Pobre, mulata e mulher: a estigmatização de Clara dos Anjos

 

Marcos Hidemi de Lima

 

Em seu artigo “Literatura e consciência” (1988) Octávio Ianni aponta Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto como “fundadores da literatura negra”, ou seja, autores que se inscrevem na chamada literatura afro-brasileira, terminologia atualmente utilizada, a fim de evitar ambiguidades e imprecisões. Ianni não titubeia em afirmar que os três escritores de ascendência negra efetivamente pertencem ao cânone da literatura brasileira, bem como ressalta que possuem qualidades singulares, possibilitando ao leitor reconhecer em suas obras um envolvimento com a causa do negro, menos explícita nos dois primeiros e de maneira bastante pungente no último.

Entretanto, para que seja reconhecidamente literatura afro-brasileira, não basta que exista um sujeito de enunciação afirmando-se negro – conforme Zilá Bernd (1988) preconiza e ao que Luiza Lobo (2007) criticamente se opõe – fato que tiraria os méritos que Ianni observa em Machado e Cruz e Souza, porque na produção literária de ambos são poucas as figurações de um sujeito afro, e mesmo as alusões dos dois à problemática negra não são tão explícitas, naquele sentido de um discurso de preocupação racial, sociológica ou ideológica no corpo de seus escritos.

O caso de Machado é emblemático, porque a negritude e a escravidão ocorrem no seu texto por meio da sutileza, da ironia e da sátira, armas das quais lança mão o escritor para promover uma crítica contundente à classe senhorial, com o intuito de mostrar a anulação do negro pelo discurso escravagista do branco, o que não inviabiliza que o negro figurando como o ‘outro’ componha o retrato da bancarrota dos donos do poder. O negro também está praticamente ausente da obra poética do simbolista Cruz e Souza, todavia não deixa de estar tão dolorosamente presente em “O emparedado”, um texto que oscila entre a prosa e a poesia, no qual este escritor deixa o protesto contundente contra todos aqueles que julgam a criação do artista pela cor de sua pele.

Deste trio de fundadores da literatura afro-brasileira, vai ser Lima Barreto o escritor mais emocionalmente marcado pelo estigma de ser afrodescendente, deixando transparecer tanto em suas obras quanto na sua própria existência seu mal-estar diante de uma sociedade recém-saída da chaga da escravidão, ainda mantendo velhas práticas extremamente preconceituosas contra os ex-cativos. Em conflito com este estado de coisas, o escritor lança mão da literatura para explicitamente denunciar a impostura da democracia racial brasileira, valendo-se de uma “‘literatura militante’, inclusive no que se refere à luta pela expressão” (IANNI, 1988, p. 6), que se opõe a uma escritura esvaziada de sentido, mais preocupada com um vocabulário precioso, tal qual praticada pela grande maioria de seus contemporâneos de letras.

Em sua prosa fluente, Lima Barreto dá voz à silenciada gente dos subúrbios do Rio de Janeiro, num momento em que a elite carioca – vexada – tentava esconder, qual sujeira, essa população embaixo do tapete, isto é, empurrava-a para os lugares mais recônditos da cidade, com a justificativa da necessidade de modernizar a cidade. Em Os bestializados, José Murilo de Carvalho argumenta que o saneamento e o decalque de Paris sobre a parte central do Rio de Janeiro antigo explicavam-se pelas políticas públicas de reformas que visassem atender às expectativas da elite local com os olhos voltados para as estéticas europeias, envergonhada pela presença de pobres e negros circulando pelas ruas da então capital do país. O principal efeito dessa prática saneadora foi:

a redução da promiscuidade social em que vivia a população da cidade, especialmente no centro. A população que se comprimia nas áreas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Passos teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocar-se para a Cidade Nova e para os subúrbios da Central. Abriu-se espaço para o mundo elegante que anteriormente se limitava aos bairros chiques, como Botafogo, e se espremia na rua do Ouvidor (CARVALHO, 1987, p. 40).

Contra essa situação humilhante e prepotente, espécie de marca registrada das autoridades públicas dos princípios do século XX, levantou-se a escrita denunciadora de Lima Barreto, reação aliás esperada desse escritor que passou sua vida no subúrbio e foi permanentemente excluído da relação de igualdade que marca o cidadão. Pode-se afirmar que ele edifica sua obra com um olhar que perscruta “de dentro” a realidade da pequena classe média suburbana, na qual também estava inserido.

Suas criações ficcionais refletem o abandono, o sofrimento e a ausência de perspectivas dessa camada proletária, também estigmatizada etnicamente, no momento em que as elites que se assenhoraram do poder andavam namorando as ideologias racistas europeias, dando livre curso ao acirramento do preconceito racial e social contra negros e mestiços, estes mudados pela lei de 13 de maio da condição de escravos para homens livres, todavia, sem o reconhecimento da sociedade de sua nova condição de cidadãos, em decorrência da estreiteza mental produzida pelos quase quatrocentos anos de cativeiro.

Em virtude disso, Lima Barreto modulou sua voz de maneira dissonante em relação às oligarquias que, mesmo após a abolição e a proclamação da república, insistiam em manter intactas práticas segregacionistas, fechando as portas da inserção social à população negra, nem que fosse preciso recorrer a teorias raciais que estabeleciam a supremacia do homem branco em relação ao homem negro.

À margem da sociedade devido à cor de sua pele e, paradoxalmente, dentro dela por ser escritor, Lima Barreto não se constrange em ser tanto um suburbano quanto um homem assumidamente de ascendência negra, num momento histórico em que era regra ocultar a afro-descendência, na crença pueril de que os sucessivos cruzamentos raciais transformariam a população mestiça brasileira, no decorrer de um século, numa população homogeneamente branca, sem contar que a alta mestiçagem existente no Brasil constituía, nessa época, “uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da nação” (SCHWARCZ, 1993, p. 13), reforçando o preconceito de alta voltagem de uma minoria supostamente branca contra a miscigenação racial ocorrida aqui.

Observa-se que Lima Barreto assume abertamente a problemática negra, havendo em sua obra, em maior ou menor grau, a presença de elementos como temática, autoria, ponto de vista, linguagem e público, considerados as principais constantes configuradoras de uma produção literária afro-brasileira, conforme observa Eduardo de Assis Duarte (2009). Portanto, é possível perceber que há em Clara dos Anjos (1948) – romance analisado neste artigo como representante da escritura afrodescendente – uma temática voltada para questões como preconceito racial e exclusão social; um autor cuja fala assim como seu ponto de vista originam-se dos oprimidos; uma linguagem que permanentemente denuncia as humilhações impostas à mulher de ascendência negra; em síntese, um texto literário que, ao mostrar o papel de meros objetos sexuais das mulheres de cor na sociedade brasileira, pretende despertar no seu público leitor uma reação contra estes valores estereotipados.

De acordo com suas anotações sobre a protagonista e a primeira versão incompleta da história, ambas existentes na segunda edição de seu Diário íntimo (1961), Lima Barreto começou a trabalhar em Clara dos Anjos por volta de 1904, à mesma época em que o escritor via-se às voltas com a redação de Isaías Caminha (1909) e com o desejo de escrever um painel da sociedade escravagista do século XIX. A retomada ocorreu em 1920, quando o esboço de romance foi transformado em conto, publicado em Histórias e sonhos (1920). A conclusão da escrita da história da mulata Clara ocorreu entre dezembro de 1921 a janeiro de 1922, no ano em que o romancista faleceu, sendo publicada postumamente pela Revista Sousa Cruz em forma de folhetins, entre janeiro de 1923 e maio de 1924, só obtendo a impressão em livro em 1948 pela Editora Mérito.

Pelo longo tempo que o escritor dedicou a essa história, é possível inferir que este romance tivesse uma grande representatividade não só para sua produção literária, bem como para exorcizar os fantasmas do preconceito que se debatiam no seu íntimo. Se tivesse sido levado a termo, como explicita em algumas páginas do Diário íntimo, de fato a obra seria capaz de proporcionar um quadro da sociedade brasileira, desde meados do século XIX até as primeiras décadas pós-abolição. No entanto, mesmo que Lima Barreto tenha mantido a estrutura fundamental da história, que é o “de uma moça pobre e mulata seduzida por um valdevinos de boa família” (BARRETO: 1948, p. 14), segundo Lúcia Miguel Pereira, percebe-se que suas variadas versões de Clara dos Anjos apontam para a frustração de possivelmente não ter feito seu grande romance sobre o dilema da mulher afrodescendente diante do preconceito racial, da exploração sexual e da miséria socioeconômica.

A temática de Clara dos Anjos centra-se justamente no preconceito de cor e no drama íntimo da protagonista homônima que, na expectativa de um casamento que não acontece, deixa-se seduzir por um moço inescrupuloso. Grávida e abandonada pelo namorado, ao procurar a família do rapaz ela acaba sendo humilhada, devido à sua condição de pobre e mulata. Segundo José Ramos Tinhorão, a história de Clara busca ressaltar “o problema do tradicional desrespeito sexual por parte dos homens das classes economicamente mais elevadas em relação às moças do povo (principalmente as negras e mulatas)” (2000, p. 35).

Dessa maneira, a fim de “acentuar o caráter odioso da sedução se seu autor fosse branco e de condição social superior à da personagem, a humilde mulatinha filha do modesto carteiro suburbano” (TINHORÃO, 2000, p. 35), Lima Barreto carrega nas tintas ao criar Cassi Jones, um moço de família pequeno-burguesa, pintado com todas as más qualidades possíveis, evidenciando, em chave antitética, a aviltada e ingênua Clara, cujo papel na trama é o de instrumento de crítica à hipocrisia da sociedade brasileira, que insistia, anos depois da abolição, em manter no corpo da mulher de cor as sevícias que os senhores brancos perpetraram durante a vigência da instituição do cativeiro contra suas escravas.

Além disso, mesmo sentindo um grande complexo de inferioridade, a pobre moça aposta na própria virgindade para tentar galgar os degraus de um mundo de valores brancos e burgueses, supondo que Cassi represente os valores da metrópole higienizada e embranquecida, suficientemente branqueadores para apagar as nódoas de sua raça e de sua miséria econômica e social, sem perceber que por ser mulata, vigora um velado (pré)conceito “que a torna inadequada à normalidade de um casamento tranquilo e durável” (QUEIROZ JÚNIOR, 1982, p. 85), inscrevendo moças como Clara no âmbito de uma conduta social pautada pela amoralidade.

Embora disponha de melhores condições econômicas que Clara, o próprio Cassi Jones também não passa de uma figura esfacelada, mais próxima de uma cópia deturpada da ordem masculina, que mal consegue reproduzir os valores sociais, econômicos, culturais, etc., existentes nas classes superiores. Ao tentar imitar estes padrões de conduta que julga aceitáveis, sua realidade suburbana acaba traindo-o: sobressaem-se seus gestos, sua maneira de vestir-se, mostrando sua perceptível incompatibilidade com o centro da cidade, reduzindo seu horizonte de expectativas e existencial à esfera da periferia da metrópole, onde convive naturalmente com companheiros integrados à marginalidade e onde unicamente consegue seduzir moças pobres, analfabetas e mal instruídas.

Ao longo da narrativa, observa-se que Cassi procura obstinadamente aproximar-se de Clara, com o único objetivo de obter satisfação sexual, na qual não entra nenhuma demonstração de verdadeira afetividade pela moça, ou seja, “seu sentimento ficava reduzido ao mais simples elemento do Amor – a posse. Obtida esta, bem cedo se enfarava, desprezava a vítima, com a qual não sentia mais nenhuma ligação especial” (BARRETO, 1948, p. 102). Esse tipo de ação confirma sua confusa associação entre amor e ardor sexual, impelindo-o a agir não só movido pela concupiscência, mas tomado de um “estado de semiloucura” (BARRETO, 1948, p. 103), como se pode caracterizar seu desenfreado desejo de possuir Clara.

Em suma, fica evidente que o amor apaixonado que aparentemente Cassi nutre por Clara não passa de simulação, todos os movimentos do rapaz fazem parte de um jogo muito bem arquitetado, pensado friamente, sem alterar seu dia-a-dia, cujo único objetivo é possuir o corpo de Clara, valendo-se de estratagemas e de pessoas conhecidas para aproximar-se da moça. O jovem tem consciência da necessidade de seduzi-la o mais rápido possível, pois um caderno com “indicações de datas e a narração dos fatos de suas complicações com a polícia e a justiça” (BARRETO, 1948, p. 105) que insistentemente chegava pelo correio ao conhecimento da polícia e de outros causa suficiente temor no moço, a ponto de deixá-lo permanentemente alerta para empreender uma fuga.

No prefácio da edição de 1948, Lúcia Miguel Pereira comenta que Lima Barreto era “um romancista que tomava partido, que tinha preferências e antipatias” (BARRETO, 1948, p. 20), levando estas qualidades para a criação de suas personagens. Em razão disso, a ensaísta julga defeituosa a construção de Cassi Jones, retratado como vil, asqueroso, assassino, etc., contaminando negativamente até a apresentação de seus galos de briga, designados também com adjetivos bastante desfavoráveis. Todavia, a despeito desse ressentimento contra o sedutor de Clara, cabe frisar a coerência de Lima Barreto em encerrar seu romance sem puni-lo, mesmo com o evidente mau-caratismo do moço, o que esvazia um pouco a crítica acima, além de demonstrar fidelidade do escritor à realidade da maioria das moças suburbanas.

Com o intuito de pôr termo a essa falta de punição, Esmeralda Ribeiro escreveria, anos mais tarde, “Guarde segredo” (1991), um pequeno conto no qual a atual Clara narra, por intermédio de uma carta dirigida a uma presumida amiga, como acabou com a impunidade de Cassi Jones matando-o a facadas. Nessa retomada intertextual, essa ação redime, de certa maneira, a resignada Clara limabarretiana, além de representar um novo desfecho para o romance, trazendo satisfação ao próprio Lima Barreto, transformado em personagem ficcional dessa história, marcando sua presença no enredo por meio de uma fotografia ou por aparições fantasmagóricas.

Na literatura brasileira, a importância de Clara dos Anjos decorre do fato de ser o primeiro romance a trazer os dramas da personagem feminina pertencente ao mais distante dos círculos concêntricos que envolvem o núcleo, naquele sentido dado por Roberto Reis, em a Permanência do círculo (1987)1, de que a circunstância de ser mulher inseria-a automaticamente na esfera da nebulosa, obedecendo à rígida hierarquia desse conceito que permite apenas ao homem ocupar o centro. A protagonista dessa obra apresenta-se triplamente marcada pelo pertencimento à esfera da nebulosa, por ser mulher, ser mulata e ser pobre. Entretanto, diferentemente de outros textos ficcionais que retrataram figuras femininas, Clara não somente dá título à obra, como também é sua principal heroína, mesmo que, no decorrer de sua história, seja retratada de modo insignificante, aliás descrição bastante verossímil, em se tratando de uma jovem suburbana excessivamente protegida pelos pais do contato com o mundo.

Evidentemente existem vários romances brasileiros que buscam apreender as agruras de personagens femininas diante de uma ordem predominantemente masculina, todavia neles elas ocupam papéis secundários ou estão bastante próximas do núcleo, a ponto de confundirem-se com ele. Além disso, boa parte delas é branca. Quando se trata do negro focalizado pelos escritores antigos e modernos, as nódoas do passado escravagista brasileiro facilmente fazem-se notar, seja pelo seu retrato infantilizado e erotizado, seja pelo encobrimento de sua pigmentação, disfarçado por adjetivos menos evidenciadores da cor da pele (moreno, trigueiro), seja pela negação de sua afrodescendência, com a finalidade de integrá-lo com menores dificuldades no mundo branco.

A trama da história da queda moral de Clara constrói-se mediante teias quase imperceptíveis que ligam sua sorte à de alguns personagens, emaranhando-se de tal forma para resultar no drama final da moça, que acaba sendo aviltada pela comunidade em que vive e pela hipocrisia da sociedade, acostumada a condenar e justificar os erros dos pobres, com o intuito de esconder suas próprias falhas por detrás de uma máscara farisaica, como é possível ler nas entrelinhas desse incômodo romance.

Ao longo de todo esse romance articula-se e funciona uma espécie de complô contra os sonhos de amor e casamento da jovem Clara, em que algumas personagens tomam posição ativa e outras agem passivamente, desencadeando o ocaso final da moça, mesmo considerando-se que a obra seja a princípio “uma acusação mordaz do preconceito dos brancos e do complexo de superioridade do homem branco em relação à mulher de cor” (BROOKSHAW, 1983, p. 166).

O núcleo familiar também conspira contra as deturpadas aspirações românticas e idealizadas de Clara, esta descrita como semelhante à cor pardo-claro do pai e de cabelos lisos tais quais os da mãe, o que, segundo Gregory Rabassa, entre os mulatos de classe média (aonde a moça mulata deseja chegar via casamento com Cassi) “era muitas vezes desejável estar o mais próximo possível da raça branca. Clara seria considerada mais afortunada pelas características herdadas dos pais que, em cada caso, fossem mais próximas de sua ascendência branca” (1965, p. 366), revelando um processo de embranquecimento já perceptível nos pais de Clara, e que representaria para a moça, com o possível casamento com o violeiro branco, uma espécie de trilha natural de apagamento das marcas de sua ascendência negra.

Na responsabilização imputada à família, o narrador atribui o excesso de mimos com que a moça foi criada como mais um motivo para que seja facilmente enganada pelo filho de uma família próspera, cujos agrados excessivos também avariaram-no moralmente. Além disso, a simplicidade e a passividade dos pais de Clara inviabilizam um diálogo sem as peias do pudor com a jovem, transformando imprópria a educação da moça, abrindo flancos por onde a obstinação de Cassi pôde alcançar seu intento lúbrico, visto que a “educação que [Clara] recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca de seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente...” (BARRETO, 1948, p. 200), como a própria moça constata, depois de sair totalmente humilhada da casa dos pais de Cassi.

O demasiado desvelo da mãe em relação à filha procurando “protegê-la e elevá-la acima de sua posição” (RABASSA, 1965, P. 367) surte o efeito contrário das expectativas, e traz à tona, oculta sob a atitude passiva de dona Engrácia, alguns resquícios inaproveitados de elevação social herdados da família patriarcal na sua educação: mesmo sendo filha de escravos, na mudança do campo para a cidade, sua condição alterou para o de agregada, levando-a a ser educada quase do mesmo modo que os filhos dos antigos senhores, privilégio talvez devido à possibilidade de ser filha bastarda de algum dos filhos brancos da casa.

A crítica do narrador refere-se ao fato de ela ter sido “educada quase como uma dama, na casa de uma família de alta posição social” (RABASSA, 1965, p. 370), estendendo à sua filha procedimento semelhante, embora com sérias omissões, por não “mostrar que uma mera imitação ou observação dos modos dos brancos não é suficiente, seus filhos devem estar conscientes de sua posição particular na vida, de modo a evitar situações que podem ser desagradáveis, ou mesmo destrutivas quando nascidas de uma completa ignorância ou inocência” (RABASSA, 1965, p. 371).

De certa forma, subsiste uma tentativa de dona Engrácia de conciliar o “modo dos brancos”, que lhe foi legado pela família patriarcal e senhorial que a criou e educou, sem a consciência de que a realidade dos antigos senhores nunca foi exatamente a sua, muito pelo contrário, havia algumas prerrogativas, por conta de sua situação de agregada e por certa simpatia de seus ex-donos, que deixaram de existir após seu casamento, como se depreende da leitura do romance.

Ademais, embora sua condição econômica e social negue a todo momento esses valores, absorvendo deles apenas seus elementos ornamentais, sua adequação aos parâmetros da família burguesa mostra-se deficiente porque o que possui de esposa exemplar ocupando-se como os afazeres domésticos é posto a perder com seu deficiente papel de mãe conselheira. Isso sucede quando dona Engrácia revela-se totalmente incapacitada de oferecer exemplos e fatos que “iluminassem a consciência da filha e lhe reforçassem o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria” (BARRETO, 1948, p. 85). Além disso, a mãe pressupõe que sua estrita vigilância quantos aos movimentos da moça e o “proceder monástico em relação à Clara” (BARRETO, 1948, p. 85) seriam suficientes para evitar quaisquer aborrecimentos.

O enclausuramento de Clara que, em vez de “fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade” (BARRETO, 1948, p. 85) reflete mais alguns resquícios da velha família patriarcal e acaba atuando de maneira inversa ao que os pais esperavam, levando-a a entregar-se a Cassi por uma série de motivos, figurando entre os principais a ausência de informações claras a respeito de sua sexualidade; um sentimentalismo bebido nas modinhas e poemas, que desata no seu íntimo a correspondência de seus sentimentos com uma visão romantizada do amor; certo temor de ficar solteira, justamente num momento em que o casamento, entre a classe dominante, constituía-se na única via legítima de unir o homem e a mulher.

Além disso, pode-se inferir que a pobreza material e a ascendência negra entram em jogo conspirando contra as veleidades da moça em contrair um casamento nos moldes burgueses, não só devido à existência de outros padrões morais nos meios suburbanos, menos propensos ao casamento formal, por ser geralmente inviabilizado por questões burocráticas e monetárias, bem como devido à permanência dos valores patriarcais, circunscrevendo o horizonte da jovem mulatinha à exploração sexual, não mais aos senhores e feitores das casas-grandes de outrora – afinal os tempos parecem ser outros – mas doravante aos jovens das cidades, renovados nhonhôs gulosos de sexo replicando velhas práticas senhoriais.

Observa-se que esse pequeno núcleo familiar endossa valores pertencentes à família pequeno-burguesa: a castidade funcionando como passaporte para um casamento formal para a filha, o espaço privado da casa como ambiente da intimidade, a administração dos assuntos do lar a cargo da mulher, etc. Todavia, ao serem deslocados para a órbita suburbana, em que ainda pesam formas de relacionamento de caráter popular e grupal, além do distanciamento físico do centro da cidade, esses mesmos valores revelam um falseamento da realidade ali existente, porque a filha tão cercada de proteções pelos pais acaba “ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira” (BARRETO, 1948, p. 200). Isso vem comprovar que os “valores errados da família mulata que aspirava à pequena burguesia, mas inconscientes de sua vulnerabilidade, são, assim como o perverso sedutor, as causas da desgraça de Clara” (BROOKSHAW, 1983, p. 166) e, também, a de Quincas dos Anjos e Engrácia, por agirem submissamente, reforçando o caráter de marginalidade daqueles que vivem na órbita da nebulosa.

Esta subalternidade da família de Clara deve-se ao complexo de cor de pele, permanentemente estabelecendo referências com as marcas ainda frescas da escravidão, em que a sujeição ao mundo do homem branco configurava-se como o padrão de comportamento mesmo depois do fim da escravatura, obrigando aos libertos e a seus descendentes uma adequação aos valores burgueses, com uma cobrança muito maior de toda a sociedade para que não incorressem em falhas e erros que maculassem o branqueamento a que se sujeitavam. Portanto, não bastava o endosso aos valores da sociedade branca, era preciso mais do que se comportar como branco, na verdade tornava-se imprescindível negar-se como afrodescendente, buscar o branqueamento da pele por meio de sucessivos casamentos miscigenados.

Num meio social em que negras e mestiças continuavam a gozar de má reputação, devido a uma cultura patriarcal e escravagista que havia submetido, através de uma violência explícita ou implícita, milhares de mulheres de cor a um permanente estado de prostituição, os pais da jovem mulata, conscientes desse perigo da maior exposição da filha ao assédio sexual, julgam que os excessos de zelo podem protegê-la de uma pretensa superioridade que o homem branco tem em relação, principalmente, às mulheres de ascendência negra, conforme ambos acreditam e endossam como um discurso verdadeiro. Entretanto, como essa “atitude da família de Clara perante os valores da sociedade branca é de humildade, [...] falta-lhe a força moral e o espírito prático para opor-se a atos prejudiciais impostos a eles por esta sociedade devido à sua cor” (BROOKSHAW, 1983, p. 166), constituindo, pois, a cor da pele um sério entrave para Joaquim dos Santos, Engrácia e a própria Clara para possuírem suficiente autoestima que lhes permitisse um senso de valorização em relação aos outros.

Fortemente marcada por esse complexo de inferioridade, Clara anseia por um casamento caracterizado por uma espécie de remédio para sua vida de reclusão da qual quer a todo custo libertar, e a moça age de acordo com o figurino bastante disseminado do conceito de família burguesa, na qual há grande importância à sensibilidade, ao amor e à intimidade. Além disso, casar com um homem branco está próximo do pensamento bastante difundido nessa época, porque esse tipo de matrimônio avaliza positivamente a ideologia científica de cunho racial em voga, com livre curso nos meios republicanos e nacionais, da constituição da família brasileira via apagamento dos traços mestiços denunciadores do estigma da escravidão, efetuado pelo cruzamento com as raças brancas – ditas superioras – com a finalidade de promover um futuro "melhoramento racial".

Em virtude disso, Clara pressupõe que o jovem violeiro aparentemente cheio de méritos, delicado e modesto seja a representação exata do homem que pode retirá-la da mesquinhez em que vive, ainda mais por ser o rapaz branco e presumidamente relacionar-se com coronéis, políticos, doutores – representantes da nata da sociedade – o que se lhe afigura como uma espécie de conquista de um status superior em relação ao meio pobre e periférico no qual ela circula. E se por um instante, por força das raras observações que certamente havia feito, a dúvida lhe sobrevém: “ele era branco; e ela, mulata” (BARRETO, 1948, p. 87), ela acaba espantando essa má ideia, por estar totalmente tomada pelo espírito do amor romântico, a ponto de, mais tarde, totalmente enleada por Cassi, indagá-lo com tanta franqueza e ingenuidade: “_ Por que não me ‘pede’ a papai?” (BARRETO, 1948, p. 179), supondo ser possível o casamento de ambos, sem perceber o artificialismo do sentimento amoroso do namorado, armando-se de torpes artimanhas com o único objetivo de possuí-la e vilipendiá-la.

Enfim, Clara vive sobre o imperativo de uma ordem urbana e burguesa, impedindo-a de perceber a incoerência dessa forma de pensamento no espaço suburbano e proletário, onde o matrimônio não tem as mesmas significações que possui nas classes superiores, tratando-se mais de uma cópia que só em sua exteriorização iguala elites e classes inferiores. Portanto, na lógica do favor, o casamento burguês é um instrumento que presumidamente promove para a mulher a ascensão a um status mais elevado.

Nessa elevação via matrimônio, as contraprestações que a mulher oferece – maternidade, dedicação ao marido, ambiente doméstico acolhedor, capacidade de educar os filhos e ser boa anfitriã – perdem facilmente seu reconhecimento e seu valor, por diversas causas e fatores, mas notadamente pela pouca importância do sexo feminino numa esfera em que as decisões são regidas pela ala masculina, o que também pressupõe arbitrariedade nas relações. No reduzido mundo de expectativas de Clara, onde o casamento representa a solução de inúmeros problemas, sua virgindade transforma-se na única contrapartida, nessa ilogicidade da lógica do favor, que ela pode oferecer para tentar ingressar num círculo mais próximo ao núcleo, podendo resultar, como efetivamente ocorre, no seu ocaso.

Nota 

1. Os conceitos centro ou núcleo e periferia ou nebulosa são utilizados por Roberto Reis como uma espécie de tipologia de personagens e de romances do século XIX e XX, em que o quadro senhorial e patriarcal está presente. Obedecendo a uma forte hierarquia, no núcleo ou centro está a figura masculina (o patriarca, o senhor); na nebulosa ou periferia, outras categorias étnicas (índio, negro), sociais (sertanejo, jagunço), mas sobretudo as figuras femininas. 

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