Ubiratan Castro de Araújo, Sete histórias de negro

Lívia Menezes da Costa Molina*

 

Ubiratan Castro de Araújo é conhecido por ser um intelectual orgânico empenhado no combate à discriminação racial no Brasil e no mundo. Como tal, não distingue a ação social e política propriamente dita da reflexão historiográfica e da produção de conhecimento. Em 2006, trouxe a público seu primeiro livro de ficção, Sete histórias de negro, que ganhou nova edição, ampliada, em 2009. A questão racial está presente em seus contos como forma de demonstrar sua posição quanto às questões que remetem às condições de existência do negro no Brasil. Neste livro, reúne histórias de homens e mulheres negras, com suas práticas e costumes preservados pela tradição oral. As narrativas abordam as dificuldades desses sujeitos no contexto baiano, o preconceito por eles enfrentado, o resgate histórico da ancestralidade e a reafirmação da memória negra.

De acordo com o próprio autor, “este trabalho é a minha contribuição para a tarefa de todos nós para a consolidação da memória do povo negro no país”. Segundo João José Reis, no prefácio do livro, “esses pedaços de vidas de negros pobres e remediados, recriados por Bira, lhe chegaram como parte de narrativas ouvidas dos mais velhos da família, ou como coisas que testemunhou na infância ou então foram extraídas de encontros e experiências que teve já adulto”. Já de início, portanto, podemos perceber que, apesar de se tratar de um texto ficcional, o autor aborda vivências relacionadas à sua própria realidade.

A narrativa apresenta, numa linguagem simples e cotidiana, narrativas em que sujeitos subalternos emergem à condição de protagonistas. As desigualdades relacionadas ao mundo negro são contextualizadas de forma crítica, porém sutil. Apesar de ficcionais, os textos constroem uma literatura marcada por um realismo fortemente verossímil. As histórias enfatizam a realidade de uma raça que, mesmo após o “fim” da escravidão em 1888, teve que lutar pela conquista de seu espaço em uma sociedade carregada de preconceitos. O autor intenciona, através do recurso à ancestralidade, reativar a memória coletiva negra, a qual sofreu gradativo e impiedoso esquecimento. Como relata o próprio Ubiratan, na Introdução de seu livro “cada negro letrado no Brasil tem a obrigação de sistematizar as suas próprias lembranças. A experiência de cada um é um trecho de realidade vivida, de muita valia para nós mesmos e para os outros. Isto justifica a ousadia de trazer a público sete histórias transmitidas em um contexto de oralidade familiar.” (2006)

Na primeira história do livro, “Conta de Somar”, aborda a inteligência e astúcia dos escravos para conseguirem a tão sonhada carta de alforria. Na maioria das vezes, estes tinham que driblar a esperteza de seus senhores para conseguirem juntar o dinheiro da liberdade. Assim, de forma leve e até irônica, Ubiratan, através do personagem Satu, mostra as habilidades dos escravos daquela época para ultrapassarem as dificuldades em busca do objetivo maior. O conto realça os muitos obstáculos que se impunham e destaca que a liberdade adquirida provinha do próprio empenho dos cativos. A conquista do direito à vida decente cabia somente a eles, já que o país mantinha o sistema escravagista como um dos sustentáculos da economia.

A segunda história, “A bananeira”, traz também como personagem um sujeito oriundo da senzala: “tio Terêncio era um homem de bom acomodar. No entanto, carregava todas as seqüelas da escravidão”. O foco principal deste conto é a abstinência sexual sofrida durante o cativeiro e suas consequências. Para dar maior dramaticidade ao enredo, Ubiratan cria um personagem reprimido devido ao preconceito, e, ao mesmo tempo, marcado pela fama de praticar estupro para alimentar seu desejo carnal.

Já a narrativa seguinte, “A guarda cívica”, mescla patriotismo, esperança, exclusão e racismo. A ilusão do personagem Manuel Firmino, de que a pátria seria uma república é acompanhada pelo desencanto do próprio leitor ao ler o conto, pois como sabemos, o país não se tornou, efetivamente, a democracia sonhada naquela época e a gritante desigualdade permaneceu nos novos tempos. O protagonista, novamente um homem negro, é recusado para a Guarda pelos mesmos motivos que no passado separavam senhores de escravos. Através desta história, Ubiratan Castro traz à tona mais uma vez a difícil realidade a que estão submetidos os afrodescendentes no contexto pós-abolição que, em certos aspectos, perdura até os dias de hoje, e exige luta constantes para conquistar a tão sonhada “igualdade” entre as raças.

O quarto conto, “Samba em Berlim”, contêm muito da história política do Brasil, entre os anos de 1930 a 1940, período em que se prepara o ambiente para a Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939. A questão racial surge no contexto da ideologia discriminatória advinda das doutrinas nazi-fascistas, em especial no que diz respeito ao arianismo eugenista. Devido à propagação da idéia de um “branqueamento racial”, o texto aborda os relatos que propagavam a eliminação da raça negra caso a Alemanha saísse vencedora da guerra. A narrativa explora o clima de apreensão vivido na Bahia da época e seus efeitos nos moradores. Segundo Ubiratan “nesse contexto, explicava-se o entusiasmo das famílias com as notícias das vitórias aliadas, anunciadas a toques de corneta pelo Repórter Esso, da Rádio Nacional”.

Já a narrativa seguinte, “Visitante indesejado”, tem como personagem principal a fome, inimigo personificado com o nome de “Bernardo”. O contista enfatiza a miséria vivenciada pelas famílias negras que passavam por dificuldades e não tinham dinheiro sequer para o alimento. No texto, os personagens se sentem humilhados pela carência que os cerca e atinge em cheio a organização familiar. As revoltas decorrentes desta situação são uma maneira do autor evidenciar a fome como conseqüência da escravidão, já que esta impossibilitou o trabalhador de atingir a cidadania e o trabalho remunerado de forma condigna. O narrador trata a questão da desigualdade social como forma de reafirmar a disparidade econômica existente entre as diversas classes sociais, como notamos neste trecho: “porque eu era tão gordo e os meus primos recebiam tantas visitas de Bernardo?”. Ironicamente, a única solução proposta a todas as vítimas de Bernardo era a fé e a crença em Deus.

O conto “Dona Maria Cachorra” enfatiza a situação das mulheres no Brasil, em especial, a negra. A narrativa tematiza o caso de uma mulher, ex-escrava, que se sente humilhada perante todos ao saber que o homem com quem ela vivia e tinha uma relação de paixão, volta praticamente casado, depois de uma longa viagem. Todos da comunidade comentam o fato ocorrido e a denominam “Dona Maria Cachorra”. Ubiratan presenciou este caso quando criança e como ele relata na introdução do livro “de fato, foi meu primeiro contato com a tragédia”. O propósito principal do conto é apontar a dura condição vivida pelas mulheres das classes populares, em especial as afrodescendentes, vítimas tanto do sexismo oriundo da organização patriarcal, quanto do racismo que as exclui do âmbito da cidadania.

Na última história, “O protesto do poeta”, Ubiratan Castro de Araújo vale-se de um arcabouço irônico para compor a narrativa. O enredo se baseia numa “conversa” ocorrida numa sessão espírita, entre o poeta Castro Alves e um pequeno grupo de pessoas. Por meio deste diálogo, o autor discursa a respeito da história da liberdade dos negros escravos no Brasil. O texto mescla experiências referentes ao passado e ao presente. Desta forma, contrapõem-se relatos sobre a luta dos escravos para a conquista de seu próprio espaço, em especial no século XIX, frente àqueles voltados para a luta antiracista nos dias atuais. O confronto explicitado na narrativa alerta para a questão de que a busca constante da liberdade não foi deixada lá atrás e ainda prevalece em pleno século XXI. O negro, mais uma vez, é representado como excluído e marginalizado tanto no passado como no presente.

Como se vê, Sete histórias de negro aborda sobretudo a questão racial e as desigualdades a ela inerentes. No entanto, a narrativa apresenta seus personagens sem vitimizações ou lamúrias. Ao longo das histórias, deparamo-nos com seres que tentam conduzir suas vidas da melhor maneira que conseguem, resistem, praticam a solidariedade e o auxílio mútuo, e surgem como sujeitos questionadores, apesar de todas as barreiras sociais e políticas. Os contos expressam o sentimento de esperança de se ter um país fundado na igualdade, que não só o autor almeja, mas sim todos os negros do país. O projeto subjacente às narrativas volta-se para resgatar e propagar a memória do povo negro, ainda mergulhada no esquecimento derivado do preconceito. E, como o próprio Bira relata, “são histórias do ordinário, do quotidiano, de homens e mulheres comuns, negros todos.” Vale ressaltar que, em agosto de 2009, ocorreu a publicação da segunda edição, denominada Histórias de negros, com mais 5 contos adicionados: “A praga das águas”, “Sinhá Quequé Lemina”, “A carne do negro”, “Tinhorão” e “Vovó Bundona”. A matéria e o tom são os mesmos da primeira edição e, segundo João José Reis, trata de “homens e mulheres que reagem, negociam, resistem, atacam, se juntam solidários, às vezes vencem, outras perdem, raramente desistem”.


Referência

ARAÚJO, Ubiratan Castro de. Sete histórias de negro. Salvador: Edufba, 2006.

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* Graduanda em Letras pela UFMG