A memória verbal e icônica na literatura infantil de Josias Marinho

Glauciane Santos1

 

Em agosto de 2015 estive com Josias Marinho de Jesus Gomes, para uma breve e marcante conversa que me levou a algumas reflexões, a respeito de seu percurso enquanto autor e também sobre a literatura infantil. Esse escritor e ilustrador, natural do estado de Rondônia, nasceu no dia dezenove de novembro de 1979, em uma cidade à margem do Rio Guaporé, chamada Real Forte Príncipe da Beira. Foi registrado, no dia vinte de novembro de 1979, enigmaticamente um presente paterno, como bem sabemos nessa data comemora-se o dia da Consciência Negra no Brasil, muito significativa para o autor, já que seus trabalhos ilustram a cultura e a arte negra, o recorte étnico é uma escolha consciente em sua trajetória.

Formou-se na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, onde atuou como professor substituto no mesmo curso. É o segundo docente negro dessa instituição. A disciplina ofertada por Josias Marinho, no ano passado, foi “Relações Étnico Raciais e Cultura Afro-brasileira”, é a segunda vez que essa foi oferecida no curso. Também lecionou na Arena da Cultura, escola livre de artes da prefeitura de Belo Horizonte. Faz exatamente dezoito anos que vive em Minas Gerais e percebi no escritor um enorme desejo de retornar a Rondônia, em vários momentos ele expressou essa vontade, suas lembranças a respeito do seu estado são muito ternas.

Josias é o mais novo de uma família de nove irmãos, desses, cinco são homens e quatro mulheres, dois faleceram. Ele nasceu em uma enfermaria do exército, o único dos filhos que veio ao mundo nesse local, a diferença da idade dele para o penúltimo filho é de nove anos, também foi o único dos filhos que não conheceu o pai, tinha nove meses quando esse faleceu devido a um acidente de trabalho. Coube aos irmãos lhe ensinar traquinagens e peripécias, em seu olhar percebi muitas saudades dessa época. O irmão Hélio Marinho Gomes, o levava para pescar, tal fala resgatou doces recordações de sua infância em Real Forte Príncipe da Beira.

O pai, Pedro Marinho Gomes, nascido em uma pequena cidade do Ceará, chegou a Rondônia por intermédio do exército, com seu desligamento acabou ficando nesta localidade juntamente com uma irmã. Sem estudos, tornou-se extrativista, com a perda de seus documentos perdeu todo contato familiar com a sua cidade natal, foi nesse local que conheceu dona Augusta de Jesus Nobre, mãe do escritor.

É por meio dessas referências familiares e saudosistas que nasceu em 2011 o primeiro livro infantil de sua autoria, O Príncipe da Beira, uma obra de cunho autobiográfico, pois é uma simbiose de Josias e de seu irmão Hélio, e cenestésica, que ilustra as peripécias de um menino negro na localidade de Real Forte Príncipe da Beira, atual município de Costa Marques, no estado de Rondônia, mesmo local de nascimento do autor. Nesse cenário onde a natureza se faz imponente com suas cores, plantas, frutas, água e ruídos, que essa criança com ares de realeza, cresce e se faz forte. O garotinho colhe abacates, sobe no pé de laranja para brincar, tem uma mãe rainha, o aconchego do colo torna-se seu trono. Quando necessário ela sabiamente também o corrige.

O Príncipe da Beira é um exímio negociante, junto à mãe comercializa os produtos naturais de sua fortaleza e sente-se feliz “ao oferecer ao povo a riqueza de seu quintal” (MARINHO, 2011, p.11). O nosso pequeno personagem não está sozinho, com a cumplicidade de seus irmãos explora este reino e os segredos deste lugar mágico. Os seres encantados fazem parte do cenário, o sol e as estrelas são testemunhas da sabedoria deles,

Conhecem a pescaria do dia e da noite, sabem dos bichos da Gapó, da Baía e do Garapé. Eles pescam com linhada, anzol e massa de pão. Primeiro pegam as Piabas para depois embarcar Carás, Pacus, Piaus, Piranhas, Tucanarés e até mandis que desanimam a pescaria (MARINHO, 2011, p. 14).

A linguagem lírica está presente do inicio ao fim da narrativa. O menino e os irmãos seguem a desbravar o mundo encantado do seu reino, mergulham no rio e dão saltos que figuram a liberdade. O príncipe se sobressai dentre todos “O menino príncipe é o mais esperto. Mergulha como ninguém, parece filho de boto. Ele se esconde dos irmãos e dá susto nas irmãs” (MARINHO, 2011, p. 16).

Ao final da narrativa vemos o encontro das águas, representadas pelos rios Guaporé e Mamoré, esse é o quadro que o Menino Príncipe vislumbra no seu reino. O garoto adormece ao som da benção da rainha mãe e sonha com os encantos de sua terra.

Na narrativa há fortes elos entre ilustração e texto verbal, isso é visível em todas as páginas que se seguem, na descrição memorialística do Menino Príncipe ao relatar para nós, seus interlocutores o lugar simbólico onde ele ternamente guarda suas memórias afetivas. Percebemos um olhar sensível ante o verbal e os traços ilustrativos, implicitamente há uma convocação ao leitor para construir tal sentido discursivo, mas salientamos que Josias Marinho com seu duplo trabalho de escritor e ilustrador tem sua relevância na construção desses sentidos, a liberdade no arranjo do tempo e espaço é expressa de forma evidente pelo autor por meio da escrita e do icônico. A literatura e as artes visuais se entrelaçam, vale ressaltar que o texto literário e a pintura dialogam desde antiguidade clássica. No artigo “Entre modos de ver e modos de ler, o dizer”, Célia Abicalil Belmiro (2012) nos afirma que:

É frequente, na história das relações entre essas artes irmãs, uma servir de modelo para a produção da outra, isto é, artistas pintam a partir de descrições literárias ou escritores apresentam sua leitura das obras de arte através de textos poéticos, seja em prosa ou poemas. Nesse caso, o que se faz ultrapassa a simples descrição de uma arte pela outra e afasta a ideia da ilustração como tradução do legível. Todavia, não se devem esquecer os múltiplos exemplos da História da Arte que apontam inúmeras obras de arte que tomam outra como parâmetro e que realizam comentários, referências, paródias, verdadeiros estudos a partir das interlocuções travadas (BELMIRO, 2012, p.120).

Ao evidenciar tal assertiva, Belmiro nos mostra que o implemento dos desenhos gráficos na literatura infantil no século XXI, não apenas recupera um construto antigo dessa arte como a recompõe como ferramenta dialógica e literária de grande valor na atualidade. Para a estudiosa esta relação “entre o icônico e o verbal é múltipla” (BELMIRO, 2012, p.128). Novos conceitos, saberes e dispositivos dialógicos são ativados e exigidos na interlocução da narrativa.

O segundo livro de Josias Marinho, lançado em 2014, é Benedito, uma narrativa em imagens que irá descrever a formação identitária e ancestral do garoto Benedito. Metaforicamente a obra alude também à memória do Congado, cerimônia que “reconstrói laços simbólicos com a linhagem de ancestralidade africana brutalmente rompida com a diáspora imposta pela escravidão”. O nome Benedito significa “aquele que é abençoado”, pois remete a São Benedito, filho de escravos vindos da Etiópia para Itália, que, aos vinte anos, tornou-se um eremita franciscano e inspirador de muitas irmandades religiosas presentes inclusive no Brasil.

Na obra citada a imagem é fundamental para leitura, pois expressa e conduz a narrativa. Célia Abicalil Belmiro nos expõe que o ilustrador tem o papel de estabelecer na interlocução icônica um valor afetivo, se assim o fizer realiza um precioso fazer literário. (BELMIRO, 2012, p.117). Elementos como as cores, o estilo do desenho, a descrição, a narração e o conhecimento prévio de mundo devem orientar a leitura da narrativa. Em Benedito, constatamos tais noções, mais uma vez Josias Marinho cumpre um duplo papel, ilustrador e autor se complementando na construção do texto icônico. Já o sentido dialógico está no leitor, sem a sua interação os significados e a afetividade destacada por Belmiro não são construídos.

O discurso literário e imagético em Benedito se organiza da seguinte maneira: a imagem simbolizada na primeira página do livro é de um tambor, esse é composto pelas cores azul, amarelo e laranja. Os detalhes do acabamento têm o realce do preto, os traços da figura são vivos e impactantes. Na página seguinte notamos o menino Benedito o admirando de longe, na terceira página ele ainda fica observando, mas posteriormente se aproxima do instrumento e o toma para si, prepara suas paletas para tocá-lo, as cores começam a se movimentar, ou melhor, a cor azul representa metaforicamente a emissão do som do tambor, expressando assim vivacidade na narrativa imagética. Além de remeter ao Congado, esse tem outras funções culturais, uma delas é a preservação da tradição ancestral africana, pois foi utilizado nas mais longínquas eras. Para os povos africanos o batuque opera o envio e recebimento de mensagens aos ancestrais, além disso, o tambor é importante para salvaguardar a memória oral da sua gente.

O menino segue na história recebendo retoques de preto, até ser enegrecido esteticamente por completo. É quando esse recebe das negras mãos de um homem mais velho um chocalho, simbolizando o respeito à ancestralidade. É o mais velho que traz informação ao mais novo. O som emitido do chocalho é também representado iconicamente por traços de tonalidade vermelha, as extremidades das páginas que se seguem também ganham novos contornos. A leitura visual do cenário traz a emoção e beleza à narrativa.

No Congado as crianças exercitam com toda propriedade a performance apresentada na cena anterior, o simbolismo entre o personagem Benedito e o homem mais velho representa musicalidade, interação e troca. E, sobretudo o sagrado. Nas congadas, adultos, jovens, meninas e meninos podem participar da celebração. Onde a guarda do congado passa, a comida é oferecida, o primeiro prato é dedicado em oferta a São Benedito, todas as guardas e visitantes são convidados a comer. Já os instrumentos possuem representatividade específica, o chocalho tem o seu lugar, o cajado, a espada e a coroa também. A tradição renovada ininterruptamente remete a memória, história, cultura e identidade afro-brasileiras.

Na narrativa, Benedito coloca o chocalho nas pernas e se põe a dar passos precisos e ritmados, novamente em cena aparece uma negra mão e entrega ao menino um objeto, agora é um traje, não é qualquer roupa. É uma cerimônia ritualística, de forma reverente e respeitosa ele recebe e imediatamente veste a indumentária, algo é descrito e expresso visualmente na narrativa nesse momento, e o menino finalmente retira a chupeta, que ostentava na boca desde o inicio. Essa imagem nos remete ao desprendimento assumido pelo garoto, que decide crescer no saber e no entendimento, mas não o faz só, a memória e a identidade dos mais velhos foram necessárias para esse passo rumo ao crescimento.

O teórico Julio De Zan aponta que “sem a memória do passado e sem as redes das categorias recebidas por meio da tradição, não é possível nenhum conhecimento compreensivo do presente e nenhum projeto consistentemente realista para o futuro” (DE ZAN, 2008, p.42), sendo assim a narrativa reitera com o desfecho final a afirmativa citada, por meio da imagem do menino Benedito entrelaçado com suas pequeninas mãos as mãos de um adulto, o legado é cristalizado por meio desse ato. O corpo e o rosto desse homem não aparecem totalmente, somente à mão, embora um mosaico simbólico de figuras seja indispensável para preservar a memória cultural e identitária de um povo, o garoto necessita tão somente da herança dessa representatividade para prosseguir.

Após a idealização de Benedito, uma interessante descoberta foi revelada ao escritor Josias por meio de uma conversa com sua mãe. A cidade de Rolim de Moura do Guaporé em Rondônia, fora a localidade em que viveram seus avôs maternos Benedito e Vicência, eles são originalmente de uma região chamada Vila Bela, em Mato Grosso, hoje essa é reconhecida como remanescente quilombola. Somando-se a isso o escritor recordou-se após a conclusão da obra que seu avô também se chamava Benedito, o mesmo nome do nosso pequeno personagem, para alegria do autor assim como o menino seu avô também fora Congadeiro.

Salientamos que a imagem ilustrativa em Benedito é pensada com autonomia, as artes visuais e gráficas figuram o texto literário icônico. A ilustração na narrativa é provida de potência estética, recordando que o enredo não se compõe graficamente de palavras, o sentido está presente em todo texto imagético, cabe o leitor observar e interagir. Todos os detalhes visuais apresentados são importantes para composição deste mosaico de signos.

As ilustrações nas duas obras cumprem funções descritivas, narrativas, simbólicas, expressivas, estéticas e metalinguísticas. Os desenhos são belamente construídos, fugindo de uma imagem caricatural. Os personagens ilustrados, Benedito e o menino aventureiro Príncipe da Beira, demonstram altivez, simpatia e inteligência, ambos representam a integridade e o zelo do autor/ilustrador em dar vida aos dois meninos.

Josias Marinho ilustrou outros livros, onze no total, dentre estes sete tem o recorte étnico racial, Omo-Oba, histórias de Princesas, de Kiusam Oliveira; Kuami, de Cidinha da Silva; Cafuné, de Benilda Brito; Zumbi dos Palmares, de Madu Costa. Para o escritor e ilustrador a imagem antecede o texto, suas ilustrações possuem um contraste entre o preto e branco, ele faz uso da técnica do Nanquim. Para Josias é importante pensar criticamente a respeito da tonalidade da cor, pois a obra ganha em qualidade estética. Consideramos que os dois livros do autor elucidam o que Eduardo de Assis Duarte (2011) conceitua como literatura afro-brasileira, além de tratar da temática mencionada, as obras possibilitam uma identificação positiva das crianças com elementos da identidade negra e da cultura africana.

Ao abordarmos no presente texto as obras da literatura infantil, O Príncipe da Beira e Benedito, partimos do princípio de que “a noção de literatura que vem predominando entre os estudiosos das várias áreas de conhecimento é a de identificá-la como um dinâmico processo de produção/recepção que, conscientemente ou não, se converte em favor da intervenção sociológica, ética e política. Nessa ‘intervenção’ está implícita a transformação das noções já consagradas de tempo, espaço, personagens, ação, linguagem, estruturas poéticas, valores éticos ou metafísicos, etc.” (NOVAES, 2000). Ainda de acordo com a autora, “o caminho para a literatura infantil, no século XX, foi aberto pela psicologia experimental”. À leitura na infância não deve, portanto, ser atribuída apenas o papel de produto de entretenimento, mas deve servir também para a formação humana aberta às emoções, ao sonho e à imaginação.

O panorama da literatura infanto-juvenil no Brasil inicia-se a partir do século XIX, conforme destaca Débora Cristina de Araújo no artigo “A Produção Literária Infanto-Juvenil Brasileira e as Relações Raciais: Conjuntura, Limites e Possibilidades”. Ela declara que os primeiros livros para crianças e jovens brasileiros eram traduções dos grandes clássicos europeus, tais como, As aventuras pasmosas do Barão de Munkausen, em 1818, O canário, em 1856, e Robinson Crusoé, em 1885, entre outros. A autora ressalta ainda que essa literatura foi um produto oriundo da ascensão da burguesia, cercada de narrativas descontextualizadas da realidade dos pequenos brasileiros. Foi a partir dessa ausência que se originou o interesse de escritores brasileiros pela escrita para esse público. Entretanto essa literatura ficou reduzida ainda a aspectos didatizantes e patrióticos. Tais características inferiorizaram e diferenciaram a literatura infantil da adulta. A partir de 1970, observamos outra conjuntura, temas pouco abordados pela literatura infantil e juvenil como desigualdade racial, de gênero, social e relacionamentos humanos conflitantes passam a ser trabalhados nas narrativas. Entretanto, as crianças pobres, tanto negras quanto brancas, não eram personificadas nas obras, sendo invisibilizadas, e, quando mencionadas, tinham sua representação impregnada de visões deturpadas. Regina Zilberman pontuará que até então a literatura infantojuvenil,

[...] evitava o ‘lado podre’ da sociedade, seja em termos sociais (ausência de temas relacionados ao sexo, às diferenças raciais ou conflitos de classe) ou existenciais, faltando à apresentação de determinados problemas familiares como à falta de dinheiro, dos pais, a morte, os tóxicos (ZILBERMAN, 1987, p.80).

Contudo os estereótipos e questões relacionadas às relações étnico raciais não foram tratados com profundidade pela literatura apresentada. Ao contrário, algumas histórias reforçam certas tendências e impressões, como por exemplo caso do conto “Negrinha”, de Monteiro Lobato, que retrata uma menina negra estigmatizada pelo preconceito, ignorância, dor e passividade. Não há saída para essa criança, mesmo na hora da morte da personagem, há ausência de crítica ante a hipocrisia social da senhora branca que diz criá-la de forma caridosa. Consideramos que narrativas como essa não contribuem para um olhar construtivo sobre as relações étnico raciais com as crianças brasileiras, pelo contrário reforçam a posicionamento subalterno com o qual o negro foi retratado em grande parte da literatura infantojuvenil no Brasil. Isto porque entendemos que as escolhas e estéticas são impregnadas de ideologia e questionamos o tipo de identificação que leituras como essas podem proporcionar ao imaginário infantil.

No artigo “O Negro na literatura Infantojuvenil Brasileira”, de Luciana Cunha Lauria da Silva e Katia Gomes da Silva (2011), as autoras tratam do modo como a imagem e a cultura negra têm sido tratadas nas obras literárias voltadas para o público infantojuvenil que, antes de 1850, não apresentavam imagens de crianças, mulheres e homens negros. Estas declarações serão sustentadas por dois fatores, o primeiro diz respeito ao posicionamento de alguns escritores da época, os quais não consideravam os negros como humanos; o segundo trata do público leitor aos quais a escrita se dirigia. O negro, quando aparecia nas narrativas dessa época, era para contracenar com os índios, tendo muitas vezes sua figura estereotipada, inferiorizada e animalizada nessas narrações. É importante salientar que as obras desses e de outros escritores não devem ser descartadas e sim revisitadas e problematizadas. Outro fator que precisamos considerar é a ausência de obras genuinamente brasileiras, como já pontuamos a maioria nas narrativas infantis desse período eram traduzidas ou adaptadas.

Com base nas declarações apresentadas, inferimos que os contos, os mitos, as lendas e outras narrativas infantis podem influenciar fortemente seu público alvo. Vale destacar que a literatura não é neutra, ela tende a desarticular estruturas estáticas, já cristalizadas no tempo, podendo formar ou deformar a consciência. É nesse contexto que a literatura infantojuvenil e as relações raciais, sob o prisma da Lei 10.639/03, têm sua importância. Com isso, não queremos de forma alguma transformar a literatura e tratá-la como um mecanismo propagador de ideias para forjar certos padrões de comportamento, certamente é incorrer em equívocos. Mas não podemos ocultar que durante muito tempo as representações do negro, presentes em muitos livros de literatura para crianças e jovens no Brasil, eram majoritariamente negativas. Conforme destacam Luciana Cunha Lauria da Silva e Katia Gomes da Silva,

A ausência de personagens negros ou a sua marginalização nas histórias infanto-juvenis acarreta, de fato, sérias consequências no imaginário do educando, criando uma realidade distorcida e preconceituosa, contribuindo, assim, para sustentação de uma ordem social desigual. (SILVA e SILVA 2011, p.7)

Ante ao panorama relatado, reiteramos a importância de recordar que, assim como o maravilhoso é ativado mediante a leitura das fábulas, aspectos negativos sobre a figuração do negro também poderão ser construídos no subconsciente da criança.  Por isso, obras como O príncipe da Beira e Benedito constituem um saudável contraponto no âmbito da literatura infantil, ressaltado pela qualidade estética dos volumes.

Por fim reiteramos que toda criança brasileira – branca, negra, parda ou indígena – deve ter contato com os aspectos da cultura negra, até para percebê-la como componente fundamental da diversidade multiétnica que nos constitui enquanto povo. Romper com as formas e procedimentos tradicionais a nos revelar modelos picturais e verbais que resgatam novos saberes, desconhecidos do público infantil. Os personagens Benedito e o menino Príncipe da Beira simbolizam essa proposta. Conhecer o mundo deles é um convite literário para interagir e viajar por meio de suas memórias.

Referências

ARAUJO, Débora Cristina de. A Produção Literária Infanto-Juvenil Brasileira e as Relações Raciais: Conjuntura, Limites e Possibilidades. XI CONLAB: UFBA, 2011.

BRITO, Benilda Regina de Paiva. Cafuné. Ilustrações de Josias Marinho. Belo Horizonte: Editora e Distribuidora Palmares Ltda., 2010.

BELMIRO, Célia Abicalil. Entre modos de ver e modos de ler, o dizer. Educação em Revista. Belo Horizonte, v. 28, n. 04, p. 105-131, dez. 2012.

COSTA, Madu. Zumbi dos Palmares. Ilustrações de Josias Marinho. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.

DE ZAN, Julio. Memoria e Identidade. Revista de Filosofia de Santa Fé (Rep. Argentina). Nº 16, 2008, p 41-67.

LOBATO, Monteiro. Negrinha. São Paulo: Globo, 2008. 205p.

MARINHO, Josias. Benedito. São Paulo: Saraiva, 2014.

_____. O Príncipe da Beira. Belo Horizonte: Mazza, 2011.

NOVAES, Nelly. Literatura Infantil – Teoria Análise Didática - São Paulo: Moderna, 2000.

OLIVEIRA, Kiusam. Omo-Oba: Histórias de Princesas. Ilustrador Josias Marinho. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009.

PEIXOTO, Fabiana de Lima. Literatura Afro-Brasileira. Salvador: Programa A Cor da Bahia, FFCH/UFBA, 2013.

SILVIA, Luciana Lauria da; SILVA, Kátia Gomes da. O Negro na Literatura Infanto-juvenil Brasileira. Revista Thema /Volume 8: 2011.

SILVA, Cidinha da. Kuami. Ilustrador Josias Marinho. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.

ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. 6. Ed. São Paulo: Global, 1987.

ZILBERMAN, Regina. LAJOLO, Marisa. Literatura infantil brasileira - História & Histórias. São Paulo: Ática, 2007.

1 Glauciane Santos é graduada em Letras pela UFMG, professora do ensino fundamental e médio, mestranda em Estudos Literários pelo Pós-Lit UFMG e participante do grupo de pesquisa “Afrodescendências na literatura brasileira”.

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