cordeiro da Matta, que, infelizmente, não foram publicados.

Ao propor compor uma história da poesia angolana, o crítico e escritor Manuel Ferreira (1988) considera que, em Angola, a poesia surge, na cena literária escrita, com a publicação do livro Espontaneidades da minha alma (1849), de autoria do angolano José da Silva Maia Ferreira (Luanda, 1827 - Rio de Janeiro 1847), sem deixar de assinalar a importância do Almanach de Lembranças (1851 – 1932) para a publicação de peças literárias escritas por angolanos e por portugueses radicados em Angola desde o século XIX. Nessa publicação, encontramos textos de José Cordeiro da Matta, autor do livro Delírios (1890) e de poemas como “Negra”, publicado na edição do Almanach de 1884, “Kicola”, que aparece na edição do periódico de 1988, e “Uma Quissama”, presente na edição de 18914. O Almanach de Lembranças, que passará a ser denominado Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, a partir de 1872, teve grande circulação em Angola, demonstrando que, além do jornalismo, a poesia era uma das expressões culturais a atestarem a riqueza das atividades culturais na Angola do século XIX.

A criação da imprensa e o surgimento do jornalismo

Carlos Ervedosa ressalta, em Roteiro da Literatura Angolana (1979), a importância da criação da imprensa em Angola, que permitiu o surgimento de publicações como o Boletim Oficial (Boletim do Governo-Geral da Província de Angola), fundado em 1845. O Boletim, “a par de documentos oficiais”,5 publicava crônicas de viagens através de Angola, trechos literários em prosa e verso, lançando, como acentua o crítico, sementes do jornalismo6, que surgirá com o primeiro periódico A aurora, em 1885, além de permitir que se conheçam peças literárias de autoria de angolanos e de portugueses radicados em Angola. Ervedosa destaca ainda o surgimento de semanários, como A Civilização da África Portuguesa, fundado por Urbano de Castro e Alfredo Mântua, em 1866, que persistiu até 1869 como “combativo defensor dos interesses econômicos e administrativos da Colônia, batendo-se igualmente pela abolição completa da escravatura e contra as prepotências de alguns governantes”.7

Na esteira desse importante semanário, aparecem, na segunda metade do século XIX, vários jornais angolanos de vida efêmera, como O Comércio de Loanda, de 1867, O Mercantil, de 1870, O Cruzeiro do Sul, de 1873 o Jornal de Loanda, de 1878, O Mukuarimi (palavra quimbunda que significa falador, maldizente), de 1888, e Os Concelhos de Leste, de 1891, criado, em Luanda, pelo português Dr. Alfredo Troni, autor do romance Nga Muturi, publicado em forma de folhetim, na imprensa de Lisboa, em 1882. O romance de Alfredo Troni constitui, na visão de Ervedosa,8 “um importante documento histórico-sociológico da vida de Luanda da sua época”.

O primeiro jornal fundado por africanos, O Echo de Angola, surgirá em 1881 e abrirá caminho para outros periódicos independentes a serem redigidos em quimbundo e em português. Seguindo o caminho aberto pelo O Echo de Angola, surgem O Futuro de Angola (1882), O Pharol do Povo (1883), O Arauto Africano (1889), Voz d’Angola Clamando no Deserto (1901), Luz e Crença (1902) e outros.

Os precursores no campo da poesia e do romance

No campo específico da poesia, Manuel Ferreira, na seção “Precursores”, do livro No Reino de Caliban II (1988), chama a atenção para os criadores que, no início do século XX, publicavam uma poesia de raiz angolana. Dentre os nomes destacados por Manuel Ferreira, ressalta-se Tomaz Vieira da Cruz, nascido em Portugal, em 1900, mas radicado em Angola, desde 1924, onde foi colaborador de vários jornais publicados no país. Além de Tomaz Vieira da Cruz, Manuel Ferreira (1988) situa, entre os precursores da poesia angolana, Geraldo Bessa Victor, nascido em Luanda em 1917, com poemas e contos publicados em várias antologias em língua portuguesa e francesa.

No campo da narrativa de raiz angolana9, deve-se considerar a publicação, na primeira metade do século XX, especificamente em 1929, do romance O segredo da morta – Romance de Costumes Angolenses, de autoria de António de Assis Junior, nascido em Luanda em 1887. Publicado em forma de folhetim no jornal luandense A Vanguarda, o romance é considerado por Ervedosa10 “um dos mais importantes testemunhos da sociedade africana dos fins do século XIX”. Luiz Kandjimbo11 observa que O segredo da morta “dava sinais de autonomia de uma verdadeira ficção literária moderna, devendo ser considerado o romance fundador” da tradição romanesca em Angola.

No mesmo período, seguindo a trilha aberta por Assis Junior, desponta o escritor Castro Soromenho, nascido em Moçambique, em 1910, mas “medrado em Angola desde mal saído do berço”, afirma a sua identidade de escritor angolano, porque considera que “a Angola devo a minha vida de escritor”, como declara em depoimento de 1960, feito na Sociedade Cultural de Angola. Segundo Ervedosa),12 Soromenho apresenta ao público leitor “suas reais dimensões de grande escritor com o romance Terra Morta, publicado pela primeira vez no Brasil, em 1949”. O romance aborda as difíceis relações entre os colonos portugueses e os africanos, no tempo da crise da borracha, no cenário da região nordeste de Angola. Após Terra morta (1949), Castro Soromenho publica A Chaga, em 1957. O romance Viragem só será publicado em 1970, dois anos após sua morte, em 1968.

Em 1951, o escritor e etnólogo Óscar Ribas, dividindo-se entre a criação ficcional e a recolha da tradição oral angolana, publica Uanga, em 1951. Dez anos mais tarde, em 1961, publica Missosso Literatura Tradicional Angolana, em três volumes, consagrando-se como importante referência aos estudiosos dos costumes e das tradições do povo de Angola e das relações que a literatura angolana estabelece com o universo da oralidade. Em 1952, em clima de intensa repressão e perseguições da PIDE13, Agostinho Neto publica, em período em que o país vivia o acirramento de censura e restrição da liberdade de expressão dos escritores e intelectuais, o conto “Náusea”. O conto é significativo por surgir em momento de “intervenção reduzida ao mínimo no domínio da ficção”, cedendo espaço à poesia que procura traçar os alicerces da moderna poesia angolana, como observa Luiz Kandjimbo.14

A defesa de uma literatura verdadeiramente angolana

Desde o início da década de 1940, fortalece-se, no campo da literatura angolana, difundida, na maioria das vezes, nas páginas dos jornais, o sentimento de pertencimento à terra angolana e a defesa de variadas expressões culturais do país. Em 1948, os “rapazes negros, brancos e mestiços que se tornavam homens”, segundo Carlos Ervedosa, bradam por uma poesia verdadeiramente angolana, envolvida com os ideais defendidos pelo Movimento dos Novos Intelectuais Angolanos. No mesmo ano, em Lisboa, é publicado o Boletim Literário Mensagem, da Casa dos Estudantes do Império. A publicação surge com textos de autores angolanos fortemente influenciados pelas correntes neorrealistas da literatura, do cinema e da pintura, pela Negritude de Aimé Césaire, Léon Damas e Léopold Senghor e ainda pelos escritores negros norte-americanos, sobretudo, Richard Wright, Countee Cullen e Langston Hughes e pelo negrismo poeticamente assumido pelo cubano Nicolas Guillén. Distanciando-se da proposta defendida pelos Novos Intelectuais Angolanos, poetas, como Alda Lara, de Angola, aderem ao saudosismo e à angústia característicos dos “exilados que, longe da terra natal, sonham com a hora venturosa do regresso”.15 As novas ideias estarão presentes no plano da antologia organizada por Mário Pinto de Andrade, que saíra de Angola, no final de 1948, em decorrência da perseguição da PIDE aos escritores, intelectuais e contestadores do colonialismo. A antologia, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro, intitulada Poesia Negra de Expressão Portuguesa, é lançada em Lisboa em 1953, com poemas de três poetas de Angola, dois de São Tomé e Príncipe, uma de Moçambique, além de um poema de Nicolás Guillén, em língua espanhola.

Ainda no campo da poesia, a primeira metade do século XX vê surgir, em Luanda, a “primeira manifestação coletiva de poesia moderna em Angola’, expressa na publicação, em Luanda, da Antologia dos novos poetas de Angola (1950), editada pelo Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola, com poemas de autoria de A. Leston Martins, António Jacinto, Cochat Osório, Ermelinda Pereira Xavier, Humberto da Sylvan, Lilian da Fonseca, Viriato da Cruz e Maurício Gomes, autor do famoso poema “Exortação”, que, tomando como referência propostas do modernismo brasileiro, clamava pela nova poesia de Angola. Como acentua Manuel Ferreira,16 os poetas da antologia pretendiam “quebrar os liames com uma poesia tradicionalmente virada para o colono ou para uma estafadíssima lírica gratuita”, propondo inserir suas criações “na dinâmica de uma nova problemática estética”. O lema “Vamos descobrir Angola”, que muitos atestam ter sido criado por Viriato da Cruz, nasce nesse contexto de conscientização e luta assumido pela literatura.

Em 1951, surge em Luanda, a revista Mensagem – a voz dos Naturais de Angola, publicação do Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola, e dela fazem parte muitos dos jovens poetas que estavam presentes na Antologia dos novos poetas de Angola de 1950. Mensagem, publicada apenas em quatro números, “os três últimos num só caderno”17, segue a trilha aberta pelo brado “Vamos descobrir Angola” e se torna o “marco iniciador de uma Cultura Nova, de Angola e por Angola, fundamentalmente angolana”,18 como se afirma no primeiro número da revista. Dentre os principais poetas da publicação estão Agostinho Neto, Alda Lara, António Jacinto, Ermelinda Pereira Xavier, Lilia da Fonseca, Mário Pinto de Andrade, Maurício Gomes, Viriato da Cruz19, além dos moçambicanos José Craveirinha e Noémia de Sousa e os portugueses António Mendes Correia e Augusto dos Santos Abranches. Os poetas de Mensagem cantavam, com voz própria, a terra angolana e as suas gentes, como pode ser constatado em poemas como “Kinaxixi”, de Agostinho Neto, em “Castigo pro comboio malandro”, “Carta dum contratado”, “Monangamba”, de António Jacinto e em poemas de Viriato da Cruz como “Sô Santo”, “Serão de menino”, “Makezo” e “Namoro”. A opressão administrada pelas políticas de controle da PIDE é denunciada em vários poemas dos poetas e poetisas que publicam nos poucos números da revistas que conseguiram ser editados.

A revista Cultura, publicação da Sociedade Cultural de Angola, terá 13 números publicados no período de 1945 a 1951. Seus colaboradores, poetas, ficcionistas e ensaístas anunciam-se como vozes de denúncia e protesto, ao cantarem os filhos de Angola e os dramas de Luanda com seus cenários de carências em que a vida, mesmo difícil, pulsa em resistência. Embora Cultura não estivesse, desde a sua criação, filiada aos pressupostos dos “Naturais de Angola”, exibe, sobretudo nos últimos números, ecos das ideias defendidas pelos chamados “novos poetas de Angola” e pelos defensores do brado “Vamos descobrir Angola”. O grande número de poetas e ficcionistas que publicaram nos números da revista Cultura – dentre eles, Agostinho Neto, António Cardoso, Costa Andrade, Ermelinda Pereira Xavier, Ernesto Lara Filho, Luandino Vieira (que ainda assinava José Graça), Mário António, Óscar Ribas - atesta o fortalecimento de uma literatura que se queria autenticamente angolana e atenta às demandas das vanguardas revolucionárias europeias e às rupturas e contestações do modernismo brasileiro, particularmente as que defendiam o uso, na literatura, da “língua do povo. A maior durabilidade da publicação propiciou a muitos escritores a oportunidade de apresentar aos leitores criações ficcionais que se voltavam aos cenários luandenses e angolanos, marcados pela violência da ocupação colonial. Em decorrência da intenção de denunciarem, via literatura, os horrores do colonialismo em Angola, muitos escritores serão mais seriamente perseguidos por sua atuação em ações contestatórias ao regime imposto pela ditadura de António Salazar às colônias portuguesas no continente africano.

É importante assinalar, pelos impactos que terá na literatura do país, a fundação do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), em 1956. Em sua direção, como afirma Rita Chaves (1999), estavam alguns dos escritores que se mostravam atuantes na conscientização do povo pela libertação do país. Poetas e escritores que participaram da revista Cultura terão seu nome grafado na história das letras e da libertação de Angola, como afirma Chaves (1999), ao considerar os nomes de Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz e Luandino Vieira, como exemplos de escritores que, em Angola, souberam associar as ideias de luta pela liberdade com formas de escrita literária inovadoras e esteticamente assumidas no campo da linguagem. Nesse sentido, Laura Padilha (2007) considera importante assinalar, no quadro da ficção angolana, a revitalização da maka20, tipo de narrativa que, conforme a estudiosa, foi explorada no romance de Assis Júnior, O segredo da morta. Padilha assinala o ressurgimento desse tipo de narrativa da tradição oral nas narrativas curtas de Arnaldo Santos, Boaventura Cardoso, Jofre Rocha, Luandino Vieira, Uanhenga Xitu e Pepetela.

Acompanhando os momentos significativos da literatura angolana. Carlos Ervedosa21 chama atenção para o fato de os primeiros anos da década de 1960 registrarem “um intenso movimento literário, nunca até ali presenciado”. A Casa dos Estudantes do Império, até o encerramento de suas atividades, em 1965, juntamente com a Sociedade Cultural de Angola e a Associação dos Naturais de Angola, apresentou ao público a produção dos escritores angolanos, através de seus boletins, jornais, revistas e mesmo com a publicação de livros e a realização de concursos literários, conferência, recitais. As publicações “Imbondeiro” e as edições dos próprios autores são responsáveis pela intensa atividade literária que se desenvolvia na época, mesmo com os impedimentos impostos pela censura e pelas ações da PIDE, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, responsável pela prisão de muitos escritores angolanos, pelo exílio forçado de outros e pela perseguição inclemente aos que assumiram a guerrilha, a partir de 1961.

Atividades literárias em época de censura severa

Em clima de incertezas e de grande tensão realiza-se o I Encontro de Escritores de Angola, sediado no Lubango, no período de 19 a 27 de janeiro de 1963, com a presença de 36 escritores. Apesar das dificuldades do contexto em que se realizou esse encontro de escritores, ele teve o mérito de reconhecer a literatura verdadeiramente angolana e legitimar, como acentua Ervedosa,22 “a existência e o valor duma literatura que vinha sendo, até aí, intencionalmente ignorada”, porque fora encoberta pela literatura colonial, designação adotada a partir da década de 1960 em substituição à designação literatura ultramarina. A literatura colonial era reconhecida pelo Estado Novo Português e constituía, predominantemente, obras de autores de origem portuguesa que demonstrassem e consagrassem a grandeza do império português em África. O fato de os organizadores do I Encontro de Escritores não terem conseguido levar às reuniões “única e exclusivamente os legítimos escritores angolanos”23 fez com que muitos escritores angolanos que comungavam os ideais da luta pela libertação do país não comparecessem ao Encontro.

A década de 1960 ficará marcada, no campo da literatura angolana, pelos fatos relacionados ao Prêmio Motta Veiga, recebido pelo livro Luuanda, de Luandino Vieira, em 1964. O prêmio Motta Veiga já havia sido atribuído a outros escritores angolanos, dentre os quais Mário Antônio, pelo Ensaio A Sociedade Angolana do Fim do Século XIX e Um Seu Escritor, e a Arnaldo Santos, pelo livro Tempos de Munhungo, coletânea de crônicas. Todos os autores premiados cunhavam, no discurso da identidade angolana, o lugar de Luanda na literatura, sobretudo, revelando “a intersecção conflituosa entre o asfalto e o musseque”,24 trazendo para a literatura angolana a ambientação típica dos musseques de Luanda, Kinaxixi, Sambizanga, Makuluso e Bairro Operário. Na opinião de Inocência Mata (2001), os griôs da “prosa do musseque”, ou da “literatura mussequeira”, Luandino Vieira, Arnaldo Santos, António Cardoso, Jofre Rocha, Boaventura Cardoso, Jorge Macedo, cada um em diferentes momentos e abordagens, acabam por fundar “um modelo histórico e nacional-linguístico espacial”, afirmação da estudiosa são-tomense, com base em texto de Tânia Macedo, de 199725

Luandino Vieira, no cárcere, em Angola ou no Tarrafal, em Cabo Verde, continuaria a escrever os livros que o colocarão “numa posição cimeira da ficção angolana”.26 Antes de ser deportado para a prisão do Tarrafal, em Cabo Verde, Luandino Vieira tem o livro A cidade e a infância, publicado em 1960 pela União dos Escritores Angolanos. Outros livros integram a produção literária prisional do escritor: A vida verdadeira de Domingo Xavier, escrito em 1961, Luuanda, escrito no pavilhão prisional da PIDE, em São Paulo, Luanda, em 1963. Além desses, o escritor escreve na prisão os livros Vidas Novas, Velhas Estórias, No antigamente da vida e Macandumba. A partir de A vida verdadeira de Domingos Xavier, Luandino Vieira aposta na transgressão à norma culta portuguesa, assumindo um léxico e uma sintaxe próprios dos habitantes dos musseques luandenses. Estilisticamente, adota o registro popular como estratégia literária de grande efeito.

Essa estratégia, que se tornará marca do estilo do escritor, será reconhecida pelo júri da Sociedade Portuguesa de Escritores ao lhe atribuir o prêmio literário pelo livro Luuanda, em 1965. Na contramão do prêmio, a censura do governo Salazar orquestrou, como informa Carlos Ervedosa, no texto-depoimento que faz parte do livro organizado por Michel Laban, José Luandino Vieira e a sua obra (Estudos, Testemunhos, Entrevistas), de 1980, uma série de estratégias que visavam apresentar o autor do livro como terrorista. No desenrolar das campanhas difamatórias contra o escritor, foi decretada a extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores, a prisão de alguns membros do Júri que premiou o livro de Luandino Vieira, o que fez com que a Gulbenkian congelasse os 50 contos do prémio.27

Em longo período de censura brutal, várias obras são publicadas em Luanda, em clima de grande tensão e de perseguição a escritores, intelectuais e ativistas políticos. Nesse clima de tensão e censura, Pepetela publica As aventuras de Ngunga (1972) e vários contos inspirados nas lutas de que participava como guerrilheiro. No campo da poesia, cantavam-se os feitos dos heróis, muitos deles mortos nas várias frentes da luta e dos guerrilheiros tombados em combate. Muitos poetas, como acentua Ervedosa, vão escrevendo poesia, “tendo numa mão a caneta e na outra a arma, até quando as acácias possam florescer...”.28

Nesse clima de insegurança e incertezas, foi criada, em 1969, a página de literatura e arte no jornal A Província de Angola, dirigida por Carlos Ervedosa, que, mesmo com a presença da censura constante e cada vez mais severa, consegue retomar, junto com outros grupos de escritores e intelectuais, a atividade literária que marcará “o princípio da década de 1970”.29 Por essa página literária passam poetas e contistas, como Jorge Macedo, Jofre Rocha, David Mestre, Carlos Gouveia, Mendes de Carvalho, João Serra, Samuel de Sousa, Aristides Van-Dúnem e Boaventura Cardoso. No fim dessa década, surge em Benguela o Grupo Convivium e, em outros locais, despontam-se outras inciativas no campo cultural, como O Lobito.

Alguns nomes são apontados como responsáveis pelo encaminhamento “de inequívoca substância poética angolana”.30 Ferreira destaca Jofre Rocha, como autor de Estórias do musseque, e David Mestre, fundador do grupo Poesias – Hoje, em 1971, responsável por palestras, recitais, sessões de teatro e ações culturais em Luanda. Além desses, Ferreira coloca em sua seleção de “recentes revelações” Ruy Duarte de Carvalho, que já publicara o livro Chão de Oferta e havia conquistado o prêmio Motta Veiga, assim como João Maria Vilanova, autor de Vinte Canções para Ximinha (1971). Além desses, Arlindo Barbeitos, autor de Angola Angolê Angolema (1975) e Nzoji (Sonho) (1979), e Manuel Rui, que publicou Poesia sem notícias (1966) e A onda (1973). 

Impedidos de serem anunciados por qualquer dos movimentos literários, escritores como Agostinho Neto, António Jacinto, Luandino Vieira e outros, nos espaços da guerrilha ou da prisão, continuam a escrever. Seus textos serão publicados no exterior, como o Sagrada Esperança (1975), de Agostinho Neto, ou após a independência de Angola, como é o caso da maioria dos livros de Luandino Vieira. António Jacinto, autor de Sobrevivendo em Tarrafal Santiago (1985), publicou o livro Poemas (1961) e deixou como legado poemas memoráveis, como “Poema de alienação”, “Carta dum contratado”, “Monangamba” e outros.

Após a independência de Angola, vários grupos literários surgem no cenário de um país que conquistara a sua independência em 1975, pondo fim ao regime de opressão imposto pelo colonialismo, ainda que o país entrasse em etapa de lutas internas. Entre 1980 e 1988, surgem em Angola as Brigadas Jovens de Literatura, que assumirão várias das novas tendências poéticas cultivadas pelos novos e novíssimos poetas angolanos.

Em julho de 1980, a Brigada Jovem de Literatura de Luanda homenageia o poeta e presidente de Angola, Agostinho Neto, falecido em 1979, com folhetos que recebem títulos dos poemas “Aspiração” e “Caminho das Estrelas” de Neto. Os poemas serão publicados na coleção Lavra & Oficina da UEA, em agosto de 1981. Carmen Tindó, no artigo “A poesia angolana pós-independência: tendências e impasses” (2006), assinalará que o movimento das Brigadas não se limita a Luanda, estendendo-se por Cabinda, Huambo, Lubango, Uíge e outras províncias angolanas e a angolanos que se encontravam fora de Angola. As Brigadas mais representativas, a de Luanda, a do Lubando – Huíla, fundada em 1982 - e a do Huambo, criada em 1984, assumiram as propostas de renovar a produção poética, afastando-se, na maioria das vezes, da poesia empenhada, a poesia “de combate”, que caracterizou os projetos literários dos anos 1940 e seguintes. A nova proposta de poesia incentiva a renovação já defendida e assumida pelos poetas da Geração 1970, a que pertenceram, entre outros, David Mestre e Ruy Duarte de Carvalho. Poetas como Conceição Cristóvão, Fernando Kafukeno, João Maimona e João Tala e outros colocam-se como defensores de uma “novíssima poesia angolana”, comprometida com a depuração da linguagem literária, com experimentações estéticas inovadoras31 e recursos alçados à ironia e à sátira, com que muitas vezes procuram expressar a decepção dos jovens poetas com os caminhos percorridos pela nova nação.

O discurso poético de autoria feminina32

Ultrapassando os limites e as barreiras de gênero impostos às mulheres, as escritoras, poetas e prosadoras começam a ocupar lugares de destaque rompendo com o quadro predominante masculino no cânone angolano, à medida que elas se posicionam a respeito da condição feminina e das questões da nação e imprimem, com seus processos criativos, a marca da diferença. Na década de 80, Ana de Santana, afinada, conforme Kandiimbo, à geração das incertezas, publica Sabores, Odores e Sonhos (1986).

A pesquisadora Inocência Mata (2007) ressalta as produções de autoria feminina, destacando uma mudança de tendências que pode ser avaliada nos títulos de poemas; a conotação engajada, característica dos anos 50 e 60, e visível em “Testamento”, “Mama negra”, de Alda Lara, é substituída por títulos como Sabores, Odores & Sonhos (1963), de Ana Santana.

A partir de 1985, acentua-se, segundo Inocência Mata, uma inovação e impacto no sistema literário angolano, com uma feição poética que aglutina as preocupações coletivas com as “percepções dos lugares subjetivos da vida, das fases esconsas do ser, uma percepção de teor sensorial”33 e outros traços peculiares das produções em poemas e prosa da escritora Ana Paula Tavares. Em poesia, Paula Tavares publica Ritos de Passagem (1985), O lago da lua (2006), Dizes-me coisas amargas como frutos (2001), Ex-votos (2003), Como veias finas na terra (2010), entre outros; e em prosa, O sangue da buganvília (1994), A cabeça de Salomé (2004), Um rio preso nas mãos, crônicas (2019), entre outros.

A trilha poética e narrativa dessas autoras abriram caminhos para as novas presenças femininas nos anos 90. Maria Alexandre Dáskalos, filha de Alexandre Dáskalos, publica Do Tempo Suspenso (1998), Lágrimas e Laranjas (2001), estreando com O jardim das delícias (1991). No campo da prosa, na década de 1970, Dulce Braga publica com Sabor de Maboque, no contexto da guerra civil. No mesmo contexto, Isabel Ferreira publica poesia, Laços de Amor (1995), Nirvana (2004), O leito do silêncio (2014); em prosa, Fernando Daqui (2005), O guardador de memórias (2009), entre outros. Gabriela Antunes publica A Águia, a Rola, as Galinhas e os 50 Lweis (1982), Luhuna, o Menino que Não Conhecia Flor-viva (1983), por exemplo, com intensa relação com o conto angolano tradicional.

No fim do século XX e primeiras décadas do século XXI, juntam-se as já mencionadas Maria Amélia Dalomba, que confirma sua produção com “Ânsia” (1995), Sacrossanto Refúgio (1996), Espiga do Sahel (2004), Noites Ditas à Chuva (2005) e Aos teus pés, quando baloiça o vento (2006), como também as autoras Marta Santos, autora de Contos de cá... pedaços de mim (2012), ressaltando a oralidade e o quotidiano angolanos.

As Antologias de poesia no pós-independência

Em 1988, é publicada a antologia de jovens poetas angolanos, No caminho doloroso das coisas, organizada pelo poeta e crítico Lopito Feijóo. A antologia apresenta poemas de 19 poetas que, conforme anuncia o organizador, representam “qualitativa e quantitativamente o milhar de jovens que dentre milhões, mesmo nas partes mais flageladas pelo nosso inevitável destino, erguem-se também com a caneta ou com o dedo, no papel ou no chão, projetando o sol”.34 Fazem parte da antologia alguns nomes que viriam a se firmar no cenário da poesia angolana e, particularmente, com estratégias poéticas muito particulares, como é o caso, de Ana de Santana, já referida, que publicara o livro Sabores & Sonho, em 1985, João Maimona, já conhecido pelo livro Trajectória Obliterada, de 1985, José Luiz Mendonça, autor de dois livros publicados na década de 1980: Chuva novembrina (1982) e Gíria de Cacimbo (1987), Paula Tavares, também citada, que lançara, em 1985, o elogiado Ritos de passagem, e o próprio Lopito Feijó, autor de Me Ditando e Doutrina, ambos de 1987. Além desses, outros nomes são convidados a expor, nas páginas da edição, uma mostra do seu processo criativo: António Fonseca, autor de Sobre os kikoongos de Angola, de 1985, Rui Eduardo, Lussakalalu Pedro Lussakalalu, Rui Augusto, Doriana, Luis Elias Queta, autor de livros publicados desde a década de 1970, Joca Paixão, Gastão Rebelo, Carlos Ferreira, autor de Projecto comum (1982) e Projeto comum (2), de 1983, Fernando Couto, que lançara em 1983 A Esta Juventude (Canto Angustiado), Victor Jorge, autor de Luz no Prisma (1985), António Cebola, Domingos Ginginha e António Panguila.

Além dos novíssimos poetas selecionados pela antologia de Lopito Feijóo, muitos deles com publicações individuais, como indicado no parágrafo anterior, o cenário poético angolano vai-se redelineando com publicações de outros poetas. Nesse cenário surgem João Melo, que estreia com Definição (1985) e também publica Fabulema (1986), Poemas angolanos (1989), A luz mínima (1989) e outros, Eduardo Bonavena, pseudônimo de Nelson Pestana, autor de Ulcerado de Míngua Luz (1987), Maria Amélia Dalomba, já mencionada, Luiz Kandjimbo, com presença marcante no cenário literário e da crítica, e Paula Tavares, que, como afirma Carmen Tindó Ribeiro Secco (2006, p. 89) “funda uma nova dicção para o discurso poético feminino”. Além desses nomes, reafirmam-se José Luiz Mendonça, João Maimona, João Tala, Fernando Kafukeno e Lopito Feijóo que se consolidariam na poesia e em outros gêneros.

O campo literário angolano será revigorado, no pós-independência, com as políticas de publicação e de criação de prêmios literários atribuídos pela União dos Escritores Angolanos. A Coletânea Lavra & Oficina será responsável pela publicação de jovens escritores, dentre os quais muitas mulheres. Carmen Tindó Ribeiro Secco chama a atenção para a significativa presença de mulheres no cenário literário após os anos 80, dando destaque a Ana de Santana, que integra a antologia de Lopito Feijóo, Lisa Castel, Maria Alexandre Dáskalos, Amélia Dalomba, Ana Branco, Maria Celestina Fernandes. Carmen Tindó destaca ainda outros nomes de poetisas que surgem no cenário poético angolano: Carla Queiroz, Leila dos Anjos, Chô do Guri, Cecília Ndanhakukua, Anny Pereira, Alice Palmira, Isabel Ferreira e várias outras35.

Uma mostra significativa da poesia de Angola é dada pela publicação, em 2005, da Antologia da Poesia Moderna Angolana36, organizada por Adriano Botelho de Vasconcelos, quando o poeta exercia o cargo de Secretário Geral da União dos Escritores Angolanos. A publicação disponibiliza uma excelente mostra da produção poética de quase 70 poetas e poetisas que, em períodos diversos e sobretudo a partir de 1945, podem ser considerados marcos da criação da moderna poesia, apresentando, inclusive, a produção de poetas esporádicos, como José Eduardo Agualusa, mais conhecido como ficcionista. A partir de 2003, quando é lançado o livro A chave no Repouso da Porta e O vento fede de luz, Abreu Paxe vem publicando em jornais e revistas especializadas e antologias.

Os caminhos traçados pela ficção, a partir dos anos 1960

Durante a luta pela liberdade, que vai de 1961 a 1975, o espaço da ficção se afirma como uma “escrita de afirmação cultural e de protesto social, dimensionada na ideologia libertária do projeto nacional”. Na visão da Inocência Mata,37 as narrativas As aventuras de Ngunga (1973), de Pepetela, A vida verdadeira de Domingos Xavier (1974), de Luandino Vieira e Nzinga Mbandi (1975), de Pedro Pacavira, são “textos em que as figuras do herói surgem como construções simbólicas da história [...]”, funcionando como propulsoras do projeto nacional.38 Esse projeto mostra-se como a tônica da “literatura de combate”, expressa pelos romances em questão, mas também pela poesia, que assumiu os vários temas ligados à heroicidade dos combatentes e o sacrifício feito pela conquista da liberdade almejada. Kandjimbo (2001) destaca, nessa vertente, a publicação dos livros de Domingos Van-Dúnen: Uma história singular, publicado em 1975; nos anos 80, são publicados Milonga (1985), Dibunda (1988) e Kuluka (1988).

No período pós-independência, sobretudo nas primeiras décadas, o país empenha-se pela publicação das obras impedidas pela censura no período colonial. Essa proposta é assumida por editoras de Angola e de Portugal que passam a publicar obras dos escritores que haviam vivido os anos de chumbo e a intensa repressão da PIDE. Luandino Vieira terá os livros escritos antes e durante seu encarceramento publicados em Portugal e em Angola, por vezes, simultaneamente ou com uma diferença de poucos anos. Saem em Portugal e em Luanda, a partir de 1972, os livros: A cidade e a infância, A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, Luuanda, Vidas Novas, Velhas Estórias, No antigamente da vida, Nós, os do Makulusu, Macanduba, João Véncio, os seus amores, Lourentinho, Dona Antónia de Sousa Neto e eu; o romance Nosso musseque, escrito no pavilhão prisional da PIDE, em São Paulo, Luanda, nos meses de dezembro de 1961 a abril de 1962, só será publicado 40 anos depois, em 2003, pela livraria Caminho (Portugal).

Kandjimbo (2001) considera que a voz mais representativa, no espaço ficcional angolano da década de 70, será a do escritor Boaventura Cardoso, que inicia sua carreira literária, na década anterior, com a publicação de contos e poemas em jornais da cidade de Luanda. Em 1977, Boaventura Cardoso publica o livro de contos, Dizanga Dia Muenhu, cujos contos apresentam marcas de um estilo que revela uma “deliberada adequação ao espaço físico e social à modulação fónico-linguística das personagens”.39 Com a publicação de O fogo da fala (1980) concretiza-se a dimensão transformadora da linguagem literária do escritor e a opção clara por uma dimensão experimental que se forma na interação da escrita com recursos da oralidade.40

Com a intenção de divulgar a narrativa produzida pelo escritor Agostinho Mendes de Carvalho, mais conhecido no campo literário como Uanhenga Xitu, que também viveu longo período de prisão em Angola e no Tarrafal, são publicados pela União dos Escritores Angolanos, os livros Mestre Tamoda (1974), Bola com Feitiço (1974), Manana (1974), seguindo-se a esses Vozes na Sanzala-Kahito (1976) Maka na Sanzala (1979). No início da década de 80, foram publicados os livros do mesmo autor: Os sobreviventes da máquina colonial depõem (1980), Discurso do Mestre Tamoda (1984) e O Ministro(1989).

Pepetela, integrante da luta armada, vivendo a experiência da guerrilha, publica, em 1972, As aventuras de Ngunga, republicado em 1973, pela Editora portuguesa Edições 70; também publica, pela mesma editora, Mayombe (1980) e O cão e os calús (1985). O livro Muana Puó foi publicado, em 1978, pela União dos Escritores Angolanos. Pepetela, juntamente com Henrique Abranches, autor de uma vasta obra, entre os livros, A Konkava de Feti, escrito quando esteve preso por ordem da PIDE e publicado fora de Angola, como também O clâ de Novembrino, composto de três volumes e Misericórdia para o Reino do Congo, criaram, em Argel, o Centro de Estudos Angolanos, responsável por pesquisas sobre a História de Angola. O interesse despertado pela pesquisa estará presente em obras que surgirão a partir da década de 80, quando Pepetela lançará romances importantes que se caracterizam pelo cruzamento do discurso histórico com o ficcional, passando pela revisão dos percursos utópicos delineados por sua geração. Numa espécie de catarse, publica A Geração da utopia (1992) e, buscando motivação no passado da nação angolana, lança Lueji, o nascimento de um império (1985) e A gloriosa família (o tempo dos Flamengos), em 1997.

Com a intenção de rever, no pós-independência literário, feições do projeto de identidade e de construção do nacional assumido pela chamada “literatura de combate”, que se fortaleceu com as propostas encaminhadas pelas Gerações de 40 e 50, alicerçadas com um diálogo profícuo com o modernismo brasileiro, várias obras de ficção, no gênero conto e romance, assumem um olhar crítico ou desiludido sobre o cenário implantado em Angola, a partir da independência. São importantes, nesse sentido, as obras Os anões e os mendigos (1984), de Manuel dos Santos Lima e Maio, mês de Maria (1997), de Boaventura Cardoso, autor que, como já assinalado, já publicara livros como Dizanga dia muenhu (1977) e O fogo da fala (Exercício de estilo), em 1980, com características peculiares de sua escrita altamente criativa. 

Manuel Rui Monteiro, que já havia publicado, em 1973, a obra Regresso adiando e, em 1977, Sim, camarada, e livros de poesia, como Poesia sem notícia (1967) e A onda (1973), irá publicar romances, novelas e contos a partir da década 80, investindo em recursos da ironia e da sátira com os quais elabora, de forma bem humorada, um olhar particular sobre o pós-independência angolano. A novela Quem me dera ser onda (1982), desde o seu lançamento, caiu no gosto dos leitores, sendo, certamente, a obra mais conhecida do escritor, além de Rioseco (1987). Sua obra ficcional, contos e romances quase sempre tem como cenário a cidade de Luanda e, como acentuam Tânia Macedo e Rita Chaves (2007, p. 119), “seus contos focalizam as mazelas e as delícias da capital de Angola, suas ruas e becos, o interior dos prédios e os habitantes na sua forma muito particular de estar no mundo”.

Uma nova geração de ficcionistas

Luiz Kandjimbo (2001) refere-se a um grupo de escritores que, no espaço da ficção, retomaram temas relacionados à guerra e seus impactos no pós-independência, por vezes passando pelo erotismo e por temas relacionados ao amor e à decepção causada pelos novos tempos. Alguns autores advêm das Brigadas Jovens de Literatura, outros produzem seus romances na diáspora e outros ainda, iniciando-se na literatura pelo cultivo da poesia, passam a produzir ficção. Entre os brigadistas, Kandjimbo ressalta o escritor Cikakata Mbalundu, um dos fundadores da Brigada Jovem da Huíla e autor de dois livros premiados em Angola, embora residindo em Portugal, na época: Cipembúwa (1986), menção honrosa do Prêmio Sonangol do mesmo ano e O feitiço da rama de abóbora (1991), prêmio Sonangol do mesmo ano. A escritora, dramaturga e cantora, Rosária da Silva, integrante da Brigada Juvenil de Literatura Manuel Van-Dúnem, no Lobito, em 1987, publica, em fevereiro de 1996, o romance Totonya, que recebeu, em 1996, menção honrosa, no Concurso Literário António Jacinto. É considerada a primeira romancista angolana.

Kandjimbo (2001) refere-se ao escritor Sousa Jamba e à sua condição diaspórica. Emigrando-se por razões políticas para a Zâmbia, posteriormente, vai estudar na Inglaterra, publicando, nesse país e em língua inglesa, o romance Patriotas, em 1990. A versão em português surgirá em 1991. O crítico também considera como autor diaspórico o romancista José Eduardo Agualusa, que recebe o Prêmio Revelação Sonangol, em 1989, pelo seu primeiro romance, A conjura publicado em 1988. O pesquisador acrescenta ainda Roderick Nehone, que teve as obras Histórias dispersas de um reino (1996) e O ano do cão (1998) destacadas pelo Prêmio Sonangol de Literatura. 

Publicado em 2006, o livro de Inocência Mata Laços da memória e outros ensaios sobre a literatura angolana traz importantes informações sobre a literatura produzida no pós-independência, em Angola. A crítica destaca, no capítulo “Transformou-se o amador em coisa amada? João Melo e a irreverência da contação”, o surgimento da obra ficcional do escritor e jornalista João Melo que, como já acentuado, se inicia na literatura, em 1985, com a publicação do livro de poesia Definição. Em 1998, passando da poesia à ficção, publica Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir (1998); em 2001, Filhos da pátria; e, em 2004, The serial killer e outros contos risíveis ou talvez não (2004), consagrando-se como excelente contista. Inocência Mata destaca que, nos contos, João Melo “intenta um olhar sobre a sociedade angolana do pós-abertura ao multipartidarismo e do pós-guerra, a partir de um lugar social privilegiado”.41

No mesmo livro42 de ensaios, Mata (2006) considera outras feições da literatura angolana, no campo da ficção e da poesia, destacando aspectos do que denomina de escrita-testemunho da História de Angola e de outros países africanos, e do que ela denomina de “encenação de fragmentária memória incômoda das diferenças, intolerâncias, conflitos, traições e oportunismos”.

Seguindo as observações de Mata (2006) e Kandjimbo (2001), é possível dizer que a ficção angolana fica solidamente instalada no pós-independência, tanto com novas publicações de escritores que viveram, em diferentes momentos, a violência da opressão colonial, em sua fase final, como Luandino Vieira, Arnaldo Santos, Pepetela, Manuel Rui, Boaventura Cardoso e Uanhenga Xitu, já falecido, tanto com o surgimento de novos ficcionistas no cenário da literatura. Destaquem-se, sobretudo, escritores que, tendo investido no gênero poesia, assumem a ficção, como Ruy Duarte de Carvalho, já falecido, e João Melo, dentre os mais conhecidos. Além desses, outros vão alargando o cenário literário no campo da ficção, como é o caso de José Eduardo Agualusa, Roderick Nehone e Rosária Silva e alguns outros e outras que seguem caminhando pelas sendas da ficção.

Em 2009, a União dos Escritores Angolanos lança uma antologia do conto angolano intitulada Como se viver fosse assim, com a seleção e organização de Domingas de Almeida. Na antologia, destacam-se escritores bastante conhecidos no Brasil, como Arnaldo Santos, Carmo Neto, Dario de Melo, Fragata de Morais, Henrique Abranches, Henrique Guerra, João Melo, João Tala, José Eduardo Agualusa, Manuel Rui, Ondjaki, Pepetela, Roderick Nehone. Além desses, a antologia apresenta contos de Isaquiel Cori, José Samwila Kakweji, Marta Santos e Sônia Gomes.

Como se pode deduzir, levando-se em conta as várias antologias de poesia e de contos publicadas pela UEA, o aumento substantivo de publicação de romances, contos, poemas em Angola, Portugal e em outros países, mesmo no Brasil, tem impulsionado a cena literária angolana, apresentando novos cultores da arte de escrever que vão assumindo novos motivos e temas e experimentando novas estratégias de linguagem.

 

Referências

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SECCO, Carmen Lúcia Tindó. A poesia angolana pós-independência: tendências e impasses. Veredas, n. 7, Porto Alegre, p. 83-99, 2006.

 

Notas

[2] KANDJIMBO, 2001.

[3] Sobre essa obra é interessante consultar o artigo: “O fantasma do Brasil em Cenas da África, romance íntimo de Pedro Félix Machado, de Alberto Oliveira Pinto. Via Atlântica, São Paulo, n. 22, 15-26, dez., 2012.

[4] Os poemas de José Cordeiro da Matta referidos por Manuel Ferreira estão presentes na obra No reino de Caliban, volume II, referente à poesia de Angola e São Tomé e Príncipe, publicada em 1988.

[5] ERVEDOSA, 1979, p. 24.

[6] Sobre o surgimento do Jornalismo, é importante consultar o artigo “A imprensa angolana, no âmbito da história da imprensa colonial de expressão portuguesa”, de Antônio Hohlfeldt e Caroline Corso de Carvalho (2012).

[7] ERVEDOSA, 1979, p. 26.

[8] ERVEDOSA, 1979, p. 29.

[9] Neste texto, acompanha-se, como fazem Carlos Ervedosa e Manuel Ferreira, o desenvolvimento da narrativa literária produzida por angolanos, a qual difere da produzida pela literatura colonial, oficialmente reconhecida pelo poder colonial. Sobre o percurso historiográfico dessa literatura, podem-se consultar, dentre outros textos, Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa (1980), de Alfredo Margarido, bem como Literaturas africanas de expressão portuguesa, de Pires Laranjeira (1995).

[10] EVERDOSA, 1979, p. 61.

[11] KANDJIMBO, 2001, p. 163.

[12] EVERDOSA, 1979, p. 73.

[13] A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) foi criada em 22 de outubro s 1945, durante o Estado Novo, em Portugal.

[14] KANDJIMBO, 2001.

[15] ERVEDOSA, 1979, p. 96.

[16] FERREIRA, 1988, p. 62.

[17] FERREIRA, 1988, p. 91.

[18] FERREIRA, 1988, p. 91.

[19] No texto “Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, a geração literária de 48 e o problema do slogan ‘Vamos descobrir Angola’”, Luiz Kandjimbo considera que o discurso poético inaugurado pela geração literária de 1940, cujos integrantes passaram pelos vários movimentos literários indicados por Manuel Ferreira (1988), encaminha uma “estética fundadora de um modernismo que comporta várias tendências da literatura angolana. Dessa geração Kandjimbo destaca os poetas Aires Almeida Santos, Agostinho Neto, Alexandre Dáskalos, Antero de Abreu, António Jacinto, Cochat Osório, Ermelinda Xavier, Lília da Fonseca, Mário Pinto de Andrade, Maurício Gomes e Viriato da Cruz.

[20] Padilha (2007) explica que maka indica um tipo de narrativa da tradição oral que teria um fim utilitário.

[21] ERVEDOSA, 1979, p. 133.

[22] ERVEDOSA, 1979, p. 135.

[23] ERVEDOSA, 1979, p, 134.

[24] MATA, 2001, p. 61.

[25] Macedo - “Caminhos da escrita de uma cidade: a presença de Luanda na literatura angolana contemporânea” (1997).

[26] ERVEDOSA, 1979, p. 145.

[27] ERVEDOSA, 1980, p. 92.

[28] ERVEDOSA, 1979, p. 141.

[29] ERVEDOSA, 1979, p. 149.

[30] FERREIRA, 1988, p. 377.

[31] Como ilustração dessa experimentação com a linguagem, Solsalseiosexo (2006), de Conceição Cristóvão, A idade da palavra (1997), Memória de sombra (2012), de João Maimona, como também Subscrito a Giz 60 poemas escolhidos 1972 -1994, publicado em 1996.

[32]  - Esta secção foi anexada pela Profa. Dra. Assunção de Maria Sousa e Silva (UESPI) que fez uma leitura muito atenta do artigo.

[33] MATA, 2007, p. 425.

[34] FEIJÓO, 1988, p. 12.

[35] A produção poética angolana de autoria feminina contemplada pela antologia Todos os sonhos (2007) foi analisada por Maria Nazareth Soares Fonseca no artigo “Poemas de autoria feminina na antologia angolana Todos os sonhos” (2007).

[36]A antologia apresenta poemas de: Abreu Paxe, Adriano Botelho de Vasconcelos, Alexandre do Nascimento, Alice Palmira, Amália Dalomba, Ana de Santana. Ana Branco, Armindo J. Gomes, Antero Abreu, António Cardoso, António Pompílio, Anny Pereira, António Gonçalves, António Panguila, Arnaldo Santos, Arlindo Barbeitos, Beto Van-Dúnem, Carla Queiroz, Carlos Ferreira, Carlos Pimentel, Cecília Ndanhakukua, Chô do Gury, Conceição Cristóvão, Costa Andrade, Cristóvão Neto, Curry Duvall, Décio Bettencourt Mateus, Domingos Florentino, E. Bonavena, Euclides Mariano, Eugénia Neto, Fernando Kafukeno, Fragata demorais, Frederico Ningue, Garcia Bires, Henrique Guerra, Isabel Ferreira, Ismael Mateus, José-Maria Vila-Nova, João Abel, João Melo, João Maimona, João Tala, Jofre Rocha, John Bella, Jorge Macedo, José Eduardo Agualusa, José Luís Mendonça, José Samwila Kakweji, Kanguimbo-Ananaz, Kudijimbe, Leila dos Anjos, Lopito Feijoó, Lúcio Assis, Luiz Kandjimbo, Luís Rosa Lopes, Maria Celestina Fernandes, Maria Fernanda Silva Baião, Maria Alexandre Dáskalos, Manuel Rui Monteiro, Manuel dos Santos Lima, Ondjaki, Paula Tavares, Roderick Nehone, Rosário Marcelino, Rui Augusto, Ruy Duarte de Carvalho, Samuel de Sousa, Sapyruka, Trajanno Nankhova Trajanno

[37] MATA, 2001, p. 24.

[38] MATA, 2001, p. 25.

[39] KANDJIMBO, 2001, p. 177.

[40] Essa questão está trabalhada em vários artigos do livro Boaventura Cardoso, a escrita em processo (2005), organizado por Rita Chaves, Tânia Macedo e Inocência Mata.

[41] MATA, 2006, p. 86.

[42] MATA, 2006, p. 17.

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* Maria Nazareth Soares Fonseca é Professora Aposentada UFMG. Profa. Adjunta do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Minas, período 1995-2018. Pesquisadora 1D do CNPq. Coordenadora Grupo de Estudo Estéticas diaspóricas desde 2010. Autora dos livros: Brasil Afro- Brasileiro (2000); Poéticas afro-brasileiras (2003); Literaturas Africanas de Língua Portuguesa: percursos da memória e outros trânsitos (2008), Mia Couto: espaços ficcionais (2008). Literaturas africanas de língua portuguesa: mobilidades e trânsitos diaspóricos (2015). Coorganizadora do volume 4 da coletânea Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2011).

 


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