A literatura marginal de Abelardo Rodrigues: resgate da memória e olhar crítico sobre o presente

 

Danielle da Costa Rocha*

A lembrança é em larga medida uma
reconstrução do passado com ajuda de
dados emprestados do presente e, além
disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas
anteriores e onde a imagem de outrora
já se manifestou bem alterada.
Halbawachs

É de conhecimento geral que a literatura afro-brasileira tem sido ignorada e posta à margem por alguns críticos conservadores, no entanto, também está se tornando uma prática o resgate de tais textos. Acredito que no atual momento histórico em que vivemos, começamos a perceber que o “outro” está deixando de ser apenas um conceito teórico, passando a enunciador de sua história. Com esse novo papel, tal sujeito começa a refletir sobre questões que dizem respeito a si e aos seus pares.

Uma das características da literatura afro-brasileira é a presença de um eu-enunciador que não se vê mais com olhos alheios, mas sim com seus próprios. Nessa escrita há uma (re)construção da memória e consequentemente da identidade afrodescendente, já que se propõe, através da linguagem, a romper estereótipos relacionados aos negros. O uso desta é capaz de promover ressignificações e a quebra de paradigmas. Conforme ressaltou Leyla Perrone-Moisés:

Combater os estereótipos é pois uma tarefa essencial, porque, neles, sob o manto da naturalidade, a ideologia é vinculada, a inconsciência dos seres falantes com relação a sua verdadeiras condições de fala (de vida) é perpetuada. (Apud Barthes, 1978, 58)

Portanto, uma pesquisa na qual o objeto de análise seja uma obra afro-brasileira é de fundamental importância, pois, essa escrita ao trabalhar memórias e identidades mostra como o afrodescendente se sentia “um estranho dentro da própria casa”, conforme ressaltou certa vez o pensador norte-americano Du Bois (1999, 53). Sendo assim, este viés da literatura não pode continuar sendo ignorado e posto à margem dos textos ditos canônicos.

Diante dessas questões, propus-me a pesquisar a obra de Abelardo Rodrigues, um contista e poeta que nasceu em Monte Azul Paulista -SP, em 10 de Outubro de 1952. O escritor também é cofundador do Quilombhoje, juntamente com Luiz Silva [Cuti], Oswaldo Camargo, Mário Jorge Lescano e Paulo Colina, que tinham como objetivo divulgar a produção literária dos afrodescendentes e incentivar os estudos sobre a cultura e a literatura afro-brasileira. Os materiais analisados neste trabalho são o livro de poesias Memória da Noite (1978) e as participações de Rodrigues como contista e poeta em Cadernos Negros 2 (1979) e 3 (1980), publicados pelo Quilombhoje. Ressalta-se, ainda, que na escrita do poeta “é o eco de suas vivências que se faz palavra” (1978, 5) o que aponta, portanto, que o lugar de enunciação de tais obras na análise desse estudo é de total relevância, pois o ponto de vista adotado pelo autor indicará o conjunto de valores que fundamentaram as escolhas de linguagem.

A partir da análise do conto “O último trem”, publicado em Cadernos Negros 2, já podemos observar tal lugar de enunciação. Encontramos nesse texto um narrador em primeira pessoa que relata a história utilizando uma linguagem coloquial. Este narrador-personagem é um homem negro que, enquanto espera o horário do seu embarque, numa estação, relata-nos uma história que é sua e de seus irmãos de cor. Seus pensamentos e cogitações conformam a matéria do conto. Durante a leitura do conto, seu nome não é revelado, o que faz com que o leitor não se prenda a uma individualidade, a um vínculo particular, mas a um ponto de vista coletivo. É como se pela falta do nome desse personagem o autor tivesse por objetivo falar das dificuldades de uma comunidade mais ampla, no caso a afrodescendente.

O passageiro está na estação à espera do último trem e indaga a todo instante como vai contar para Rosa, sua esposa, o fato de ter perdido o emprego, o que ilustra o pensamento de Du Bois, ao afirmar: “o problema do século XX é o problema da barreira social” (1999, 64). É possível perceber explicitamente nos textos de Rodrigues a abordagem de tal assunto, pois, através das divagações do personagem, o texto critica a desigualdade social, que produz ilhas de riqueza cercadas de miséria. Em determinado momento do conto, o narrador se vê confuso e sem saída entre os luminosos da cidade. Estes, comuns nas metrópoles, acendem e apagam a todo instante, demarcando os signos e lugares da sociedade de consumo. E remetem metaforicamente ao sistema opressor, que gera exclusão e não constrói “saída” alguma para os que não tiveram oportunidade de um trabalho digno.

Nesse contexto de denúncia social, notamos que há um resgate da memória afro-brasileira, através das mensagens de esperança alicerçadas na história de heróis do passado. Um deles, Zumbi, é alçado a modelo de luta e resistência: “... mas eu acredito que é preciso uma atitude contra a pobreza e coisa assim (...) fazer como fez nosso Zumbi. Eu respeito muito nossos heróis negros”.(Cadernos Negros 2: 1979, 10). Quando Abelardo traz para seu texto um herói afro-brasileiro, ele quebra um ciclo de propagação de esquecimento da História oficial que coloca muita das vezes à margem alguns personagens negros, como o próprio Zumbi. Não queremos aqui pregar contra a historiografia oficial, mas sim ressaltar que paralelamente a ela, há outras histórias, conforme apontou Seligman-Silva: “no que tange à dicotomia história e memória creio que um registro não deve apagar o outro” (2003, 62).

O autor do conto ao trabalhar memória e história mostra consciência da inexistência de uma neutralidade. Sabemos que junto ao lugar de enunciação sempre haverá um ponto de vista que coincide ou com os vitoriosos ou com os vencidos. O poeta, como ato de resistência ao apagamento da memória afro-brasileira, toma para si o papel de reconstruir, via literatura, trajetórias individuais e coletivas, procurando reagir contra uma dinâmica do esquecimento. E, indo mais além, afirmo, também, que há uma reformulação da identidade do afro-brasileiro na escrita de Rodrigues, identidade que no texto se constrói a partir de uma história de ancestralidade africana, já que podemos partir do pressuposto que não existe identidade sem memória.

Observa-se, ainda, que em diversos momentos, o autor conduz o leitor a vivenciar, através de seus textos, a realidade do negro na contemporaneidade. Neste mesmo conto, o narrador trata das dificuldades que atingem o afro-brasileiro, como se comprova na seguinte passagem: “o meu compadre Antonio, acha que nós devemos nos contentar com as coisas da vida que só acontecem aos pobres como nós...” (Cadernos Negros 2: 1979, 10). Quando o narrador diz: “aos pobres como nós” ele direciona os olhos do leitor para uma realidade que exclui a pessoa não só pela condição financeira, mas também pela cor da pele, pois não são quaisquer pobres, são “como nós”, ou seja, negros, já que é este o lugar de fala do narrador.

O olhar do narrador, já que se encontra marcado pela memória e pela história, possibilita a ele ter sobre a realidade uma visão crítica ao apontar os problemas que cerceiam o negro no presente e perceber que estes não surgiram de uma hora para outra, vejamos:

Agora essa coisa de escravo e negro, é um troço bem complicado; nós saímos dela há uns oitenta e cacetada de anos, e segundo disse o Carlos, um dos mulatos (o mais escurinho): ainda temos todos os sofrimentos no sangue, são coisas (quatro séculos são coisas?) que não podem ser esquecidas, porque nos marcaram, estão em nossos olhos, em nossos gestos, nos gestos de muitos brancos que chegaram até por último e já botam banca nos seus carros nas suas firmas. (Cadernos Negros 2: 1979, 11).

De maneira lúcida, o texto indica ao leitor reflexões que podem desfazer todo um pensamento hegemônico: a de que o negro está em uma situação social inferior por que não gosta de trabalhar (quem nunca ouviu falar da famosa imagem do negro malandro?). Essa passagem nos relembra que tudo seria consequência de um passado no qual houve uma exploração da mão de obra africana e afro-brasileira escravizada, sendo depois lançada à própria sorte. Portanto, a memória que é subjetiva e seletiva é utilizada como instrumento de desmistificação das ideias que até então eram incontestáveis.

Além do resgate da memória e de seu posicionamento crítico sobre a condição do negro no presente, Abelardo Rodrigues trabalha com os signos no texto de maneira consciente, fazendo inversões de linguagem, deixando evidente que o ponto de vista que o direciona é o daquele que está à margem da sociedade: “agora os jornais estão noticiando... vai ser o maior tendéu se acontecer isso também nas outras fábricas, então eu acho que as coisas vão ficar brancas” (Cadernos Negros 2: 1979, 9). Como sabemos, na literatura, o ponto de vista é o fio condutor das escolhas de linguagem e, nessa passagem é possível comprovar isso. Com um certo tom de ironia e promovendo ressignificações, o autor utiliza a expressão “as coisas vão ficar brancas”, ao invés do mais usual “as coisas vão ficar pretas”. A troca realizada pelo escritor substitui a expressão carregada de sentido pejorativo pela outra, num exercício linguístico de combate aos estereótipos. Nesta passagem, o autor deixa perceptível seu olhar periférico e o seu lugar de fala afro-brasileiro, utilizando a linguagem a fim de um propósito, o que dialogaria com a afirmação de Barthes de que “a língua entra a serviço de um poder” (1978,14).

A simplicidade da linguagem do conto contrasta com o trabalho estético mais elaborado dos poemas analisados tanto em Cadernos Negros 3, quanto em Memória da Noite. Pode-se perceber através dos poemas que o eu-lírico deseja tirar seu receptor de uma posição inerte, ao lançar mão de signos mais rebuscados cujo entendimento exige um maior esforço do leitor para entendê-los. No poema selecionado de Cadernos Negros 3, o leitor passa a um papel ativo na busca pela compreensão do texto:

À Procura de Palmares

 

Como voz de faca
  em voo
  derrubando pássaros antigos
  ou vento de homens
  que sopram desejos
  de velhos risos perdidos
  em correntes,
  é preciso que o punho
  seja espelho de nossa fé.

         E que meus olhos tremidos
estejam ainda na penumbra
da razão negada,
é preciso que se galgue
a poeira levantada
e se ache
entre palmeiras
                       lanças
                                  guerreiras
                                                 intactas.

(Cadernos Negros 3: 1980,13)

Para uma melhor interpretação dos poemas de Abelardo Rodrigues, necessitamos ter em mente o lugar de enunciação do autor. Este é e se quer negro, portanto, sua fala é representativa da coletividade negra, uma vez que traz à tona, em seus textos, temas relacionados à afro-brasilidade, tais como: a discriminação, a desigualdade, a resistência e a necessidade de luta. No poema citado, o eu-lírico vê a linguagem como instrumento imprescindível à batalha: “voz de faca” capaz de derrubar “pássaros antigos”. Pode-se inferir que esta expressão remeta ao preconceito e ao racismo que estão presentes, ainda, na sociedade contemporânea. O escritor ressalta as necessidades da luta, e não do conformismo. Esta deve ser “a nossa fé” e de quem não deseja perder ter sua voz silenciada: a “razão negada”. O eu-lírico conclui dizendo que é preciso resgatar lanças guerreiras intactas, signos de uma memória afrodescendente onde encontra renovo para sua força. Portanto, o leitor percebe que a opção pela cor da escrita de Abelardo Rodrigues é negra, pois esta se identifica com as glórias e problemas dos afrodescendentes.

Em outro poema, de Memórias da Noite, o eu-enunciador evidencia seu lugar de enunciação:

Quero expelir a dor do meu sangue
dizer
em gritos coagulados em senzalas
calado
em transbordantes rubros de bisturis
cálices
estuprando a eterna pureza de ideias
brancas

(...)

(Rodrigues, 1978, 15)

Nesse poema, em nenhum momento é posto explicitamente algo sobre o negro. Porém, são utilizados símbolos que nos remetem à sua história, como por exemplo, “senzalas”. Analisando esse trecho, percebemos que o eu-lírico expõe a dor que o acompanha e aqueles que tem seu sangue, ou seja, os afrodescendentes. Sendo assim, ele deseja “expelir/dizer” os gritos que foram “coagulados/calados” nos anos de senzala. Neste sentido, mais uma vez, a linguagem é capaz de quebrar o silenciamento imposto aos negros, pela literatura e pela historiografia oficiais. Essa voz que se quer negra deseja fazer-se ouvir não importando se seus dizeres violentarão a “eterna pureza de ideias brancas”.

Depois dessa pequena análise, podemos falar que os textos de Rodrigues dialogam com a história e propõem uma atitude menos passiva politicamente. Tal diálogo se dá nas referências à temática e à memória do afro-brasileiro, num exercício de resgate da sua trajetória e na denúncia do rebaixamento social de que é vítima esse segmento da população. O poeta sempre retorna ao passado, mas não com nostalgia, cabe ressaltar, mas para tomar seus antepassados como exemplos a serem seguidos e, com isso, tirar forças para poder continuar a luta por mudanças. Já a proposta política, nos textos de Rodrigues, dá-se através das referências aos problemas sociais que afetam a comunidade em questão, o que impele o leitor a sair de sua atitude passiva diante das dificuldades do presente. Sua literatura é, portanto, negra ou afro-brasileira, pois nesta “o negro articula uma linguagem literária própria, rompe o discurso da cultura oficial e se manifesta como um elemento de resistência à sua marginalização social” (Ianni, 1988,8).

Além disso, um traço perceptível nos textos do autor é que este não se prende a uma forma de escrever. Em seu conto, “O último trem”, por exemplo, trabalha com uma linguagem simples e coloquial enquanto, em seus poemas, percebemos um rebuscamento na linguagem e um trabalho estético mais elaborado. Embora a forma de escrever seja diversificada, o ponto de enunciação do tema é o mesmo: o negro e sua realidade. Nesse conto, o autor vai expondo uma realidade, muitas vezes desconhecida ou ignorada, que é a pobreza e o preconceito racial. Assim como não encontramos em seus poemas versos sem ligação com a realidade étnica e social. O escritor, então, trabalha com a linguagem a fim de conscientizar o leitor da realidade afro-brasileira. E vai mais além, pois observamos que sua escrita traduz em palavras o sentir, o pensar e o existir negro, pois em todos os textos analisados notamos que o eu-enunciador ou o narrador possui um ponto de vista identificado com a história dos negros. Abelardo Rodrigues, então, elege uma parte importante da consciência social do negro e a organiza.

Observa-se, portanto, que a literatura de Abelardo Rodrigues é negro/afro-brasileira, pois, tanto no conto “O último trem” publicado em Cadernos Negros 2, quanto em seus poemas publicados em Memórias da Noite e Cadernos Negros 3, o autor se assume como negro. Este adota um ponto de vista que é o aquele que está na periferia da sociedade, não somente resgatando o passado de seus ancestrais, bem como tratando do negro e das suas dificuldades na contemporaneidade. Conclui-se, então, que à margem da literatura canônica encontram-se os textos desse poeta. Ele utiliza a memória como uma arma de resistência e luta, indo mais além, pois seu olhar crítico sobre o presente e o passado instiga o leitor a reflexões e questionamentos que geram, num primeiro momento, inquietação, e num segundo contestação das ideias hegemônicas. Ler a obra desse poeta é, então, perceber como “suas palavras erguem-se verticalmente para exprimir uma realidade que se desenha nítida no seu universo interior” (Rodrigues, Apresentação de Memória da Noite, 1978).

* Graduanda em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Referências

BARTHES, Roland. Aula. São paulo: Ed.Cultrix, 1978.

Cadernos Negros 2. São Paulo: Quilombhoje, 1979.

Cadernos Negros 3. Poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1980.

DU BOIS, W.E.B.. As Almas da Gente Negra. Trad. Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda Editores,1999.

IANNI, Octávio. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Ed. Comemorativa do Centenário da abolição da Escravatura. SP, No 28, 1988.

SELIGMANN-SILVA, Márcio(Org.). História, Memória, Literatura: o testemunho na era das Catástrofes. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.

RODRIGUES, Abelardo. Memória da Noite. São José dos Campos-SP: Ed. do autor, 1978. (poesia)

 

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