O amalgamento cultural em Lepê Correia: afro-brasilidade

Luiz Henrique Oliveira*

Como exímio estudioso das culturas afro-brasileira e popular brasileira, Lepê Correia explora em seus poemas ambas as temáticas de maneira a evocar dois universos indissociáveis. Além disso, o poeta explora a oralidade e a musicalidade a partir de um tom de informal e de uma prosódia africanizada. Em “Tambores silenciosos”, por exemplo, o eu poético clama à Kalunga, entidade representativa do amálgama religioso afro brasileiro, pela ausência da participação do eu lírico nos festejos representativos da afro-brasilidade. Aliás, o carnaval, tal como trabalhado no poema, é mais que um ritual: pois adquire um forte significado para a vida do afro-brasileiro e é, em última instância, redenção:

Ai, de mim, Kalunga

Eu não maracatuquei

Não passei pelo terreiro,

Pra saudar baque-virado,

Nem brinquei no Carnaval

(...)

Vivo já nem sei pra quê

Sem nada disso, é o fim.

Por isso ai de mim...!

(Cadernos Negros 21, p. 90)

O maracatu nasceu da tradição do “Rei do Congo”, implantada na era colonial. É a expressão – na dança – do afro-brasileiro, uma vez que não reúne somente coreografia; ultrapassa os limites da expressão corporal e chega a denotar o político ou o engajamento do negro no processo de perpetuação de valores advindos d’África. A dança é marcada tradicionalmente, e exclusivamente, por instrumentos de percussão, e contém ainda fortes elementos místicos que fazem lembrar o Candomblé. Baianas e Damas do Paço exibem coreografia complexa; enquanto os demais componentes movimentam-se de modo mais discreto. As damas do Paço carregam as Kalungas — bonecas de origem religiosa, reminiscência de cultos fetichistas. A dança com as Kalungas é obrigatória na porta das igrejas, representando um “agrado” a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Quando visita o Candomblé, o Maracatu homenageia os Orixás. Não “maracatuquear”, portanto é não ter em dia as obrigações enquanto promotor/divulgador da memória afro. Significa (o lamento do eu poético) estar em falta com a Tradição; daí a lástima e o não sentido para continuar na estrada da vida. “Ai de mim...!”

A pujança do eu poético na obra de Lepê Correia pode ser considerada um de seus caracteres de maior relevância. Em “Teimosia presença” nota-se, via sucessivas metáforas, as configurações do eu que se mostra (explicitamente) negro e reivindica por isso mesmo um espaço. Identidade é a palavra-chave desse poema que busca retratar um universal “negro pelas ruas do país”.

Eu continuo acreditando na luta

Não abro mão do meu falar onde quero

Não me calo ao insulto de ninguém

(...)

Sou a resposta, a controvérsia, a dedução

A porta aberta onde entram a discussões

(...)

Eu sou a luta, sou a fala, o bate-pronto

Eu sou o chute na canela do safado

Eu sou um negro pelas ruas do país.

(Cadernos Negros, melhores poemas, p. 92)

Teimoso, como se auto declara, o eu poético mostra-se confiante no prosseguimento pela “luta”. Luta contra os “safados” que descaracterizaram o descendente de escravo e o fizeram o outro num mundo de híbridos. O eu “luta” contra os insultos e contra a consolidação de um estereótipo que lhe fora, sócio-historicamente, atribuído. Além disso, o (sub) mundo ocupado pelo negro são “as ruas do país” - aliás país erguido com a disposição compulsória de braços e ventres africanos.

As figuras míticas – como a sereia – se fazem presentes em Lepê Correia. Em “Profecias das ondinas”, o eu poético clama pela bela sereia. O rito de aparição é completado de acordo com a rotação do sol.

O cheiro provocado pelo suco morno

Provindo do desejo, povoou o ar

Era chegado o tempo do grande retorno

Estava consumado o ritual lunar.

(Cadernos Negros 21, p. 93)

O termo “ondinas” aplica-se a todos os seres associados ao elemento água e à sua força. A atividade das ondinas se manifesta em todas as águas do planeta, quer provenham de chuvas, ou rios, ou mares, ou oceanos, etc. Da mesma forma que os gnomos, estão sujeitas à mortalidade, mas sua longevidade e resistência são bem maiores. As ondinas despertam-nos os dons da empatia, da cura e da purificação. Também nos ajudam a absorver, digerir e assimilar as experiências da vida para que façamos pleno uso delas. Diz-se que é graças a elas que sentimos o profundo êxtase presente nos atos vitais criativos, seja de natureza sexual, artística ou até no cumprimento dos deveres com o toque emocional adequado. Nesse sentido, o eu poético, ao invocar as profecias das ondinas, está fazendo jus ao poder advindo dessa entidade. Pode-se dizer que fora ele “seduzido pelo desejo”.

Outro traço marcante dos poemas de Lepê é a presença de um forte erotismo, e o poema “Profecia das ondinas” ilustra muito bem tal aspecto. Associado ao apelo do erotismo estão os estímulos sensoriais, as aliterações e assonâncias:

Desejo que se fez porto em meu corpo

Que, antes, no ultramar havia se ocultado

Tal qual o meu destino em quebra-mar tirano

E os três ressuscitaram de um tempo passado

E a espuma do mar bravio e infinito

Banhou tua nudez, fechando o ritual

E nos teus olhos pude reviver o mito

Cumpriu-se a profecia: o Ser retorna ao sal.

(Cadernos Negros 21, p. 93)

 

O desejo é ponto de entrada e saída do eu. Corporificado e outrora recalcado, busca o poeta reviver nos olhos do símbolo da sedução e beleza o mito e a profecia: a sereia aparece às vistas e retorna rápido ao mar, dando-lhe uma infinita visão/lembrança consoladora.

A incansável busca por si mesmo enquanto metamorfose poética e humana inunda a “Poesia de nada”. O eu vê nos restos a possibilidade de sub vivência. ”Eu sinto que só como o marisco/ Na lama que a fome faz buscar.” (Cadernos Negros 21, 1998a: 94). Mas é na energia da palavra em que se busca a força para prosseguir e por onde prosseguir: “E assim meu ser festivo busca a esmo/ Num riso um verso solto sem juízo/ E eu canto sem saber por onde piso/ E a busca é a procura de mim mesmo.” (idem)

Lepê Correia, enquanto contista, parece ter como objetivo denunciar as várias facetas da periferia, sobretudo da favela. No conto “Temporal no barraco de Binho”, o medo, “esse negócio esquisito que invade o coração” (Cadernos Negros 22, 1999: 51), assombra o protagonista devido à chuva forte que cai sem parar, já que “a água descia levando em seu trajeto capim, pedra, lodo, areia e algumas esperanças”. Binho vê seu gato, Pixuí, descer a ladeira da favela arrastado pela água pluvial – cena comum nos guetos urbanos, esquecidos pelo poder público. O gato funciona como tentativa de “abrandar” o que de fato ocorre com os moradores de encostas. Em outros termos, o gato é um eufemismo humano. Entretanto, ver um animal de estimação levado pela chuva é sentir-se em parte indo também. Mas o pior é quando Binho percebe “o caibro da cumeeira se partir e a cozinha ser projetada no abismo como um vagão de trem que se desengata.” (idem, p.52) Ao amanhecer, a mãe de Binho sobrevive ao temporal, mas não a esperança do protagonista que, “mesmo com toda a claridade do sol, (...) mergulhou nos braços da escuridão ... chamando por Pixuí...” (ibidem, p. 53).

Lepê Correia, pois, é figura representativa da cultura afro-brasileira e passagem obrigatória para aqueles que se interessarem por passeios nas estradas das alteridades. Um escritor cujos mistérios estão por ser revelados e muito nos tem a dizer.

Referências

Cadernos Negros 19 (Org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje; Editora Anita, 1996. (poemas).

Cadernos Negros 21 (Org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje; Editora Anita, 1998. (poemas).

Cadernos Negros – melhores poemas (Org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje; Editora Anita, 1998.

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* Luiz Henrique Silva de Oliveira é Doutor em Letras, Estudos Literários, pela UFMG, professor do CEFET-MG, campus Belo Horizonte. Na UFMG, atua como pesquisador do NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do literafro. Publicou, entre outros, Poéticas negras: representações do negro em Castro Alves e Cuti (2010) e Negrismo: percursos e configurações em romances do século XX, 1928-1984 (2014). É coautor da coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (3.ed., 2021) e de Literatura afro-brasileira 100 autores do século XVIII ao XXI (2.ed., 2019).

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