A poética do estranhamento e a afro brasilidade na produção de Ronald Augusto

 

Zélia Maria de N. Neves Vaz*

 

A obra poética de Ronald Augusto, submetida a uma leitura atenta, impressiona pelo intenso exercício com a linguagem. O poeta joga com as palavras, que trabalhadas em seus muitos sentidos transportam vida, história e forte personalidade. Seus textos prezam pelo tom hermético, exigindo do leitor um olhar sutil e rigorosamente cuidadoso na busca pela interpretação. Alguns trazem características concretas e visuais, herança do movimento que se iniciou em 1950 e que teve como precursores os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Embora este modelo poético se caracterize pela objetividade e pelo discurso direto, no viés dos textos de Ronald Augusto nem sempre esta marca se manifesta. Sua forma de comunicar não é óbvia e buscar a “mensagem” que o poeta objetiva transmitir é tarefa que exige inúmeras releituras. Neste sentido, torna-se relevante apontar para a opinião do próprio autor, encontrada em seu blog, acerca da comunicação poética:

 

Para o leitor, o poema se apresenta, numa primeira aproximação, como que vertido em língua estranha, mas ao mesmo tempo remotamente familiar. Na comunicação poética, a imagem da leitura como operação tradutória se impõe de modo decisivo. A comunicação poética pressupõe certa dose de intraduzibilidade, dilema que, por outro lado, se resolve no momento em que o leitor-poeta assume a responsabilidade pela co-autoria daquele texto, por meio de um gesto de interpretação livre. Tradução-leitura envolvente convertida em transcriação. (http://poesia-pau.zip.net)

 

É exatamente o que se verifica nas poesias de Ronald Augusto, essa “língua estranha” é de certa forma familiar, e o leitor encerra um papel fundamental nesta interpretação, ao decodificar as palavras do poeta e desvelar aos poucos o sentido de seus versos e conseqüentemente de sua poesia.

No que concerne à temática afro-brasileira, pode-se afirmar que seus poemas estão expressivamente delineados nesta vertente literária e, neste artigo, tomaremos como referencial, sobretudo, tais textos. Se compararmos a produção poética de Ronald Augusto e tentarmos estabelecer relações entre suas poesias com as de outros escritores enquadrados também na literatura afro-brasileira, iremos constatar que o fazer poético do escritor possui uma maneira diferenciada da grande maioria. Sua arte segue uma vertente oposta daquela militante (sem deixar de ser engajada) a que estamos habituados, mas indubitavelmente os traços da negritude se inscrevem na grande maioria de seus textos. Dentre os indícios que encontramos, os de mais fácil apreensão são oferecidos por meio das escolhas vocabulares. Estas sempre sugerem uma conexão com a causa negra, alguns poemas são mais diretos, outros optam por tratar do tema de forma mais subjetiva, porém, o tom crítico se faz presente e a voz do negro emerge da sutileza de suas poesias, assim como afirma Van Hingo, prefaciador de Puya, um de seus livros mais marcantes: “há um homem que atravessa quase todos os poemas. É o ‘suspeito negro’ ou um negro revoltado e revolto, um Sísifo inscrito no inferno dos buanas.”

Puya constrói um diálogo significativo com a poesia concreta: poemas sintéticos, jogo de palavras, eliminação dos laços sintáticos, estrangeirismos, bem como espaços a serem preenchidos pelo leitor e muito de poesia visual. Alguns exemplos:

 

zum zum zum golo logo

rum rum rum golo louvo

 

 

cá na eira larga ira

capo um um é pouco

(AUGUSTO, 1992, p.13).

 

A palavra é o centro dos poemas de Ronald Augusto, como bem constatou Van Hingo, e o exemplo acima ratifica tal afirmação. Os signos “rum”, bebida feita de cana-de-açúcar, e “eira”, local para depositar as canas trazidas da lavoura, nos oferecem o indício de que a temática escolhida remete ao período escravista. Já as palavras “golo” e “louvo” podem ser associadas aos cultos afro-brasileiros, visto que a bebida é utilizada nas oferendas aos orixás. A primeira estrofe relaciona-se ao universo da senzala, já a última ao espaço do qual faziam parte os feitores, podendo indicar a intolerância ao culto e a lembrança das torturas a que eram submetidos os escravos na época do cativeiro.

Torna-se relevante salientar a significação do título – Puya: tal palavra é herança dos africanos escravizados em Cuba e quer dizer “canto de provocação”. A expressão nos auxilia ao ler os poemas e nos afirma que provocar, incitar a ordem e os valores vigentes são marcas do fazer poético de Ronald Augusto, assim como percebemos abaixo:

 

Cinzentos cotovelos canelas num encarne

atocaiado de supetão por fulanos caiados

(muda de duna película calada)

o suspeito negro aqui minha

 

perna espremida que se assemelha a

uma vela vermelha espremida

minha perna ninharia cotó

de cana fixado para perder a capa

 

e o caldo mulato aka vilacanavial

(AUGUSTO, 1992, p. 17)

 

 

Neste exemplo, o eu lírico traz para discussão a situação dos mestiços na contemporaneidade e termina por fazer uma analogia com o sistema colonial na última estrofe. Os primeiros versos nos oferecem uma imagem que se tornou corriqueira, o negro que sofre pelo preconceito e se torna vítima destes “fulanos caiados”, palavras que estão associadas ao campo semântico dos brancos, visto que o signo “caiado” advém da “cal”. Estes homens brancos podem estar relacionados às instituições policiais e os negros são aqueles de quem se suspeita, ou seja, o que sofre a emboscada e é pego de “supetão”, devido ao estigma da cor. Ainda na primeira estrofe o eu enunciador, volta-se para o período escravista no sentido de realizar uma comparação entre a cana-de-açúcar, no seu processo de produção, e a perna do mulato, transformada em metáfora, espremida no engenho e cortada na terra. Então compreendemos que o preconceito e toda a privação a que estão condenados os afro-descendentes formam, na atualidade, o caldo (representação do lucro), não mais o da cana, como sucedia na “vilacanavial”, mas o do negro nos grandes centros urbanos, nas ruas, nas favelas, enfim, na miséria cotidiana a que foram submetidos.

A segunda parte do livro Puya intitula-se “noma” que, segundo o Dicionário Banto de Nei Lopez, significa “tambor”, um dos símbolos da cultura afro-brasileira. Coincidência ou não, alguns dos poemas encontrados neste tópico possuem bastante musicalidade:

 

captivo para capitão do

mato puído pano

para cuíca puttana sol

 

para

quem nesgas

enviesa

(AUGUSTO, 1992, p. 23)

 

A fuga dos escravos é o foco neste sintético poema e o uso da aliteração percebida pelas consoantes “c” e “p”, sobretudo nos três primeiros versos, informa um ritmo acelerado, podendo ser associado à velocidade de quem corre e escapa do cativeiro. A última estrofe também corrobora esta interpretação da fuga, uma vez que o eu lírico oferece o “sol”, metáfora da luz, da esperança, da liberdade, “para quem nesgas enviesa”, referência óbvia ao negro. Estes últimos versos nos proporcionam bem a imagem do escravo que foge, já que “nesgas” se refere a “pedaços”, ou seja, partes de um sol-liberdade concedido aos poucos e enviesar pode ser atribuído ao rastro, ou à forma como é feito o caminho pelo negro que enviesa o chão por onde passa.

Já o volume Homem ao Rubro encerra algumas diferenças quanto aos textos acima comentados. Tais poemas deixam de ser excessivamente sintéticos, causam menos estranhamento e são de mais fácil apreensão. Porém, o vínculo com a afro-descendência, característica que permeia grande parte das poesias deste autor, também aqui se faz presente. Em “Quando negro dá risada” é possível constatar esta particularidade:

 

Quando negro dá risada

é que nem cigarra soltando

o verão brasileiro

 

mas se aparece relâmpago

é que negro ficou

com raiva raiva

 

e fez da vida dele

um poema puto da cara

uma cachoeira complicada

 

uma arma de ponta

um carecimento de

brincar no aroma dos tambores

(CAMARGO, 1986, p. 112)

 

A alegria do negro é contagiante, como bem nos comprova o poema já nos primeiros versos, entretanto, tão contagiante é a sua raiva no instante em que se faz necessária. A função imagética do signo “relâmpago” sugere perfeitamente esse furor, que leva à utilização do fazer poético como arma, na qual a inspiração é dada pelas adversidades de sua própria condição de vida. O poema é ainda aquele que permite o regresso às raízes como propõe a sinestesia, figura de linguagem, que, neste caso, resultou da fusão do sentido ligado ao olfato, “aroma”, e da audição, inferida pelo signo “tambores”. Esse regresso à memória ancestral torna-se uma necessidade e possibilita a ligação com o que os negros possuem de mais importante: as marcas culturais de origem.

Nesta mesma linha, em “Não tem mais essa de” o sujeito-de-enunciação busca alertar os pertencentes à etnia negra, fato que passa pela aceitação e afirmação de suas origens:

 

não tem mais essa de

sumir pelo avesso

pelourinho trocou

de brasão mas preço

 

seu continua o

mesmo nossa vida

austral doçura ao

luar esculpida

 

fincada no vento

tua casa sem bossa

cria das senzalas

grita canção nossa

(CAMARGO, 1986, p. 113)

 

“Sumir pelo avesso”, mostrar o que não se é na aparência, e, para ser mais específico, não se aceitar enquanto negro são dilemas que precisam ser superados. O Sistema escravista chegou ao fim, “trocou de brasão”, porém, a igualdade de condições ainda não faz parte da realidade dos afro-descendentes. Sendo assim, o eu lírico ratifica a trajetória de vida do negro construída ao relento e assentada em frágeis alicerces. Ao final, a ascendência africana é reafirmada e exaltada e, como num clamor, o eu enunciador utilizando o tempo imperativo convoca seus irmãos de cor para conquistar seu espaço, na tentativa de reverter o que é ditado pela cultura hegemônica.

Em outro poema deste mesmo livro, Ronald Augusto rememora mais uma vez o passado, mas agora percorrendo uma linha mais distante no tempo, retomando fatos arrolados desde a África:

 

já tive de dono do

hemisfério de verdura

dos pássaros

 

bem no outro flanco do mar

deram sumiço na

minha boniteza

de guri negro

 

dói no umbigo

inimigo

 

(...)

 

arrumo nos lundus

mais lentos as duras

descobertas que fiz

as iluminuras

 

de dor (...)

 

O eu poético resgata na memória sua condição de homem livre no continente africano e de forma nostálgica lamenta não ter ao seu alcance o que lhe havia de mais belo: a liberdade. Esta era imensurável, de tal forma que o negro sentia-se senhor deste espaço rico em sua natureza. Porém, o homem branco rouba o direito dos africanos de serem livres e independentes, submetendo-os então ao cativeiro. O choque entre a autonomia e a realidade de sujeito escravizado ocasiona no eu lírico forte abatimento. Do lundu, música/dança de origem africana, emergem essas lembranças, “iluminuras”, pinturas de dor.

As poesias de Ronald Augusto estão configuradas em uma estética que causam num primeiro instante o estranhamento, sobretudo no que concerne ao livro Puya. Entretanto, o que parece incompreensível apresenta-se ao mesmo tempo “remotamente familiar”, como afirmou Ronald Augusto. E é neste sentido que a prática da releitura torna-se forte aliada no momento em que buscamos o significado dos poemas. Mas algo é certo e incontestável na produção deste autor, os elementos conformadores da literatura afro-brasileira estão presentes em cada um dos versos que lemos. A verve crítica ambientada na obra de Ronald Augusto se sobressai a todo momento quando reivindica à ordem vigente um espaço tanto literário quanto social para o negro.

 

Referências

AUGUSTO, Ronald. Puya. Porto Alegre: Biblios – livros, 1992.

CAMARGO, Oswaldo de. A razão da chama. São Paulo: Edições GRD, 1986.

LOPES, Nei. Dicionário Banto do Brasil.

http://poesia-pau.zip.net

http://www.ailha.com.br/ameopoema/aut_ronald.htm

 

* Graduanda em Letras pela UFMG

 

Texto para download