O negro: entre o servilismo e a consciência

Maria do Rosário Alves Pereira*

No ensaio intitulado Memória da cultura negra em Osasco, publicado em 1985, Ricardo Dias trata do resgate da cultura afro-brasileira na sua cidade do coração. Essa tendência se faz presente também em seus contos, como uma forma de conscientização capaz de combater o preconceito racial que ainda se faz presente na sociedade brasileira.

Nos contos de Ricardo Dias, em geral, predominam os ambientes urbanos e a problematização do lugar subalterno ocupado pelo negro. O autor se apropria desse estado e desse tema para apontar a única atitude capaz de reverter o jogo social: a conscientização. No conto Trabalhando em silêncio, o narrador nos relata a história de Dito, um homem negro, simples, que trabalha em uma empresa como datilógrafo. Lá Dito sofre humilhações por parte de seu chefe imediato, que ao se dirigir a ele, bradava aos quatro ventos: “Negrinho, fundo de panela, vai fazer sei lá o quê para mim. Correndo, senão vou reclamar para Princesa Izabel” (DIAS: 1999, p. 83). O datilógrafo não dizia uma palavra, sempre engolia calado as manifestações preconceituosas do Sr. Edgar.

O apelido sugestivo do protagonista indica a postura que ele deveria assumir para impedir que continuasse a ser insultado. O narrador, colega de trabalho de Dito, certa vez, o alerta dizendo que ele seria o único culpado pelas discriminações que sofria. Então, orienta o outro a “lutar com a cabeça” (DIAS: 1999, p. 82). Assim, Dito passa a estudar a “história de seu povo”. Aos poucos, ele vai se transformando em Benedito, homem que passa a orgulhar-se da sua cor, quando diz ao chefe: “Negritinho, aquele cara que você perseguia e gozava, está morto, está ouvindo? Está morto. O meu nome é Benedito Antônio da Silva, um negro com muita honra. Se você continuar me discriminando, vou processá-lo por crime de racismo” (DIAS: 1999, p. 83). Dito, ou melhor, Benedito, transforma-se através da conscientização e assim modifica o status quo: de sujeito socialmente excluído, sem acesso a educação formal, torna-se estudante de Direito, numa alusão à importância do conhecimento para que se possa questionar a ordem vigente. O desfecho do conto em forma de happy end paga tributo ao romantismo como forma de sensibilizar o público leitor negro em formação.

A questão da miscigenação e do branqueamento da raça negra é abordada por Dias no conto Amigo por conveniência, marcado pela visão de mundo feminina e negra. Nele o autor nos apresenta duas personagens afro-descendentes: Aparecida e Robson, que haviam sido namorados na juventude, fato que agradava muito a família da moça. Seu pai pedia que ela se casasse com um negro e dizia: “senão um dia a nossa raça acaba” (DIAS: 1999, p. 88). Porém, Robson se apaixona por uma mulher branca e com ela se casa. Aparecida, “para pagar a língua”, envolve-se com um homem branco. Anos depois, os dois se encontram em uma estação: ele tem uma aparência sofrida, o que, em um primeiro momento, faz com que Aparecida sinta pena dele. Depois, sente-se confortada ao saber que a “branquela aguada” com quem Robson tinha se casado estava envolvida com um negro sarará. Aparecida sente-se vingada pela “escolha errada” feita pelo homem por quem fora apaixonada e com quem gostaria de ter se casado.

 

Já os temas da violência e da pobreza, que ainda marcam a condição negra, estão presentes nos contos Os que morrem no verão e Como podia ser, se não fosse como é, respectivamente. O primeiro, a partir de duas cenas simples, é um convite para que o leitor reflita sobre a questão da violência: será mesmo que esse é o único caminho para o negro? Ricardo Dias parece querer dizer que não. O enredo trata de um pai de família que presencia mais um tiroteio na rotina das grandes cidades e se depara com jovens negros e franzinos mortos após o episódio. Ao chegar em casa, corre em direção ao berço de seu filho e reflete: será que o futuro do menino, também pobre e negro, seria aquele? Mais tarde, as divagações do homem são interrompidas por sua mulher, que lhe pede que mate uma barata. O que se vê, a partir desse momento, é uma associação da barata aos mortos no tiroteio: estes, aos olhos da polícia, são como insetos e devem ser esmagados a qualquer custo. O personagem, no entanto, abre a porta da cozinha para que a barata fuja. O inseto “pequeno e mirrado” ganha então a liberdade, e nesse ponto o autor parece apontar que há uma outra possibilidade de vivência para os afro-descendentes que não a violência, a morte; trilhar um caminho diferenciado, no rumo da cidadania e da humanidade.

Já no conto Como podia ser, se não fosse como é, o espaço é um barraco “construído” aos pés de um lixão, onde vivem uma mulher negra e seu filho. Ela, quando mais jovem, havia sido seduzida por um homem também negro em sua terra, Bahia. Mas, logo após, é abandonada por ele e pela família. Uma vez expulsa de casa, vai para São Paulo. Sem conhecer ninguém na cidade, sem estudos e dinheiro, vê-se obrigada a se prostituir até o nascimento da criança. O menino cresce, então, em meio aos dejetos do lixão. Mas, apesar de tudo, a mãe ainda mantém a esperança de que seu filho um dia se torne um homem de bem.

A prosa de Ricardo Dias, portanto, ao mesmo tempo em que mostra a realidade miserável, a situação de indigência que ainda é vivenciada por boa parte dos afro-descendentes, retrata também que o conhecimento é a chave, senão para a ascensão social, ao menos para o resgate da cidadania negra. O autor parece querer salientar que ainda há muito que ser feito, mas já é possível vislumbrar novas possibilidades sociais a partir do momento em que o negro reconhece seu valor e trabalha para modificar sua situação, não sendo mais um corpo inerte e servil diante da sociedade.

 

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* Maria do Rosário Alves Pereira é Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG, professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, CEFET-MG, coautora de Linhas cruzadas: literatura, arte, gênero e etnicidade (2011) e co-organizadora de A escritura no feminino (2011) e Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (2016).

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