Fundada em 1981, a Mazza Edições tem o compromisso explícito de publicar obras referentes à cultura afro-brasileira. Indubitavelmente, é uma casa editorial pioneira no seguimento. Sua fundação ocorreu no período em que se rediscutia a redemocratização do país, já nos anos finais da ditadura militar. Neste sentido não é exagero dizer que a casa editorial opera como possibilidade rara de veiculação de discursos silenciados durantes os anos de chumbo e em tempos subsequentes, o que adianta uma de suas principais vocações no campo do livro: a mediação entre autores, obras e público.

Não é possível escrever qualquer linha sobre a Mazza edições sem antes salientar a trajetória e as experiências de sua mentora, Maria Mazarello Rodrigues, carinhosamente chamada de Mazza: mulher negra, militante e intelectual marcada pelo intenso envolvimento com questões de ordem social, política e cultural brasileiras. A formação dela no campo editorial ocorre na prática, o que também caracteriza grande parte dos editores (negros) brasileiros.

Segundo a própria Maria Mazarello, em entrevista concedida ao autor deste verbete em 15/01/2018, a trajetória dela no campo editorial teve início nos anos de 1960 ao conhecer Ana Lúcia Campanha Baptista. Ambas trabalharam num programa chamado PABAEE – Programa de Assistência Brasileiro-Americano ao Ensino Elementar[1], o esteve em atividade de 1956 até 1964, fruto de convênio entre os governos dos Estados Unidos e de Minas Gerais, na época sob a secretaria de Abgar Renault. As principais áreas atendidas pelo programa foram História, Psicologia, Estudos Sociais e Matemática. Professores de todo o Brasil participaram do PABAEE. O modelo de educação estadunidense começava, pois, a ser oficialmente difundido em nosso país. O projeto foi alocado no Instituto de Educação de Minas Gerais. Os estadunidenses ocupariam o prédio e o estado teria a construção totalmente reformada. Eis um dos termos do acordo.

Ana Lúcia era secretária de uma das técnicas ou gestoras do projeto. As chefias todas eram ocupadas por estadunidenses. Por sua vez, Mazarello trabalhava na gráfica programa, na qual se publicavam os materiais didáticos elaborados pela equipe técnica e era digitado pela equipe de secretariado. O material era testado na Escola de Demonstração do Instituto de Educação de Minas Gerais.

Aos 18 anos, por influência de Ana Lúcia, Maria Mazarello, já técnica em contabilidade, decide estudar jornalismo na FAFICH, que ficava na rua Carangola, bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte.

Ana Lúcia decidiu abrir uma editora em sua própria casa e convidou justamente Maria Mazarello para compor a equipe. Na verdade, conta Mazza que o espaço utilizado para a empreitada empresarial foi um cantinho do quintal onde havia funcionado um galinheiro muito bem feito em alvenaria pelo pai de Ana Lúcia, o senhor “Jaime Joalheiro”. “Ali nasceu a Editora do Professor, na rua Batista Figueiredo, 16, no galinheiro do seu Jaime, pai da Ana Lúcia”, conta Mazarello. Posteriormente, a Editora do Professor mudou-se para uma sala alugada no edifício Castor, na Tupis, número 85, loja 07, no Centro de Belo Horizonte. Logo embaixo da loja, Ana Lúcia inaugurou a Livraria do Estudante[2]. Posteriormente, já rompida com Ana Lúcia, Maria Mazarello criou, rua Baturité, bairro Floresta, a Grafiquinha, aí sim embrião de voos mais altos.

Em 1978, surgiu a Editora Veja, resultado da fusão da Editora do Professor com a Grafiquinha e com um grupo de professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), representado pelo professor Ramayana Gazinelli e pelo então reitor, Aluisio Pimenta. Também compunha a equipe Antonio Faria Lopes, que era presidente do Sindicato dos Bancários na época. Faria Lopes foi preso, torturado e acabou tendo que vender a Enciclopédia Barsa de porta em porta. Ele foi um dos braços comerciais da Vega. Juntou-se ao grupo, posteriormente, Edgar Godoy da Mata Machado, professor da Faculdade de Direito da UFMG. A Vega operou até 1988 e, durante sua trajetória, sempre abrigou pessoas perseguidas pela ditadura e que precisavam de emprego com carteira assinada para que não fossem novamente perseguidas com tanta insistência. A Vega foi vendida para o ainda nascente PT, à época representado por Aloísio Marques e Paulo Rogedo. Detalhe curioso é que a logomarca da Vega foi criada por Henfil (à época chamado de Henriquinho) o Henfil.

Ainda no ano de 1978, no início das operações da Vega, Mazarello realizou mestrado em Paris na área de Editoração, fruto de bolsa obtida junto à Capes. O momento de efervescência política e cultural associado à ampla discussão acerca da negritude – como pensamento, ação e empreendimentos editoriais na Espanha, França, América Latina e Estados Unidos – fizeram que com Mazarello vislumbrasse abrir mão de realizar doutoramento e criar, em 1981, uma editora genuinamente voltada para a publicação da cultura afrodescendente gestada no Brasil. Nascia, pois, a Mazza Edições, como resultado das experiências anteriores.

A editora nasceu do projeto de mestrado de Maria Mazarello, intitulado Essa história eu não conhecia. Inspirado nas coleções “a lo claro”, típica da Espanha pós Salazar, a proposta de Mazarello era atingir, com linguagem direta, o aluno e os professores brasileiros, mas por meio de publicações que assumissem, segundo ela mesma assevera, “o ponto de vista enunciativo do colonizado, do que sofreu a chibata, ao invés de falar da história do ponto de vista do colonizador”.

Num primeiro momento, a publicação de poesia, financiada pelos próprios autores, sustentou diversos momentos das atividades da editora. Hoje, segundo Mazarello, 80% do catálogo versa sobre cultura afrodescendente. Contudo, apenas a partir da Lei 10.639 - assinada pelo presidente Luís Inácio “Lula” da Silva, em 2003 – é que se torna obrigatório o ensino de cultura, história e produção literária africanas e afro-brasileiras nas escolas públicas e privadas dos três níveis de ensino no Brasil. Desde esta recente época é que a Mazza Edições passou a vislumbrar possibilidades de alívio ao caixa apertado ao mesmo tempo em que pode entrar nas escolas brasileiras “pela porta da frente”, conforme explicita Mazarello, e fazer parte das compras governamentais e ampliar sua participação num mercado tão e cada vez mais dominado por grandes grupos empresariais.

De sua fundação até hoje, catálogo da editora Mazza é pautado por três valores, com os quais seus autores comungam: ética, justiça e liberdade. A iniciativa demonstra ciência de seu papel político “nas franjas” do grande mercado, presidido, indiscutivelmente, pelo lucro. Não que a questão financeira não tenha importância para as pequenas e médias casas editoriais, como a Mazza. O capital financeiro é decisivo, mas sobretudo o capital simbólico, pressuposto pelos valores da editora e espelhados nas obras de seus autores e na formação de seu catálogo, em grande medida, sustentam as linhas editoriais justamente pela autonomia decisória advinda da desvinculação de receitas e subserviências ao grande mercado. Se, por um lado, os recursos próprios ou dos autores limitam a ação da casa editorial, por outro garantem a independência de suas ações e posicionam a empresa num lugar singular e de resistência no campo cultural.

 Acreditando nisso, conforme o próprio site da Mazza Edições, ao longo destes mais de 30 anos, a editora “investiu na publicação de autores/autoras negro(a)s e de livros que abordam os diversos aspectos da cultura afro-brasileira relacionada, por sua vez, a um largo segmento das populações excluídas no Brasil” (http://www.mazzaedicoes.com.br/editora/, acesso em 17 jul. 2018). Por isso, com a certeza dos rumos e desafios de se manter um catálogo crítico e politizado, a Mazza Edições tem se tornado cada vez mais referência nacional e internacional aos estudos étnico-raciais e de diversidade sociocultural envolvendo o nosso país. Autores como Cuti, Edimilson de Almeida Pereira, Rosa Margarida de Carvalho Rocha, Leda Maria Martins, Cidinha da Silva, Patrícia Santana[3].

Ainda de acordo com o site oficial da editora,

 

em face dos desafios gerados pela nova ordem social no Brasil e no mundo, com destaque para a aceleração do fluxo de informações, a Mazza Edições se propõe a atuar com sentido crítico para oferecer aos seus leitores e clientes obras que contribuam para uma melhor compreensão do passado, do presente e do futuro a ser construído. E não poderia ser outro o desejo de todos os que fazem da Mazza Edições uma editora e, mais que isso, uma casa de cultura viva. (http://www.mazzaedicoes.com.br/editora/, acesso em 17 de nov. 2017)

 

O desejo de cultura viva de que fala o ser visto em duas amplas facetas. A primeira delas diz respeito à criação do selo Peninha, homenagem à mãe de Maria Mazarello, Amarilles Pena Rodrigues, falecida em 1978. A Peninha está voltada exclusivamente para o universo infanto-juvenil.  A segunda delas é a manutenção da Biblioteca Comunitária Etelvininha Lima, homenagem à Professora Etelvina Lima, uma das pioneiras no trabalho de implantação das bibliotecas por todo o país e uma das fundadoras da Biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O espaço opera na sede da Mazza Edições, na rua Bragança, 101, bairro da Pompeia, em Belo Horizonte. Foi fundado no ano de 2001. Segundo Mazarello, de segunda a sábado, passam por lá dezenas de estudantes e moradores da vizinhança para consultar um acervo que se aproxima dos 10 mil exemplares. Há no acervo clássicos da literatura mundial e brasileira, literatura contemporânea, livros didáticos e paradidáticos. A Etelvininha oferta contação de história uma vez por semana, às quartas-feiras, resultado da atuação da Biblioteca no projeto Mala de Leitura da Universidade Federal de Minas Gerais.

No atual cenário, com a retração da economia somada ao enxugamento de verbas públicas compras governamentais, a Mazza Edições e todo o conjunto de pequenas e médias editoras, tem encontrado dificuldades de sobrevivência. Mesmo assim, lutam diuturnamente para encontrar saídas e encontrar formas de subsistência.

A Mazza Edições, portanto, é resultado do acúmulo de experiências de Maria Mazarello em diversas frentes editoriais. A casa tem sido pioneira quando se trata da disseminação da produção cultural afro-brasileira. Contendo nomes de destaque em seu catálogo, principalmente no campo das Humanidades e Literatura, a Mazza Edições é, indubitavelmente, referência em seu campo de atuação.

 


[1] PAIVA, Edil Vasconcellos; PAIXÃO, Lea Pinheiro. PABAEE: a americanização do ensino elementar no Brasil?. Niterói: EDUFF, 2002.

[2] A Livraria do Estudante foi um ponto de encontro e discussão sobre a realidade brasileira. A intelectualidade belorizontina tinha no local porto seguro e de certa difusão de conteúdos os mais vastos e diversos, principalmente no campo das Humanidades. Ao que consta, foi fechada pela ditadura militar em 1967.

[3] Conceição Evaristo foi publicada pela primeira vez pela Mazza Edições, mas atualmente não tem os direitos ligados a esta casa editorial.